“Em períodos de aperto, as pessoas cortam primeiro na cultura”

Manuel José Damásio, diretor do Departamento de Cinema e Artes dos Media da Universidade Lusófona e presidente da Associação Europeia de Escolas de Cinema e Audiovisual (GEECT/CILECT), fala da cultura em tempos de crise financeira.

Como surgiu a paixão pela comunicação?

Foi um percurso natural. Inicialmente, no Ensino Superior, estudei Filosofia e acabei por perceber e entender que nutria um interesse particular pelos fenómenos contemporâneos relacionados com os processos de comunicação, de construção social e representações. E foi um bocadinho a partir daí que acabei por ir para Ciências da Comunicação e, à medida que fui estudando, ganhei um gosto crescente por diversas áreas como o marketing – que é uma área onde me sempre senti bastante à vontade e da qual gosto muito – e fui aprendendo a vertente do processo da construção de discursos e interessei-me bastante pelo audiovisual. Surgiu o interesse científico – de aprendizagem ou de conhecimento, se quisermos –, mas também profissional, de ser uma área onde me parece que a aplicação do conhecimento daquilo que são hoje as nossas condições sociais, não só é absolutamente fascinante e envolvente, como é uma área onde sentimos que aquilo que fazemos tem muitos campos de aplicação desde marketing, publicidade, comunicação aplicada, discursos audiovisuais, etc. Desde o início, é essa diversidade que sempre me fascinou.

Até o jornalismo.

Há muitos subdomínios e cada um abre portas para mais domínios ainda. A partir do audiovisual descobri a computação e no mestrado explorei-a em maior detalhe. As ciências da comunicação são saberes que precisam de outros para se desenvolverem.

Qual foi a influência do seu pai nos percursos académico e profissional que trilhou?

O meu pai, desde muito novo, esteve ligado ao Ensino Superior e conhecia os aspetos positivos e negativos do mesmo. Acho que, como quase expectável numa relação entre pai e filho, acabou por ser muito exemplar do ponto de vista daquilo que deve ser o comportamento de uma pessoa na sua atividade profissional e no seu desenvolvimento. Ensinou-me duas coisas excecionalmente importantes: a ética profissional – os valores, aquilo em que acreditamos, o respeito por aqueles com quem comungamos a nível organizacional – e a evolução do ensino em Portugal. Por diferentes razões, esteve sempre no ‘centro do furacão’ e eu fui um observador privilegiado de transformações essenciais. O Ensino foi passando por grandes transformações ao longo dos últimos 30 anos e, em particular, o Ensino Superior privado. Ainda na semana passada, numa intervenção durante o lançamento de um livro comemorativo dos 25 anos da Universidade Lusófona, o professor Marçal Grilo que era, à data, o ministro da Educação, quando esta foi acreditada, dizia que o ensino privado era um reflexo da própria sociedade portuguesa. E, nesse sentido, é muito curioso analisarmos aquilo que foi a evolução de um ensino privado que era praticamente inexistente antes do 25 de Abril – haveria uma ou duas instituições –, a seguir instalou-se, principalmente, com a Universidade Livre, mas estávamos sempre a falar de instituições cuja maioria dos professores tinham sido saneados e, portanto, não podiam dar aulas no ensino público. As posições ideológicas eram diferentes e, por isso, o seu conhecimento era desprezado. Depois, houve as dores de crescimento e a Universidade Lusófona é o principal exemplo disso pela aposta da diversificação. E, posteriormente, houve o processo de consolidação que podemos dizer que é aquele que ainda hoje vivemos. Foi trilhado um longo caminho por um grande conjunto de atores e podemos dizer que o meu pai foi um deles.

 

Relativamente ao cinema, era apaixonado pelo mesmo enquanto espetador?

