Matias Damásio. “O racismo praticamente acabou. O que existe é discriminação social”

Um dos músicos de maior sucesso em Portugal nos últimos anos, o autor de êxitos como Loucos ou Matemática do Amor, Matias Damásio, vai estar no Campo Pequeno, em Lisboa, e na Super Bock Arena, no Porto, para os seus primeiros grandes concertos pós-pandemia. No regresso, o músico fala sobre o seu percurso na música…

Matias Damásio. “O racismo praticamente acabou. O que existe é discriminação social”

Chegamos ao Campo Pequeno e, a caminho de conhecer o entrevistado desta semana da revista Luz, quase pensamos que estamos a caminho de conhecer um Presidente dado os diversos membros da equipa que nos acompanham, as diversas portas abertas com cartões de identificação pessoal e os elevadores que temos de utilizar até nos depararmos com Matias Damásio, músico angolano autor de êxitos como Louco, música ouvida por dezenas de milhões de pessoas, e que agora se prepara para realizar concertos no Campo Pequeno, em Lisboa, e no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, nos dias 10 e 16 de dezembro, respetivamente. 

Depois de uma breve sessão fotográfica, que Damásio confessa ser a parte que menos gosta neste processo com a imprensa, falamos com o artista sobre os próximos concertos, que marcam a sua rentrée pós-covid, e o início da sua carreira, desde as suas influências ao percurso em festivais religiosos. O músico, de 40 anos, expõe as suas visões sobre o racismo e diz que a «discriminação social» é um problema maior. 

Vai atuar no Campo Pequeno, em Lisboa, e no Super Bock Arena, no Porto. Como é que está a preparar estes espetáculos e como é que se sente?

Estou muito entusiasmado e motivado por poder finalmente começar esta rentrée de concertos, vão ser os primeiros “concertos grandes” depois da pandemia. Sinto-me muito feliz por regressar aos palcos em Lisboa, especialmente numa sala mítica onde ainda não tinha tocado com um espetáculo próprio, como é o caso do Campo Pequeno. Estou muito expectante com estes dois concertos.

Mencionou que estes são os seus primeiros grandes concertos pós-pandemia. Como é que viveu este período?

Como deve imaginar, foi difícil, tivemos danos incalculáveis. Mas, ao mesmo tempo, foi também a primeira vez que tive a oportunidade de ficar em casa com as minhas crianças e família e isso permitiu-me refletir sobre o estado da minha vida e como estavam a decorrer algumas coisas. Ofereceu-me também uma boa oportunidade para compor mais e conseguir experimentar coisas novas. Obviamente que existiam muitas restrições e todos os dias víamos notícias muito tristes nas televisões, mas sinto que foi um período de aprendizagem para todas as pessoas, nomeadamente, que devíamos estar mais unidos e que devíamos aproveitar para passar mais tempo juntos. Foram tempos muito imprevisíveis, nunca imaginei que o mundo fosse parar dessa fora. Foi uma chamada de atenção para a importância de, às vezes, fazer uma paragem na estrada da nossa vida. 

Quão duro foi não poder ter dado concertos neste período?

Para alguém que está habituado a fazer digressões mundiais, foi complicado e bruto. Mesmo mais tarde, quando já podíamos fazer concertos, estes aconteciam com restrições, com apenas 30% da lotação, com máscara, foi um período complicado e que não se pode resumir apenas às perdas financeiras. Enquanto compositor senti que me afetou imenso em termos psicológicos, que afetou o meu trabalho e a vida. Foi complicado, mas principalmente para os técnicos de som, produtores ou roadies que não têm uma música no iTunes ou no Spotify que lhes ofereça um rendimento. Durante a pandemia eu ainda conseguia receber os resultados destas vendas, mas há pessoas que dependem exclusivamente dos espetáculos e elas foram muito mais afetadas do que qualquer artista. Ver essas pessoas tão próximas, com quem costumamos conviver diariamente e que nos acompanham na estrada, a sofrer foi difícil.

