Gal Costa. A manhã de sol que enfim despiu o português

Nunca quis posar de musa como não se deixou embalsamar viva a fazer de grande dama da música brasileira. Gal Costa foi a flor de um tesão divino e ilimitado, símbolo de perpétua reinvenção e liberdade à frente da geração do desbunde e contra a ditadura militar brasileira. Morreu, aos 77 anos, sem que uma…

Aquela voz, aquela boca, aquele encanto entre gozo de embalo e ânimo selvagem, aquele corpo vindo de tantos lados, com sal e seiva misturados no sangue, antes daquilo tudo ser carne foi uma lista de desejos. Foi na mãe que começou, na vontade que tinha de ter um filho compositor, e que a levava a andar obsessivamente com discos de música clássica, pondo-os a tocar para que no útero o ritmo fosse já participando na gestação. Admirava-se com o balanço que a harmonia criava, deixando margem para o impensável. Depois teve um sonho, soube de uma boca dessas encostadas ao ouvido que teria uma filha, e teve tempo ainda de se pôr a cantar com a barriga sobre um alguidar grande, para que intimamente pudesse incitar-lhe aquele assombro que galga a desafinação, um talento de tal modo instintivo que pudesse reorganizar tudo pela via da insubordinação. Foi como se a mãe invocasse esse «anjoserpente», «a pérola negra», essa natureza inquieta, capaz de outros tantos nascimentos, mil mestiçagens, «a filha sagradamente incestuosa de João Gilberto, alma gêmea de Caetano Veloso: Maria da Graça, Gracinha, Gau, Gal Costa». Assim se lhe referiu o professor, cineasta e ex-preso político Jomard Muniz de Britto, isto num texto que se esforçava por não quebrar a corrente nem o feitiço, espécie de atentado poético na capa do caderno de cultura do Jornal do Commercio do dia 7 de setembro de 1972, há 50 anos, na celebração tão confusa da efeméride dos 150 anos da Independência do Brasil, tão parecido afinal com o que ocorreu este ano, nos 200. Aquele destaque vinha dar conta do vendaval maravilhoso do espetáculo Gal a todo vapor na noite do dia 12 de outubro de 1971, no Teatro Thereza Rachel, em Ipanema. Dirigido pelo poeta Waly Salomão, como foi relembrado há uns meses pelo Suplemento Pernambuco, «o show-acontecimento dispunha Gal Costa no centro de um jogo semântico de luz e sombra que discorria sobre dor, saudade, fúria e tesão». «Eu sou uma fruta gogóia/ Eu sou uma moça/ Eu sou calunga de louça/ Eu sou uma jóia// Eu sou a chuva que móia/ Que refresca bem/ Eu sou o balanço do trem/ Carreira de tróia», ouviu-se logo no arranque, aquela voz embelecida pelo travo eletrizante do que não deixa de tocar as raízes para que dancem, e vai quase trôpega por uma canção do folclore baiano, apresentando de seguida uma nova geração de compositores, como Luiz Melodia, Moraes Moreira e o próprio Salomão, e músicos como Pepeu Gomes e Lanny Gordin, num balanço aqui doce, ali desesperado, apresentando tantas vezes aquele espetáculo que viria a impor-se como um dos momentos chave da contracultura (geração desbunde) no Brasil. Era um grito contra a ditadura militar, contra o sufoco e mal-estar, e até ao final do verão de 1972, esta índia vinha jurar por uma outra coisa, muito além, tão livre, banhada no halo da aparecida, toda aberta e externa, levantando as ondas de um mar impaciente, a rebentarem sobre aquele ambiente sombrio da época. Ali estava: Gal Costa, então com 26 anos e a sua «dengosa sensualidade transbaiana», aquele rosto para ir ao fundo de todos