Taça Libertadores. Até D. Pedro de Alcântara foi metido ao barulho!

Começou em 1960 com o nome de Taça dos Campeões da América, copiando a Taça dos Campeões Europeus. Depois, uma febre independentista levou a que o troféu fosse dedicado a Simon Bolívar, Bernardo O’Higgins ou Pedro I. A final deste ano joga-se domingo. Com Luiz Felipe Scolari no Athletico Paranaense-Flamengo.

GUAYAQUIL– Noite brasileira este domingo, aqui em Guayaquil, no Equador. E, por isso, mais forte do que o «¡Salve, Oh Patria, mil veces!/ ¡Oh Patria/Gloria a ti! ¡Gloria a ti!/Ya tu pecho, tu pecho, rebosa/Gozo y paz y a tu pecho rebosa», que é o hino equatoriano, ouvir-se-á o sempre complicado: «Ouviram do Ipiranga às margens plácidas/De um povo heróico o brado retumbante/E o sol da liberdade, em raios fúlgidos/Brilhou no céu da Pátria nesse instante», provavelmente um dos hinos mais complicado de cantar do mundo com todas aquelas sílabas átonas e o diabo a quatro.

O Ipiranga não faria parte da história do mundo se não tivesse existido um tal de Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim, nascido no Palácio Real de Queluz no dia 12 de Outubro de 1798, o homem que gritou «Independência ou Morte» a 7 de Setembro de 1722, até porque o Ipiranga não passa de um riacho mal amanhado, um simples córrego que passa pelos arredores da cidade de São Paulo, fiozinho de águas lamacentas, batizado assim mesmo pelos tupi (a palavra ipiranga significa rio vermelho), mas que ficou indelevelmente marcado na história brasileira. E, por isso mesmo, é que D. Pedro IV de Portugal, I do Brasil, faz parte dos tais libertadores que deram o nome à taça que surgiu em 1960 com o nome bem mais simplório de Copa dos Campeões da América, copiando a Taça dos Campeões Europeus. 

Ao contrário do que sucedeu na Europa, onde a Taça dos Campeões saiu da imaginação dos grandes jornalistas do L’Équipe Jacques Ferran e Gabriel Hanot, na América do Sul a ideia de uma competição continental de clubes andava a aboborar desde que, na década de 1930, as federações dos vizinhos Uruguai e Argentina criaram a Copa Aldao, que também era conhecida como Copa Rio de Plata ou Campeonato Rioplatense por via da foz ancha do rio que deixa de um lado Buenos Aires e do outro Montevidéu. Ricardo Aldao era o presidente da federação argentina, homem por detrás da ideia, mas já tinha ido beber ao que se fazia no início do século com a Copa de Competência Chevallier Boutell ou com a Copa de Honor Cousenier. Reparem que, tal como na Lei de Antoine Lavoisier, no futebol também muito pouco se cria ou se perde: tudo se transforma.

Convenhamos que nomes como Chevallier Boutell ou Cousenier não revelam grande paixão independentista. Mas ao deitarmos uma breve vista de olhos à lista de participantes em todas essas competições vamos encontrar os mesmos nomes que foram, mais tarde, dominadores da Copa Libertadores: Nacional (Uruguai), Racing (Argentina), River Plate (Argentina), Peñarol (Uruguai), San Lorenzo (Argentina), Independiente (Argentina) e Estudiantes (Argentina).
Tantos libertadores!

Estamos no Equador, falemos então do nome mais sonante da libertação equatoriana: Simón Bolívar. Afinal ele foi o maior de todos os libertadores da América do Sul, fundador da Grã-Colômbia, o homem que no dia 14 de Agosto de 1905, na igreja de Santa Catarina, em Roma, jurou com solenidade perante o seu amigo Francisco Rodríguez del Toro que não morreria enquanto não libertasse todos os povos latino-americanos do jugo espanhol. O momento ficou sublinhado na História como Juramento do Monte Sacro. Depois foi para a Venezuela iniciar um movimento imparável.

A Junta de Caracas foi o início das independências. Precisamente Caracas onde nascera Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar y Palacios Ponte-Andrade y Blanco, El Libertador.

A independência equatoriana não ficou a dever-se a um grito mais ou menos histérico nem a qualquer outro acto de valentia isolado. Foi um processo que durou entre 1809 e 1822. Simon Bolíver teve um papel fundamental, mas o homem que ergueu a espada revolucionária foi o general Sucre, António José de Sucre, nascido na Venezuela e enviado, em 1821, para o sul da Colômbia em revolta e de onde saiu vencedor da  Batalha de Pichincha, no ocidente de Quito, no dia 24 de maio de 1822, assegurando a libertação do Equador e integrando esta província na Grã-Colômbia, a tal ideia arquitectada por Bolívar de reunir num só os países saídos da opressão castelhana. Havia diferenças a mais entre uns e outros e a Grã-Colômbia desfez-se aos poucos. O Equador tomou as rédeas da sua própria independência no ano de 1830 e, por meio de convulsões internas que dariam para escrever uma enciclopédia, assim se manteve até hoje.