Agora que está de novo na estrada, como é que acha que um jovem Matias Damásio iria reagir à notícia de que iria atuar no Campo Pequeno ou no Super Bock Arena?

Iria pensar que era um sonho, obviamente. Quando eu era criança vivia uma realidade muito complicada, sobretudo com a pobreza extrema. Cresci numa zona onde sonhar era proibido e se sonhasses muito levavas um «coco» dos mais velhos que te tentavam puxar para a realidade. Se dissesse ao meu eu jovem que ia estar no Campo Pequeno ou que já tinha estado no Altice Arena ou noutro sítio qualquer, só de relatar que alcancei tudo isto que consegui até agora na minha carreira ia achar que era uma mentira ou que era um sonho.

Mudou-se de Benguela para Luanda de forma a fugir desta pobreza. Nesta transição tão complicada, a música desempenhou um papel importante para si?

Muito. Comecei a ouvir música desde que era muito novo, no meu bairro em Benguela, no Bairro da Lixeira. Até gostava de fazer [música], mas como não tinha instrumentos batia com as panelas. Não sabia bem o que é que era, mas sentia que era algo importante. Tive uma experiência boa quando me mudei para a capital, aprendi a tocar violão e sinto que todas estas vivências foram uma base fundamental para o meu trabalho. Não acreditava nos grandes sonhos, mas era algo que estava a viver e a sentir. A música sempre esteve presente na minha vida. Quase que fui obrigado a seguir esta área porque tudo o que fazia soava a música. 

A música que ouvia nos bairros onde cresceu tiveram uma influência especial na sua vida?

No bairro onde cresci havia muita música ao vivo, por causa das casas de venda de bebidas alcoólicas fermentadas. Depois, em Luanda, havia muitos guitarristas a tocar na rua, em barracas, foi lá que aprendi a tocar guitarra, portanto, o mundo conspirou para que eu tivesse de seguir esta vida [risos]. Apesar de ter frequentado a escola, ser formado em pedagogia e ter sido professor, a música era algo que estava acima de tudo isto. 

Nessa altura em que se começou a interessar mais pela música, quem eram as suas grandes referências?

Michael Jackson, o maior astro durante a minha infância, Bob Marley, Frank Sinatra, que ouvia muitas vezes fora de casa, porque não tinha rádio em casa. Muita música americana, latina, como é o caso do duo brasileiro Luís e Miguel, Julio Iglesias… eram algumas das minhas principais referências. 

Havia algum músico português que fosse uma referência?

Quando ainda estava na escola ouvia muito Rui Veloso, que é uma grande referência que tenho em Portugal. Atenção, a música portuguesa não tocava muito em Angola naquela altura, mas o Rui tocava em toda a parte. O Anel de Rubi é uma música internacional que tem uma estética musical e lírica inacreditável. E, claro, todas as pessoas conheciam a Amália. Até podias não conhecer a música, mas o nome dela andava por todo o lado. Deviam ser as minhas duas maiores referências.

E os músicos de rua que estava a mencionar, também considera que foram grandes influências para o início da sua formação musical?

Foram muito importantes, foram os responsáveis por me ensinarem no início do meu percurso e, como eram músicas diversificadas, era possível ter um acumular de ensinamentos de várias regiões, desde o Caribe ao Brasil, da África à América, era um misto de muitas canções que tiveram um impacto muito grande em mim. Quando eu comecei a tocar violão fui aprendendo várias técnicas em tempos e lugares diferentes, mas, no fim, tudo chegava a uma conclusão. Todas essas referências e memórias foram-se encontrando e despertaram em mim tudo aquilo que sou hoje.

Uma coisa interessante do seu percurso musical foram os festivais de música religiosa e neste circuito. O que é que se lembra deste período da sua vida?

