Carta Aberta a Augusto Santos Silva

Eu nunca, mas nunca toquei numa única criança, mas estou a receber sobre mim a culpa de um pecado que não é meu. 

Como uma espécie de Carta Aberta, dirijo estas linhas ao Senhor Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva. Dirijo-me a Vossa Excelência para o felicitar pelas palavras proferidas há alguns meses, num confronto com André Ventura: «Não há atribuições coletivas de culpa em Portugal».

Estas Palavras encheram-me de esperança, porque eu acho que estou a ser vítima de uma coisa semelhante. Fui perceber o conceito de “culpa coletiva”, que, até ao momento, nunca tinha ouvido, e percebi que se não houver cuidado suficiente na forma de comunicar, os padres correm o risco de assumir as culpas de crimes que não são seus. 

Vou contar a Vossa Excelência dois episódios que me aconteceram nos últimos meses para perceber o que nos espera num futuro muito próximo. 

Na noite dos Santos Populares, dia 12 de junho, ia, pelas quatro da manhã, para casa, depois de uma noite de trabalho numa das paróquias que me estão confiadas. Pelo caminho fiz, o que faço sempre: cumprimento as pessoas, digo boa noite e sigo o meu caminho.

Um grupo de jovens continua a falar comigo e eu fui falando com eles. É evidente… estavam visivelmente alcoolizados, mas isso nunca me impediu de falar com quem quer que seja. Aliás, a cidade de Lisboa está cheia de gente alcoolizada mesmo fora dos Santos Populares. 

À porta da minha casa, com a chaves na mão, despeço-me desses jovens. Um deles diz-me: «Eu nem imagino quantas crianças já violaste». Inflamou-se-me uma ira incrível e apeteceu-me ir à cara dele, mas achei melhor entrar em casa e fechar a porta. Deu vários murros na porta e chamou-me os nomes possíveis e imaginários. 

Esta semana, ao entrar numa oficina ouço a conversa de três homens a falarem entre si dos padres e da pedofilia e da sexualidade dos padres. Eu, que não consigo estar calado, perguntei: «Estás a falar para mim?». Ele respondeu-me: «Estou a falar dos padres em geral».

Foi aqui que eu percebi o que é a ‘culpa coletiva’. Eu nunca, mas nunca toquei numa única criança, mas estou a receber sobre mim a culpa de um pecado que não é meu. A forma como se está a comunicar os problemas de pedofilia dentro da Igreja Católica pode dar a sensação de que somos um bando de pedófilos.

Senhor Presidente da Assembleia da República, nós precisamos de alguém que nos defenda e defenda a nossa dignidade para que não aconteça connosco o mesmo que está a acontecer com alguns grupos sociais e étnicos de assumirem as culpas coletivas de crimes que são apenas de alguns dos seus membros.

Eu sei que há dispositivos na lei para quem se sente discriminado. Por exemplo, sei que há a xenofobia, mas não se trata de uma questão de nacionalidade. Há também o racismo, mas também não se trata de uma discriminação racial. Há também a igualdade de género, mas também não é um problema de género. Há leis para o mau-trato de animais, mas também não nos inscrevemos nesse grupo.

Nós precisamos quem nos garanta proteção e não discriminação social. É verdade que alguns membros do clero cometeram atos pedófilos ou são mesmo pedófilos? Sim, é verdade. Espero que a justiça e não os bispos ou a Comissão Independente possa fazer justiça às vítimas. Mas é preciso garantir que o grupo social ou socioprofissional a que pertenço não seja alvo de injustiças que nos coloquem nesta posição que descrevo nestas minhas palavras.