os reflexos, revirar as águas, afetando a expressão do mundo, um rosto que tinha nele «os rostos ávidos, emilianos, ofelianos vidrados por tudo». Ali estava uma artista que, depois de se lançar em 1967 como discípula do canto sussurrado de João Gilberto, estendeu a escala, alargou a composição à descompostura, tendo a coragem de não se assustar nem consigo própria, aprendendo com Janis Joplin aquele grito que rompe com o hímen que a ordem moral trata de recoser cá dentro. Quem a viu no palco, deu por si a testemunhar o modo como «devorou sua plateia, que nem ao menos desconfiava que estava sendo comida, num dos maiores banquetes da música viva popular livre brasileira». Gal era tocante e rude, barbaramente sedutora, capaz de fazer da flor uma faca, tudo num repente, variando, com aquela elegância indócil e até ameaçadora da serpente, aquela carnalidade própria de um ser que não acabou de definir-se, ou que vive em perpétua metamorfose, deixando espreitar entre cada gesto esse sobejo de luz, como um anjo. Ela trouxe uma sobrenatural desenvoltura a esse plano de absorção do mundo que foi o tropicalismo, com Jomard Muniz de Britto vincando como ela se tornou «a mais fiel intérprete da mensagem múltipla e cúmplice de Caetano e Gil». E talvez ninguém como Caetano Veloso tenha sido capaz de uma síntese tão radiante e justa de tudo o que veio com Gal Costa, notando como ela «participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas». Augusto de Campos no seu balanço da bossa nova e outras bossas não tinha dúvidas em distingui-la como «a maior cantora brasileira, aquela cujo uso instrumental da voz mais se aproxima do de João Gilberto». Mas se foi a única presença feminina no tropicalismo, Jomard não dá a mínima margem para esse lugar comum de vir tachá-la de ‘musa’, lembrando que foi Gal quem colocou nos ouvidos primeiramente e logo em seguida na boca de uma extensa classe média, bem geleia geral brasileira o ‘hino’ intimista do tropicalismo: BABY. «E este público inconscientemente cruel e estúpido e inocente e atrasado, que não podia ouvir Caetano sem resmungar, que não podia mesmo por fatalidade ‘histórica’, este público se deixou envolver por ‘GaubabyGal’. Então se deu a primeira aproximação entre o ‘espírito’ de vanguarda pop-musical e o gosto que sempre se enrosca do grande público, que ouve rádio e sobretudo adora televisão, salve, salve! Assim, por Gal Costa o tropicalismo se transformou em força de comunicação: além das bananas e bacalhaus do precursor genial Chacrinha.» No meio daquilo tudo era preciso ter olhos, e dá para imaginar até as fantasias que Gal terá inspirado nos surdos, naquele momento em que se soube mostrar «possuída pelas suas próprias vibrações», «cultivando seu múltiplo olhar, entre expectante e provocativo e etc., alisando sua barriguinha como se fosse um brinquedo consciente e concretíssimo». Jomard viu como ela deu a volta pelas entranhas da cultura e da civilização, como gerou o seu híbrido insaciável, e como a sua transpiração «foi tão contundente que chegou a perder o seu público inicial: o das carolinas muito mais margarinas do que indocilmente babys». É verdade que ela começou por impor «um espaço vivo de serenidade dentro da parafernália tropicalista», mas logo soltava «os cães adormecidos ou bem guardados em seu baú de prata – tempo do DIVINO-MARAVILHOSO. Um rompimento a partir de seus olhos acesos: ‘é preciso estar atento e forte!’».