A minha avó era católica e pediu-me para participar num festival da igreja. Lembro-me que não tinha microfones ou sistemas de som, tínhamos de cantar com a nossa própria voz. Foi um evento muito importante no meu percurso, foi o despertar daquilo que queria fazer. Acho que foi aí, e num concurso que participei em 2002 e 2003 da Gala TPA (Televisão Pública de Angola), que obtive a crença daquilo que queria ser enquanto artista.

Estes festivais devem ser completamente diferentes daqueles em que agora está habituado a tocar.

Sim, completamente diferente [risos]. Eram eventos que não tinham condições técnicas, atualmente os festivais onde vou tocar são um sonho. Apesar de ser uma pessoa muito realista, costumo dizer que vivo uma vida de sonho. Há vinte e cinco anos, quando tinha 15 anos, nunca imaginei que fosse chegar onde estou hoje. É uma realidade muito fora de tudo aquilo que poderia imaginar. É tudo muito diferente e tive um grande crescimento. Todos os palcos que consegui pisar são muito significativos, obviamente, mas é uma diferença abismal.

O que é que acha que aprendeu nesses concertos e a conviver com esse tipo de músicos? Há algum ensinamento que ainda aplique no seu trabalho atual?

Acima de tudo, a disciplina. Quando estamos a começar a nossa carreira é muito importante aprender esta realidade. A maior lição de disciplina é no começo da carreira porque vai influenciar muito aquilo que vamos ser no futuro. Quando não somos ninguém existe uma pressão muito grande sobre aquilo que temos de fazer ou como devemos andar. Quando chegamos a um certo nível, aquele em que eu considero estar, tenho mais opiniões sobre aquilo que eu quero. A maior diferença é essa, precisei de aprender a disciplina, ter paciência para conseguir cumprir esta vontade de seguir a música e não poder fazer exigências a ninguém, só as pessoas que estavam comigo é que me podiam exigir e eu era obrigado a cumprir. Mas, quando chegas a uma posição em que podes escolher tudo, isso permite-te respeitar a estrutura que tens, essa é a verdadeira disciplina, saber que apesar de quereres fazer determinadas coisas, vais ter de deixar de parte porque não é o mais correto para a estrutura que te está a apoiar. É importante que esta disciplina seja ensinada no início do teu percurso como artista se quisermos a chegar a níveis superiores.

Estava a falar do sonho que está a viver e do sucesso que alcançou, mas este atingiu um nível diferente quando lançou a música Loucos, em 2015. Quando é que foi a primeira vez que sentiu uma mudança significativa no seu estatuto enquanto artista?

Sinto que existiram dois momentos significativos. Antes da Loucos, eu já era um artista muito famoso em África. Tinha dezenas de sucessos e havia sempre 20 a 30 mil pessoas a assistir os meus concertos. Mas este é o meu continente. A segunda fase foi quando sai de África e comecei a ter sucesso em Portugal. O maior sonho de qualquer artista é ser conhecido noutras partes do mundo. Apesar de já ser uma estrela há mais de 20 anos em países como Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé ou Guiné, onde fazia tours e já tinha muitos sucessos, a Loucos veio trazer um público diferente daquele que estava habituado: Portugal. 

Era um objetivo antigo?

Costumo dizer que Portugal é a porta para o resto do mundo. Permite chegar a outros países na Europa, como Espanha. Foi uma grande diferença. Estava habituado a um público e vi-me deparado com uma realidade completamente diferente. Mas tive a sorte de ser abraçado pelo público português, que me tem acarinhado todos os dias e nos meus concertos. E é tudo graças à Loucos, que me abriu a porta para o mercado português.

Houve algum episódio em específico que o tenha deixado a pensar que estava num nível superior de fama?