Os brasileiros…
Inicialmente, os clubes brasileiros mantiveram-se à parte, entretidos com as suas rivalidades internas e com a descoberta da Europa, isto é, com a possibilidade de ganharem uns tostões valentes fazendo digressões pelo Velho Continente onde o seu futebol essencialmente lúdico fazia abrir bocas de espanto.

Mas, na primeira oportunidade, o Vasco da Gama acicatou os adversários ao vencer soberanamente o Campeonato Sudamericano de Campeones, organizado pelos campeões chilenos do Colo-Colo, em Santiago, com a participação dos detentores dos títulos da maior parte dos países da América do Sul. «Somos a melhor equipa da América!», trataram de berrar os vascaínos, provocando reações em cadeia entre santistas, flamenguistas e fluminenses, ávidos de os derrotar.

Era tempo, então, de estabelecer com factos concretos quem era afinal o melhor da América. E, em 1959, assentou-se nas bases de um torneio que serviria para homenagear os heróis da história sul-americana: José de San Martín, Pedro I, José Bonifácio, Bernardo O’Higgins, José Ortigas e, claro, acima dos demais, Simón Bolívar. 

Estes anos mais recentes, e com grande contribuição de dois portugueses, Jorge Jesus (com o Flamengo) e Abel Ferreira (com o Palmeiras), os brasileiros têm dominado a prova e garantirão, este domingo, seja qual for o vencedor, Athletico Paranaense (de Luiz Felipe Scolari, também ele português de passaporte passado e filho e netos instalados em Lisboa) ou Flamengo, a quarta conquista consecutiva do troféu. O primeiro team a estrear-se, na edição n.º 1, de 1960, o Bahia, passou como cão em vinha vindimada pelo ecos do triunfo retumbante do Peñarol. No ano seguinte, já com nove participantes, mais dois do que na época anterior, o Peñarol voltou a ganhar. Depois surgiu o Cometa Branco: o Santos. Que tinha uma linha avançada que parecia letra de samba: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Arrebatou duas Libertadores e passou a dedicar-se à vida de Globetrotter, mostrando Pelé a quem estivesse disposto a pagar, e bem, por o ver em campo.

Em 1965, a Libertadores tornou-se definitivamente Copa Libertadores. Sem campeões pelo meio porque, para lhe dar mais consistência, os segundos classificados de cada campeonato também participavam no início de um crescimento de tal forma imparável que, neste momento, já reúne 47 equipas num gigantismo desmesurado para um continente que se resume a 12 países.

Uruguaios e argentinos trataram de se refastelar com troféus nos anos que se seguiram. Independiente, Peñarol, Racing Club, Estudiantes de La Plata, com o seu formidando Conjunto de Laboratório, o primeiro a conquistar três Libertadores consecutivas. Não tardaria a ser superado pelo Independiente (vencedor em 1972, 1973, 1974 e 1975). Já se tinham passados quinze anos sobre a edição inaugural quando o Cruzeiro se tornou no segundo clube brasileiro a por as mãos na taça, à custa do River Plate, na final. E que taça! Toda em prata esterlina desenhado pelo italiano Alberto Gasperi, e com um pedestal bruto em cedro que deve registar o nome de todos os vencedores e já obrigou, por isso, a alterações convenientes. Mais de dez quilos de peso, quase um metro de altura. O Sueño Libertador que, segundo a escola sul-americana, deve nascer nas calles e seguir daí para os estádios e para os triunfos testemunhados por milhões. Sempre com grinta que é o ponto mais alto da garra e do orgulho. Para o vencedor: «La Gloria Eterna!».

O vermelho e o preto
Os argentinos assumiram-se como os grandes conquistadores da Libertadores. «La Copa se mira y se guarda», responderam sempre aos seus vizinhos chilenos que, tendo um único nome entre vencedores e finalistas, Colo-Colo ganhou em 1991 e perdeu em 1973 – se lamentavam com a frase contrária: «La Copa se mira y no se toca». Somam 25 taças, divididas por Independiente (7), Boca Juniores (6), River Plate (4), Estudiantes (4), Racing, Argentinos Juniors, Vélez Sarsfield e San Lorenzo (todos com uma). Os brasileiros veem a seguir com 18: Santos (3), São Paulo (3), Grémio (3), Cruzeiro (2), Internacional (2), Palmeiras, Flamengo, Vasco da Gama, Corinthians e Atlético Mineiro.

Vermelho e negro, para fazer o gosto a Stendhal. É a vermelho e negro que se joga a final deste ano no Estádio Monumental Isidro Romero Carbo, também conhecido por Estádio do Pichincha, vejam lá a coincidência libertadoriana. Vermelho e preto, os tons de Athletico Paranaense e de Flamengo, com o favoritismo a cair por completo para os rapazes do Rio de Janeiro, nem que seja pelo seu tão maior poderio financeiro. Mas se há homem que gosta de jogos como este ele é Luiz Felipe Scolari, o grande Felipão, que pode tornar-se no primeiro treinador a vencer a prova por três clubes diferentes. É obra! Até para ele!