‘O primeiro inverno em que vamos deixar o vírus circular livremente’

No início desta semana, as doenças respiratórias levaram ao aumento da afluência ao Hospital de Santa Maria. O Nascer do SOL falou com o médico Ricardo Mexia e o especialista Tiago Correia para entender o que poderá estar em causa.

‘O primeiro inverno em que vamos deixar o vírus circular livremente’

Mariana (nome fictício), de 77 anos, foi operada aos joelhos e, quando estava no pós-operatório, começou a tossir, a espirrar e a sentir dores no corpo. A filha, com quem passara as últimas semanas, já estava internada com gripe A e o seu diagnóstico viria a ser o mesmo. «Passei muitos dias com ela e apanhei também. Só me faltava isto. Quero dizer, fui operada e ainda tenho este vírus maldito. Mas, felizmente, estou a melhorar», diz a idosa, explicando que, após ter tido alta, foi para casa do filho. Até agora, tanto o marido da filha como a neta, o filho e os netos não têm um diagnóstico positivo: apenas Mariana e a filha.

«Não sei bem como é que isto acontece, mas parece ser parecido com a covid-19. Quando apanhei, também uns ficaram infetados e outros não, mas todos estiveram em contacto comigo e uns ao pé dos outros aqui em casa», sublinha, quatro dias depois de ter sido submetida à intervenção cirúrgica. «Estou a tomar alguns medicamentos, já não me recordo dos nomes, mas não é apenas Ben-u-ron nem Brufen como a maioria das pessoas diz que está a tomar», salienta, recordando que sintomas como «os arrepios de frio» já passaram.

«E ainda bem, porque já vi, nas notícias, como estão as urgências. Que horror, coitadas das pessoas e coitados dos médicos e enfermeiros», afirma, referindo-se à invulgar afluência ao Hospital de Santa Maria devidoa doenças respiratórias. Ao início desta terça-feira, o tempo de espera oficial nas urgências daquele hospital era, em média, de nove horas e havia quem esperasse entre 20 e 24 horas para ser visto por um médico. Por aquilo que se sabe, o aumento do tempo de espera deveu-se à enorme procura do serviço de urgências. «Na última segunda-feira, dia 7 de Novembro, o CHULN atendeu um total de cerca de 700 episódios de urgências, valores em linha com os registados no mesmo período de 2019, no pré-pandemia», lê-se numa nota enviada à CNN Portugal.

«Este ano em Portugal, como na generalidade dos países da Europa e como já tinha ocorrido no hemisfério sul, houve uma certa antecipação de alguns dos vírus respiratórios», disse Manuel Pizarro no final do Conselho de Ministros de quinta-feira. Face a este cenário, foi antecipado o plano de vacinação para 07 de setembro, ao abrigo do qual já foram vacinadas quase dois milhões de portugueses contra a gripe e com o reforço da covid-19. «A verdade é que, com algumas perturbações de funcionamento, que são muito difíceis de evitar nessas circunstâncias, os hospitais foram capazes de dar a resposta devida», disse ainda o ministro.

«A situação é hoje, felizmente, bastante mais calma do que a que ocorreu nos últimos dias», concluiu. Quem o confirma é Sandra, de 37 anos, que sofre muito com alergias e teve de recorrer às urgências, na zona da Grande Lisboa, por ter sentido, pela primeira vez, falta de ar. «Correu tudo normalmente. Não houve qualquer problema, fui atendida e medicada na madrugada de quinta-feira. Com Ben-u-ron para as dores de cabeça com que fiquei, sim, mas principalmente com um antialérgico mais forte e não com os de compra livre que estava a tomar», conta, explicando que ficou «muito mais aliviada» por ter sido vista por profissionais de saúde e parar de se automedicar.

«Não tenho muito dados para além daqueles que são públicos, mas, na prática, o que nos preocupa é que sem medidas de controle da transmissão a gripe e outros vírus voltem associados à questão da covid-19», começa por declarar Ricardo Mexia, médico de Saúde Pública e epidemiologista. «Há aqui um conjunto de fatores que pode influenciar a Europa. Olhando para o hemisfério Sul, principalmente para a Austrália, entendemos bem aquilo que pode vir a acontecer».

«Acerca da maior afluência às urgências, é sempre uma questão complicada: é a porta que as pessoas encontram aberta e que acham que lhes resolve o problema. Uma parte das urgências poderia ser resolvida noutros pontos de saúde. Temos de dar literacia em saúde, a linha SNS24 é importante, temos igualmente de fornecer ferramentas aos cidadãos para perceberem aquilo que podem resolver fora dos hospitais…», reflete o membro do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge que explora, com particular atenção, a área das doenças transmissíveis, tendo estado envolvido na investigação e controlo de diversos surtos (como o da Doença dos Legionários no Hospital de São Francisco Xavier em 2017).

«Obviamente que existe margem para melhoria. É bem possível que venha a acontecer mais vezes porque, até há bem pouco tempo, estávamos com um clima mais quente, não havia propriamente frio. Agora precisamos de estar mais atentos. Sobre a covid-19… Não sabemos bem, as próprias pessoas não se estão a queixar…», reconhece o profissional de saúde. «A incidência atual que conhecemos talvez não esteja muito próxima da real, essa é uma dificuldade. Em relação às reuniões no Infarmed, haver um interface entre a ciência e o decisor político parece-me uma boa estratégia. Este modelo adotado não sei se será o ideal, mas isso não é de agora. Em locais mal ventilados e com muita gente, deve ser usada máscara», recomenda o médico responsável pela vigilância epidemiológica de diversos eventos de massas como o Festival BOOM, o Festival Andanças ou o Centenário da Peregrinação a Fátima.