Estava habituado a cantar na minha terra, em Angola, e era muito bom, mas só estava habituado a vir a Portugal como turista. Era um sítio onde gostava de vir passear com a minha família, até tinha o privilégio de ter aqui uma casa. Como costumo dizer, Portugal é o destino turístico de todos os angolanos [risos], nós adoramos Portugal. Quando voltei a Portugal, depois de ter editado um disco pela Sony, cheguei ao aeroporto, onde tinha sempre complicações para entrar, porque era turista, e comecei a reparar que as pessoas que trabalham no serviço de emigrações, a juntar papéis… pensava que me vinham passar uma multa, mas na realidade queriam apenas o meu autógrafo [risos].

Foi a primeira vez que sentiu este tipo de receção em Portugal?

Esta foi a primeira vez que senti que estava a entrar em Portugal como um artista conhecido e não só como um turista que vinha passear. Podia ser conhecido noutros sítios, mas, nesse momento, foi quando percebi que estava a viver uma realidade diferente. Comecei a entrar nos tops de Portugal, tive oportunidade de atuar no Altice Arena, em 2018, que foi um dos maiores momentos da minha carreira. Com o acumular de todos estes feitos, uma pessoa começa a aperceber-se da dimensão em que está. Foi desde essa interação com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que percebi que eu era um artista conhecido. Quando a Loucos começou a tocar nas rádios portuguesas eu ainda não estava cá, estava em Angola, só seis meses depois é que regressei e a música já estava num limite inacreditável. Foi um grande impacto na minha vida.

Lembro-me perfeitamente da altura em que a música saiu, era impossível sair de casa e não ouvir a música em cafés, táxis, bares…

A música estava em todo o lado, foi algo incrível. Quando saía de casa estava sempre a ouvir a Loucos no carro, no shopping, em casamentos… foi algo inacreditável. Mas o mais impressionante é que, apesar de ter feito muito sucesso em Angola, fez ainda mais sucesso em Portugal. Foi uma música que tocou muito mais aqui, teve um impacto muito maior. 

Não é estranho estar casualmente a passear, por exemplo num centro comercial, como exemplificou, e ouvir a sua voz numa música criada por si?

Hoje é algo gratificante, mas no princípio era um impacto estranho. Fico muito feliz por toda a admiração que recebo. É bom saber, ao final do dia, que estou a receber todo este reconhecimento pelo trabalho que tenho feito. 

Já tinha tocado em Portugal antes de lançar essa música?

Sim, mas tinham sido concertos mais focados na comunidade africana. Tinha inclusive feito alguns coliseus, mas o público era constituído na sua maioria pelos meus conterrâneos angolanos, que chegavam a encher os recintos. Mas foi com a Loucos que entrei para os grandes palcos e conquistei o público português. Recordo-me de um espetáculo que só tinha um português, mas isso foi um princípio, depois foi sempre a crescer.

Deve ter sido uma mudança estranha, agora ao olhar para a audiência deve ver mais fãs brancos do que negros.

Exatamente [risos]. É completamente diferente, existiu uma transposição de fãs.

Infelizmente, Portugal é um país onde são reportados demasiados casos de racismo, alguma vez observou ou viveu uma experiência negativa durante os seus concertos?

Em relação ao racismo, eu acredito que o que temos de lutar hoje é contra a discriminação social. Acho que as pessoas não detestam nem brancos nem negros. Atualmente, reparo como os ciganos são tratados e percebo que existem mais maus-tratos contra aqueles que não têm posses. Nunca tive problemas de discriminação social, talvez por aquilo que eu sou e represento. Acredito que esta deve ser a nossa luta. Não acredito que exista alguém que não goste de outra por causa da sua cor. As pessoas gostam da Beyoncé, mas não gostam de um negro do Mali. É difícil perceber se a pessoa é racista ou se ela faz discriminação social. Este é um grande problema. 

Alguma vez foi alvo deste tipo de discriminação?