No princípio era só talento e timidez
Gal era uma menina que morava na Rua Rio de São Pedro, na Graça, em Salvador da Bahia. Menina que tinha tudo ainda, o mundo inteiro como reflexo por onde ir descobrir-se, a menina que se lembrava de em pequena ficar para lá e para cá em frente da casa onde morava, trazendo uma galinha por um cordel, talvez por lhe faltar outro animal de companhia. Servia o que houvesse. O que havia de tão tocante nela aflorava na voz, como lembrou Caetano numa homenagem depois da notícia da sua morte, nas redes sociais. «A emissão da voz em Gal era já música, independentemente do domínio consciente das notas. E isso fazia com que o espírito dela expressasse subtilezas, pensamentos, sentimentos, asperezas, doçuras, de modo espontâneo». Fala-se da voz cristalina, de veludo, mas era uma voz de chegar onde fosse preciso, de ir a todo o lado, deslumbrando primeiro, mas, depois, mostrando-se sobretudo artista nas tantas vezes em que rejeitou o modelo embalsamador de diva, e se lembrou que o ofício manda pegar no arrepio doce que se causa e dar a volta, arrepiar com um toque de horror, uma dose inquietante de escândalo. Começou muito nova, incentivada pela mãe, que engravidou quando foi visitar o pai de Gal para despedir-se, uma última vez, e levou uma lembrança imensa. Se Mariah Costa Penna foi a primeira a levantar no escuro esse sussurro que é o modo como o sonho emprenha a imaginação, o pai, Arnaldo Burgos, embora tocasse violão, foi só aquele que não estava presente, tinha outra família, outros filhos, e acabaria por morrer na adolescência da filha, tinha ela 14 anos. Começou a cantar pouco depois e então a rádio tinha descoberto esse tumulto que cerca sem demasiado alarido o pulso, a bossa nova, com a voz e violão de João Gilberto, com a sua paciência devastadora, o canto depurado e intimista que marcou o registo de toda uma geração de sagazes caçadores de ritmos. E nem foi só a voz, até no visual a miúda ficou afetada pela descrição do mestre, indo ao ponto de masculinizar a sua imagem ao usar o cabelo bem curto quando se lançou em 1967, tocando violão e cantando ao lado composições com aquele acento que balança numa timidez insistente de quem engata criando hábito no coração. Antes, porém, começou por ganhar confiança em festas escolares, e como tudo rodava já em volta da música, arranjou trabalho como empregada de balcão numa loja de discos em Salvador. O encontro fatal com o seu gémeo musical, Caetano Veloso, de quem viria a gravar mais de 200 temas, deu-se em 1963, por intermédio da vizinha e amiga de infância, Dedé Gadelha, que viria a casar-se com Caetano. Sendo Caetano essa espécie de oráculo que revela o destino de quem chega a trazer alguma outra coisa à música, encontrar-se com ele foi dar um encontrão no seu futuro. Já no ano seguinte, 1964, ainda como Maria da Graça, participou no espetáculo Nós, por Exemplo, no Teatro Vila Velha de Salvador, cantando com Caetano, Gil, Bethânia, Carlos Lyra e, numa reposição em finais desse ano, também Tom Zé. Foi a estreia do grupo dos baianos.

No princípio ainda era só talento e timidez, e o primeiro disco que gravou era ainda de Maria da Graça, um single, de capa a preto e branco que saiu em 1965. Só no ano seguinte adotava o nome Gal Costa, por sugestão do empresário Guilherme Araújo, mas a sua participação no FIC, Festival Internacional da TV Rio, em 1966, ainda era sob o disfarce que a aparentava ao mestre, João Gilberto, e precisou do incitamento dos baianos, que, com o primeiro disco sob o título Tropicália, Panis et Circenses, lançavam as bases do movimento tropicalista, em 1968. Tratou-se de colocar a antena no ponto mais alto possível, captar influências que vinham muito para lá da frequência debitada pela telefonia, e desde logo as do rock e da pop art norte-americanos, com Gal Costa a ir buscar a Janis Joplin aquele impulso tempestuoso, mas já numa apropriação que sabia colocar em tensão e diálogo estéticas quase opostas, gerando a sua parabólica integradora. Não deixou de tocar violão e cantar sambas antigos nos espetáculos ao vivo, mas a postura foi-se alterando, foi descruzando as pernas, e às tantas já manejava o violão num enredo de malícia e provocação, com as pernas bem abertas, consciente dessa linha erótica, daquele corpo que, em palco, se abria como flor carnívora, deixando que a sua sensualidade significasse o desejo de afirmação da mulher, da sua autonomia e liberdade para dispor do corpo, para exercer simbolicamente a sua sexualidade. João Gilberto e Janis Joplin não eram sujeitos de um regime de esquizofrenia, mas ouvidos e trabalhados em conjunção com influências menos evidentes como Dalva de Oliveira, Carmen Miranda e Dorival Caymmi. O tropicalismo era sobretudo uma aprendizagem de um fulgor que busca dominar um registo de contrastes de forma a sair do lado do imprevisto, cercar da forma mais audaciosa, desdobrando-se, sendo plural. E Gal Costa veio a assumir-se como a primeira cantora moderna do Brasil, por essa abertura à diversidade, por um ecletismo articulado, elaborando «formas interpretativas cuja versatilidade lhe possibilitou o trânsito (com êxito) por diversos géneros musicais, como bossa nova, canção, forró, frevo, rock, jazz, ‘música brega’, samba etc.», como refere Rafael da Silva Noleto num artigo académico. «O mais importante desse trânsito pela diversidade», adianta, «é que, em nenhum desses estilos, Gal soa artificial, pois o seu canto tem um alto fator de adaptabilidade e é justamente esta característica que a qualifica como uma intérprete moderna dentro do âmbito da música popular nacional».