Sempre fui interessado, mas não posso dizer que fosse um cinéfilo. A determinada altura, quando fui estudar para o Reino Unido, interessei-me pela produção. E comecei a olhar e a ver cinema de uma forma muito eclética. Gosto de pensar que devemos tentar perceber um bocadinho de tudo e ter uma mente suficientemente aberta para ter a capacidade de ver diferentes géneros, entender a proposta de valores de cada um, o motivo pelo qual em determinado contexto são importantes, etc. Ou seja, interessei-me pela prática audiovisual – e enquanto indústria, se assim quisermos utilizar o termo –, depois enquanto processo de representação da nossa sociedade e construção daquilo que é a nossa cultura – hoje, o cinema e o audiovisual são, provavelmente, o elemento mais importante de construção daquilo que é uma cultura no sentido mais restrito do termo – e, depois, uma terceira dimensão que, para mim, foi sendo cada vez mais interessante e me leva a uma sala de cinema: a riqueza estética e artística, assim como técnica, das múltiplas representações cinematográficas e audiovisuais. Acho que, cada vez mais, gosto de me sentir num processo imersivo. Por isso é que, muitas das vezes, faço aquela distinção entre a experiência de ver um filme numa sala e num ecrã de televisão ou de computador, que pode parecer disparatada. São, objetivamente, experiências diferentes: cada uma tem o seu valor. Essas múltiplas dimensões foram algo em que me fui embrenhando e que hoje se tornaram na parte mais importante da minha atividade profissional.

O que pensa das plataformas de streaming? Principalmente a Netflix tem mudado a forma como as pessoas, em geral, mas os jovens, em específico, encaram o cinema e as séries.

O consumo é mais imediato. Vivemos um período absolutamente incrível do ponto de vista daquilo que é a economia dos media e a evolução do cinema e do audiovisual. Assistimos à consolidação de um fenómeno que, eventualmente, já se terá iniciado há umas décadas, mas que hoje se encontra completamente consolidado que é de convergência do discurso: ou seja, resulta em termos uma televisão que, se quisermos, é cada vez mais cinemática. O fenómeno dos conteúdos serializados é exemplar. Temos hoje episódios com linguagem, estrutura dramática e representação estética completamente cinemáticas. Simultaneamente, encontramos, e isso é natural, tem a ver com esse migrar do cinema para a tela da televisão, cada vez mais exemplos de um cinema expandido, que tenta procurar outros lugares onde possa encontrar público. Porque não podemos escamotear o facto de que, objetivamente, e a pandemia aí teve um impacto brutal, e até 2019 tínhamos números muito estáveis de audiências de cinemas e até a crescer, as pessoas vão muito pouco ao cinema. Gosto de ter uma perspetiva otimista, claro, e pensar que vamos ter espaço para todas as alternativas. Outro aspeto que devemos ter em conta, e ainda não entendemos as suas consequências, é o crescimento brutal do volume de produção não só na Europa – aqui, principalmente, em função da implementação da nova diretiva europeia dos serviços audiovisuais que veio criar obrigações às plataformas de streaming ao investimento. Mas também lá fora, como nos EUA, onde na semana passada se conheceram números impressionantes: há anos que andávamos a medir o peso das indústrias culturais e criativas na economia mas, objetivamente, neste momento, nos EUA e na Europa, temos dados que confirmam que têm um peso tremendo e um potencial de dinamização da economia – nomeadamente ao nível da criação de emprego qualificado muito relevante. Por isso, acho que vivemos quase uma era dourada. É curioso porque, no meio de tantos problemas e momentos menos felizes que o nosso mundo vive, não nos apercebemos daquilo que acontece nesta área. É óbvio que isto tem consequências que ainda temos dificuldade em avaliar, como o súbito e abrupto crescimento no volume de produção que resulta num volume gigante de filmes a serem estreados em sala e, muitas das vezes, não têm tempo de se estabilizarem e chegarem ao seu público. Foram implementadas várias medidas ao nível de incentivos fiscais e financeiros, em Portugal e outros países europeus, para atrair produções cinematográficas, temos o exemplo do Velocidade Furiosa, e ainda não se sabe se esta lógica é completamente sustentável do ponto de vista ambiental – há custos e uma pegada de carbono gigante – e governamental. A UE, claramente, colocou como uma prioridade absoluta das suas políticas as indústrias culturais e criativas e Portugal ainda tem muito a fazer. Os nossos políticos ainda não compreenderam o potencial que estas indústrias têm: continuamos a ter um discurso a propósito da cultura completamente ridículo e não a entendemos nem as oportunidades criadas. Basta ver que um dos maiores programas europeus de incentivo à inovação e criação de negócio, que é a Kick… A última foi aprovada nesta área. O Horizon, o maior programa europeu, pela primeira vez, há linhas de financiamento para as indústrias culturais e criativas. O programa Creative Europe tem uma dotação orçamental como nunca teve… A Europa já colocou esta área no topo das prioridades e nós ainda temos de fazer o nosso caminho para conseguirmos extrair o máximo de potencial destas áreas.