Nunca sofri nada, sempre fui tratado com muito carinho, aliás, hoje a minha audiência é maioritariamente branca e tem muito carinho por mim. A questão que temos é que se julga muito pelo nível social. Seja pelas calças ou camisolas que se usam, pelos clubes que se apoiam ou pela terra onde nascemos. Ser pobre é muito mais difícil do que ser negro ou branco. Vejo muita discriminação tanto na parte negra como na parte branca, de forma igualitária. Já vi brancos a discriminarem brancos, já vi ciganos a serem espancados na rua. Já vi de tudo um pouco e começo a perceber que não se trata de ser mais claro ou mais escuro. Temos de começar a olhar para as pessoas como se fossem nossas. Isto é um problema social, as pessoas assistem à NBA e está repleta de negros e não existem problemas. Vão ver a Beyoncé ou o Jay-Z e não há problema nenhum. 

Acredita que existe uma separação entre as pessoas famosas e um cidadão comum?

Uma pessoa até pode amar estes ídolos, mas depois discrimina um negro qualquer que mora numa região como Queluz ou Massamá, porque olha para ele e pensa logo que é um ladrão. Na minha opinião tudo isto está mais associado a uma questão económica do que propriamente à sua cor. O Eusébio é um ídolo em Portugal, num clube que é o Benfica, que é o maior clube deste país, e não digo isto por ser benfiquista. O Pelé é o que é no Brasil, e assim sucessivamente. As pessoas são mais valorizadas por aquilo que têm, pela roupa com que andam, quando deviam ser valorizadas pelo seu conhecimento e proximidade. O racismo, praticamente, acabou, o que hoje existe é discriminação social. As pessoas não gostam «daquele grupo de negros». Vou dar um exemplo: Passei muito tempo no Brasil e, quando estava em discotecas e apareciam os negros americanos, os «gringos», havia abraços e era uma grande festa! Mas quando vinham os negros da favela estes eram barrados e não conseguiam entrar. Às tantas não sabes se o porteiro tem problemas com a cor ou se tem um problema em relação ao sítio de onde a pessoa é. Hoje há muita discussão, na minha opinião, por isso é que não gosto de tocar nessa palavra. Eu sou feliz e vivo em Portugal, um país onde existem maioritariamente pessoas brancas, há anos que tenho um sucesso extraordinário e nunca tive nenhum tipo de problema e trabalho com brancos e negros. Mas eu sou o Matias Damásio. A grande discussão hoje não deve ser sobre o racismo, mas sim sobre a discriminação social. Costumo dizer na brincadeira que, apesar de ser cigano, o Ricardo Quaresma deixou de ser cigano, ficou apenas «Quaresma» porque é jogador de futebol.

Apesar de termos atletas que não são imunes a esta discriminação, como foi o caso do Moussa Marega, em 2020, quando abandonou uma partida contra o Vitória de Guimarães depois de ter sido alvo de insultos racistas.

Aconteceu, mas foi uma situação esporádica. O que costuma acontecer é que são imigrantes e depois assistimos a casos como nos Estados Unidos, em que dizem “fora os mexicanos”. Mas a mesma pessoa que insulta o Marega, se calhar, se vir um jogador inglês pode também insultá-lo. Existe muita discriminação sobre o sítio de onde viemos. Não é um problema com a cor, é também um caso de discriminação social.

Tem uma grande plataforma e muitos fãs, considera usar ainda mais este espaço para tentar atenuar este tipo de discriminação?