Assim, o tropicalismo foi uma escola de libertinagem musical, funcionando como um ‘álibi’, e permitindo ao artista, confiando na sua desenvoltura técnica, e particularmente Gal, que tinha na emissão da sua voz um poder que gostava de sentir as esporas a enterrarem-se nele e a acicatarem-no, explorando as direções mais diversas, sem precisar de pôr sela ao grito, capaz de saltar de repente para o sussurro ou o canto melodioso, deixando sempre tudo em aberto, colhendo amoras ou cuspindo pevides, dando-se ao luxo de ir do erudito ao brega sem o menor sinal de embaraço. De resto, essa licença que se atribuiu para seguir o seu instinto atrás de qualquer presa que se metesse por um campo estético de apuro duvidoso, nunca foi um impedimento a que, depois de algum falhanço estrondoso, no momento seguinte subisse ao palco ao lado de nomes como Tom Jobim, Chico Buarque, Jaques Morelembaum, Plácido Domingo, Luciano Pavarotti, entre outras figuras ligadas à música erudita. A sua genialidade estava na predisposição para dar tudo quer estivesse a cantar com os grilos ou acompanhada por uma grande orquestra. E era esta irrestrição própria de quem nunca perde de vista o que há de principal na sua entrega a que Gal Costa aludia numa entrevista que deu ao Público, em 2003, lembrando que «todas as fases por que passei são facetas da minha personalidade. A minha participação no movimento tropicalista foi politicamente importante, acredito. Mas na verdade a minha essência é o canto. Quando comecei, eu tinha por meta o canto perfeito, a voz como instrumento melódico, tinha João Gilberto como referência muito forte. Mas, acima de qualquer coisa que eu já tenha feito, eu sou uma cantora».

Manhã de sol
Nalgum momento, aquela voz veio com o seu embalo dulcíssimo, com a sua surpresa e gozo, aquele ânimo de quem sentimos que canta sorrindo, como na Modinha para Gabriela, tema do genérico da telenovela Gabriela, Cravo e Canela, estreada no Brasil em 1975 e que não demoraria a tomar de assalto Portugal dois anos depois. Mas depois, e além da voz, na obra de Gal Costa houve toda uma odisseia em tons de volúpia, no modo como cobria e descobria o corpo a partir da década de 1970, e que representou em si mesmo todo um efeito de exploração da feminilidade bastante ousado. Pôr os olhos nela era já ter um gosto renovado por esse sentido. Ele devolvia-nos a alegria de fixar sem a menor vergonha, prender com esses dois frutos de morder, e, deste lado do Atlântico, vinham à lembrança os versos do poeta modernista Oswald de Andrade nessa composição chamada ‘Erro de português’: «Quando o português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido/ O português.»