Para além do Velocidade Furiosa, temos exemplos de filmagens que têm sido problemáticas em Portugal como as de Game of Thrones. O que pode ser feito para contornar estes obstáculos?

Em Portugal, além de termos poucas condições, a população ainda não está habituada a que estas coisas aconteçam. Por exemplo, na Croácia, em Dubrovnik, toda a gente lá vai devido à Guerra dos Tronos e o país aprendeu a popularizar-se. Nós não estamos preparados para algo dessa dimensão e precisamos de aprender.

Além de todas estas potencialidades, fala-se na representatividade e há tantos casos como aqueles de que se falam na revista LUZ desta semana: a Velma do Scooby Doo ou a Pequena Sereia negra. A construção social anda de mãos dadas com estas indústrias.

Esse é o tal papel fascinante que o cinema e o audiovisual têm de serem simultaneamente um construtor da nossa cultura, mas também um reflexo da mesma. Todas as artes audiovisuais têm este lado de serem um motor de produção cultural: seguem as grandes tendências sociais, mas também as constroem e por isso é que são tão relevantes e não podem nem devem ser relegadas para segundo plano! Temos dificuldade em reconhecer a sua importância. Os media estão constantemente tão presentes nas nossas vidas, estamos tão ligados a ecrãs, que não nos apercebemos do papel fundamental dos mesmos na construção das nossas identidades. Achamos que são um mero reflexo das mesmas e não é verdade! E têm papéis muito positivos na capacidade de criar espaços e nichos onde diferentes grupos podem ter uma voz. Essa riqueza da diversidade, de que falámos… É óbvio que temos três ou quatro plataformas que têm um peso gigante no mercado, mas se olharmos para o conjunto do mercado europeu, temos uma riqueza impressionante. A EUROVOD, a associação que une todas as plataformas, tem uma lista enorme: são às dezenas! Permitem representar minorias, géneros, formatos muito específicos… Nem temos consciência do que isso significa do ponto de vista de consolidação da nossa sociedade, da capacidade de aguentar choques, etc. e, acima de tudo, de dar àqueles que não se sentem representados ou não querem ser, nas estruturas mais normalizadas ou massificadas, oportunidades de representação impensáveis em estruturas muito mais pesadas e hierarquizadas. Por vezes, esquecemo-nos de que, há 50 anos, só tínhamos um canal de televisão em Portugal. Hoje, temos centenas: essa riqueza, essa fragmentação dos media é um fenómeno necessariamente mau. Tem aspetos muito positivos: é óbvio que a sustentabilidade de alguns desses canais é questionável mas, neste momento, são uma fonte tremenda de diversidade.

Desde o início desta crise financeira, a população portuguesa está a cortar nas subscrições das plataformas de streaming e de jornais. O que pensa disto?