Sem sombra de dúvidas, daí esta minha discussão e tentar sempre falar com amigos e associações. Acho que os artistas têm esta função de falar sobre o racismo, mas que eu debato. Nós estamos distraídos, a discriminação social é muito mais grave do que qualquer outro tipo de discriminação porque é dirigida a grupos. Isto é algo que temos de debater e que tem de acabar. Temos de defender os brancos, os negros, os latinos, os russos, os chineses. De uma maneira geral, todas estas pessoas quando estão numa região diferente sofrem um tipo de discriminação. Quando o branco vai para Angola também sofre discriminação, não vamos estar aqui a tapar o sol com a peneira. Isto é um problema geral. Costumo dizer que existe o «colono» e o «português», cada um é o que é. Em Angola, há quem já trate mal o branco por saber que o colono também foi branco, mas são coisas diferentes. Isto tem muito a ver com a nossa história e com a discriminação social e sinto que isso nos afetou muito mais. Cada pessoa tem a sua própria voz e temos de discutir sem sentimentalismo, nem vitimismo. Existem muitos casos de racismo em que as pessoas se fazem de vítimas e que querem justificar que não foram a determinado lugar porque são negros. Acho que é preciso ter cuidado com esse tipo de linguagens porque há negros que conseguiram chegar a esses lugares com mérito. Ainda acredito que o mundo é igual para todos se as pessoas tiverem mérito. Agora, é natural que um imigrante num país diferente possa sentir mais dificuldades e, por vezes, tenha que recorrer ao crime, mas é algo que requer uma maior contextualização, porque têm mais dificuldades em ser aceites na sociedade, não têm documentos, não existem políticas diretas para apoiá-los… Eu não acho nem me sinto menor por ser negro. Repito. Pelo contrário. Adoro ter a cor que tenho. Continuava a ser como sou se me pedissem para escolher. Não tenho qualquer limitação pela minha cor de pele. Entro em qualquer sítio. Sou amado por todos. Faço tudo o que quero. Agora, eu falo de uma posição, obviamente, privilegiada. Eu cheguei onde cheguei, mas também sei onde posso ir. 

Sente que por isso tem mais responsabilidade para falar sobre estes assuntos?

Temos todos a responsabilidade para falar e discutir saudavelmente sobre onde é que estão as causas e os erros. Mas eu cheguei à conclusão de que o grande problema é a discriminação social.

Já afirmou que nunca se sentiu discriminado a nível racial ou social, mas alguma vez se sentiu a nível musical? Isto é, apesar de já ter tocado em locais como o Altice Arena, ainda não esteve em festivais como o NOS Alive ou o Rock in Rio. É uma ambição no seu percurso?

Isso é algo que ainda tenho de conquistar. Há uns anos, a música angolana não tocava nas rádios, praticamente só tocava música estrangeira. Em Portugal acontece o mesmo e havia quem defendesse que o estado tinha de intervir e fazer com que tocasse mais música nacional. Esta forma, que eu não concordo, das pessoas entrarem por nacionalidade permite que os artistas relaxem. Se eu já tenho uma quota garantida para entrar na rádio, não preciso de me esforçar. Se eu não tenho esta quota tenho de fazer uma música à altura dos americanos ou dos ingleses, à altura de artistas como o Michael Bublé. Sinto que é um percurso e que ainda não estou em festivais como o NOS Alive ou o Rock in Rio porque ainda não chegou o momento. Eventualmente vai chegar, mas é preciso trabalhar mais, continuar a conquista, criar mais reportório e mais êxitos. Sinto que não é uma discriminação musical, tenho de me esforçar mais para conseguir atingir esse objetivo.

Apesar de ainda não estar nestes festivais, no próximo ano vai estar em Nova Iorque a atuar com a Mariza. Como é que se sente por ter recebido este desafio?

Isto foi um convite da Mariza, uma grande artista, que convidou alguns artistas dos PALOP para irem a Nova Iorque atuar com ela. Para mim, este convite foi surpreendente e a realização de um sonho. É um privilégio enorme.

E quando é que vamos ter um concerto de Matias Damásio em nome próprio?

Vamos pensar que depois deste concerto da Mariza poderemos começar a planear o meu [risos]. Acredito que um dia será possível, temos de continuar a investir. Eu fiquei 15 anos a fazer sucesso em Angola para chegar a Portugal. Tudo isto é um processo, acredito que agora estou mais perto. Tenho a previsão de, no próximo ano, começar a investir no mercado latino, começar a cantar espanhol ou outras línguas. É preciso um esforço do próprio artista, de querer chegar a outros lugares. Quem sabe se na próxima entrevista não estaremos a falar sobre um espetáculo que vou fazer em Nova Iorque [risos].