Gal trazia essa manhã de sol, voltando lá atrás, àquela descoberta que se frustrou, assinalando novas possibilidades de negociação, reivindicando outras coordenadas, mesclando admiravelmente influências que iam da cultura hippie norte-americana, do candomblé da Bahia, às rendas nordestinas etc., e tudo isso começava logo naquele cabelo que vinha alvoroçado, armação de medusa deslumbrante, invertendo preconceitos, lugares comuns, aquela juba orgulhosa, que simbolizava perfeitamente essa cerimónia de coroação do que está antes da vergonha, da culpa, do retraimento, da infelicidade que se impõe como ordem moral. De resto, a multiplicidade das significações associadas a Gal Costa e ao seu cabelo, foi explorada pelo artista plástico Hélio Oiticica ao desenvolver a capa e o design gráfico do LP LEGAL (1970), com uma fotografia em que os cabelos de Gal envolvem vários ícones da cultural e do imaginário popular da juventude brasileira e mundial, desde Gilberto Gil e Waly Salomão a James Dean. O cabelo funciona como um friso ou uma moldura rebelde que liga figuras e eventos representativos das tensões políticas, sociais e artísticas da época. E isto numa época em que, com Caetano Veloso e Gilberto Gil exilados em Londres, Gal ficara no Brasil como uma espécie de representante do grupo baiano tropicalista. Como sublinharia Caetano, «seu show ‘Fa-tal/ Gal a todo vapor’, dirigido por Waly, era o dínamo das energias criativas brasileiras – e todos os artistas, cineastas, jornalistas e jovens reconheciam isso.» Era uma atitude de desafio constante e que trazia para o espaço público uma série de peças que podiam ser combinadas e conjugadas em variações que denunciavam esse figurino do cidadão respeitável, cinzento e tristonho e que não passa de uma farda oficial que caracteriza os regimes opressivos. E a propósito do impacto que o estilo e atitude de Gal Costa teve na vida da geração mais jovem, Caetano Veloso notava que «os próprios cineastas do Cinema Novo tinham deixado seus cabelos crescerem, queimavam fumo e tomavam ácido. Gal era musa desse universo. Um trecho da praia de Ipanema que ela frequentava (…) ganhou o apelido de ‘Dunas da Gal’. Em Salvador os desbundados se encontravam na praia do Porto da Barra. (…) Ali – como nas dunas da Gal – os rapazes não usavam sungas de praia, mas as cuecas mínimas (e um tanto transparentes) que já traziam por baixo das calças. E alguns casais homossexuais (sobretudo femininos) não se esforçavam muito em esconder suas carícias». Caetano refere ainda como os espetáculos de Gal Costa se tornaram portos seguros para toda uma fauna que, fosse pelas suas opções sexuais, ideológicas ou comportamentais, se sentia marginalizada e que ali encontrava essa margem para se expressar livremente, uma vez que «tanto o submundo urbano noturno quanto as trocas clandestinas de sexo, por um lado, e, por outro, tanto a homossexualidade enquanto dimensão existencial quanto a bissexualidade na forma de mito andrógino eram temas tropicalistas». De resto, o poder encadeador na forma como Gal Costa e Caetano Veloso se entregavam a esse jogo como gémeos que se perdiam um no reflexo do outro, levando a androginia a um ponto em que a sensualidade dos dois não permite exatamente estabelecer onde acaba o apelo de um e começa o do outro, assim desestabilizando a dicotomia dos géneros feminino e masculino, essa foi outra forma de troçar da noção de decência da época. E para lá das muitas imagens que continuam a fascinar-nos décadas depois, prova do efeito de hipnótica sedução que Gal teve surge numa reportagem da revista Bizz que, em 2006, quando se assinalavam os 35 anos da tournée FA-TAL, recolheu testemunhos de personalidades que assistiram ao espetáculo, como, por exemplo, a jornalista Ana Maria Bahiana, que afirmou que Gal Costa «era objeto do desejo de homens e mulheres». E a própria cantora recordava: «Ouvi de amigos que, durante o show, havia meninos e meninas se masturbando». Mas para lá desta dimensão erótica que Gal soube explorar ao longo de toda a sua carreira, é importante lembrar como, mais tarde, em 1994, quando estava próxima dos 50, expôs os seios na apresentação da tournée O sorriso do gato de Alice no Rio de Janeiro. Falou de um protesto de sentido político, mas é evidente que, ao revelar a sua nudez, Gal Costa colocou-se novamente na mira do regime moral conservador, aceitando o enxovalho e renegando a posição de «grande dama da voz», para lembrar que, passasse o tempo que passasse, a índia não se deixaria envergonhar ao ponto de ser afogada com o resto da civilização debaixo desta bruta chuva.