A cultura é a primeira área onde as pessoas se sentem mais à vontade, em períodos de aperto, para cortar porque acham que o benefício não corresponde a uma necessidade tão básica quanto outros casos. Muito provavelmente, este aperto que sentiremos ao longo dos próximos meses, e que esperemos que dure o mínimo de tempo possível, terá uma consequência eventualmente interessante: mudanças no modelo de negócio. Por exemplo, a Netflix, noutros países, está a testar alternativas ao modelo habitual de subscrição. Acho que, como em todas as crises, surgem oportunidades. E os agregadores de conteúdos podem repensar os modelos de negócio que eram dominantes. Quase todos trabalhavam o mesmo e limitavam-se a competir pela quota do mercado.

O que está a ser feito?

No caso da Netflix, na semana passada, anunciaram um modelo que introduz uma diminuição no valor da subscrição que a pessoa paga em troca do consumo de publicidade. Depois, há um outro que começa a surgir que é: a pessoa tem acesso a uma parte do catálogo. Imaginemos que só tenho acesso a filmes de terror. Começam a surgir várias alternativas.

O que tem a dizer sobre os podcasts?

São muito apreciados porque podem ser ouvidos em qualquer circunstância. Há quem não faça praticamente nada sem os ouvir, como exercício, cozinhar, tomar banho, etc. O facto de se poder ouvi-los em mobilidade torna-os muito mais apelativos do que qualquer outra coisa.

E a paixão pelo true crime?

Nós, desde os folhetins que eram distribuídos, temos uma curiosidade quase mórbida por tudo aquilo que tem a ver com o crime. Portanto, não me surpreende que os podcasts estejam sempre no top dos mais ouvidos sejam aqueles onde são narradas histórias verídicas. Gostamos de conhecer os detalhes das histórias, ouvir tudo contado pelos narradores, sentirmo-nos parte do enredo, desvendar os mistérios, por aí fora. Oiço mais os podcasts de cinema porque a minha filha mais velha é apaixonada por eles!

Como tem sido o seu percurso na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias?

Neste momento, tenho uma posição… Considero que sou um sortudo! É bom dizermos isto quando achamos que temos alguma sorte. Comecei o meu percurso há 20 anos. Primeiro, era um pequeno curso e fomos lentamente evoluindo para aquilo que é o maior departamento de ensino de cinema e audiovisual no país. É uma escola de cinema que consideramos que tem um peso interessante no espaço europeu. Estamos representados nos fóruns de ensino e investigação europeus. Recentemente, conseguimos ganhar vários projetos nestas áreas no Horizon Europe. E, há quatro anos, iniciámos um processo cujo fim não sabemos como irá ser, mas a UE criou o programa Universidades Europeias e nós tivemos a capacidade de sermos um dos primeiros consórcios financiados na área das indústrias culturais e criativas. O objetivo é criar uma universidade europeia de cinema e audiovisual. Integra oito instituições, por exemplo da Bulgária, da Estónia, da Lituânia, da Irlanda, da Dinamarca, e eu lidero esse projeto, e a ideia é criar de raiz uma instituição a uma escala que ainda nem sabemos qual será. O processo de criação destas universidades é o mais importante desde a declaração de Bolonha e eu sinto-me excecionalmente privilegiado por poder estar no centro deste processo e trabalhar nele numa área de que gosto tanto. Em Portugal, pensamos demasiado nos nossos problemas e não podemos fazer isto. A ULHT teve esta grande vantagem de estar nesta posição e, ao mesmo tempo, neste período de crise, conseguimos abraçar um desígnio de transformação do Ensino Superior com a reorganização global do sistema. Estamos a fazer o nosso contributo concreto e foi por isso que, recentemente, tivemos a autorização para a integração da Universidade Lusófona do Porto na ULHT e dessa integração resulta a alteração da designação para Universidade Lusófona. E, assim, somos uma das maiores instituições com mais de 20 mil alunos e uma massa crítica a nível de professores muito interessante que achamos que pode contribuir para uma evolução de Portugal e dos PALOP.