«Os mais vulneráveis, como idosos, também devem usá-la. Temos de ir adotando as medidas a par e passo para termos vantagem. Conseguimos equacionar isso sem alterar aquilo que seria a nossa vida habitual, não é tão difícil quanto se possa pensar», avança no dia em que as reuniões no Infarmed voltaram a realizar-se. A primeira sessão de apresentação sobre a ‘Situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal’ decorreu, esta sexta-feira, pelas 9h, no Auditório do Infarmed, em Lisboa. No início, o matemático Carlos Antunes disse que a avaliação da situação pandémica deve ser feita pela «gravidade da doença e não pelo n.º de casos», adiantando que foi registado um aumento de óbitos e internamentos, mas «não significativo».

Uma viagem pelo passado com vista para o futuro

«Para aprender é preciso memória», frisou o epidemiologista Henrique Barros, dando o exemplo da lavagem das mãos como «uma medida central de prevenção» que, na sua ótica, deve continuar a ser valorizada. «A pandemia atual é demasiado complexa para ser analisada com modelos simples. Há imensas coisas que nós nem sequer sabíamos que não sabíamos», avisou, fazendo um périplo por todos os ensinamentos apreendidos desde a confirmação do primeiro caso do novo coronavírus em Portugal e dizendo que «em fevereiro de 2020, já se conhecia a necessidade de prevenção, a centralidade da vacina como resposta na altura, que se sabia que era difícil, mas importante».

«É importante também olhar para a série dos primeiros 99 casos. Nas únicas mortes, o único fator de risco que tinham era ser fumadores», avançou antes de sugerir que os portugueses voltem a usar a aplicação Stayaway Covid. «Parece que as pessoas tinham medo que a máquina lhes tirasse o lugar», indicou. «É preciso investir na melhoria desta aplicação», defendeu, mas a mesma já não está disponível desde o passado mês de setembro. Para Henrique Barros, podemos tirar quatro lições desta pandemia: «a resposta deve dar prioridade às desigualdades», sendo que existe um «risco aumentado nos migrantes, com casos graves»; «as vacinas são centrais», sendo que «nunca se investigou tanto» e «havendo vacinas disponíveis, as pessoas devem vacinar-se». Porém, «a vacina não é tão ótima como gostávamos»; «temos de trazer as pessoas para as decisões» e a precaução sobre «os esforços de vigilância e de resposta».

Depois da intervenção de Henrique Barros, falou João Paulo Gomes, do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, abordando a evolução genética do vírus SARS-CoV-2, desde os 12 meses da estirpe original, passando pelas variantes Alfa, Delta e Ómicron. Atualmente, sabe-se que existe uma subvariante a crescer em frequência, a BQ.1.1. «Quando uma sublinhagem aumenta em frequência, isso só significa uma coisa: é mais transmissível», apontou, referindo-se igualmente à XBB, que causou picos de casos em Singapura e na Índia. Estas apresentam «uma capacidade de fuga ao sistema imunitário muito superior» em relação a linhagens anteriores. Por enquanto, a BA.5 continua a ser dominante em território nacional.

Logo de seguida, interveio o médio infecciologista Carlos Alves. «As medidas não farmacológicas são importantes, mas as medidas farmacológicas tiveram um papel consensual e fizeram a grande diferença na pandemia», observou, constatando que a vacina constituiu a «medida que mais impacto teve na pandemia». «Desde ontem temos uma nova vacina proteica. Foi feita a recomendação de aprovação para a EMA. E foi aprovada uma vacina de vírus inativados, que está autorizada para esquema de vacinação primária, mas que ainda não foi utilizada em Portugal».

«Estar vacinado faz a diferença», afirmou, «não podemos ir atrás da vacina que tem a variante do dia (…) as vacinas mantêm a eficácia para aquilo que é importante, que é prevenir para a severidade da doença», rematou, seguindo-se a intervenção do coronel Carlos Penha Gonçalves, que coordena o processo de vacinação contra a covid-19 no país. Até agora, 338 mil pessoas já receberam três doses de reforço, 1,4 milhões de pessoas duas doses de reforço e quase 4,7 milhões têm uma dose de reforço.

Por outro lado, o militar anunciou um aumento de 10% na capacidade vacinal para permitir vacinar as pessoas com mais de 50 anos até ao final deste ano. Adiantou que a estrutrura montada está com capacidade para 290 mil vacinas por semana e que o aumento desta capacidade pode ser feito sem alterar o dispositivo atual. «Este aumento de 10% da capacidade vacinal pode ser feito sem alteração do dispositivo, permitindo vacinar as pessoas acima 50 anos antes do fim do ano», referiu. Penha Gonçalves destacou que estão a funcionar 395 pontos de vacinação no país, 322 pontos em estruturas de saúde, 65 pontos em estruturas municipais e oito em estruturas de outras entidades, sublinhando que «44% da capacidade vacinal está nas estruturas municipais».

«O ponto de equilíbrio foi oscilando»

«Não está prevista a adoção de medidas de saúde pública de caráter obrigatório. Agora é uma questão de literacia em saúde», afirmou o ministro da Saúde à saida da reunião no Infarmed. «Todos temos a obrigação de ter aprendido com a pandemia que precisamos de lavar mais as mãos, por exemplo. Se estivermos com infeção respiratória, por mais vulgar que ela seja, sabemos que temos de ficar em casa ou usar a máscara para proteger os outros se estiverem em contacto com outras pessoas».

Manuel Pizarro realçou a importância de dar continuidade ao processo de vacinação: «Começámos esta última fase da vacinação, esta fase atual, no dia 7 de setembro», frisou, indicando que os resultados são «muito animadores». «Temos quase 1,9 milhões de portugueses vacinados contra a gripe e com uma dose de reforço contra a covid-19, mas temos de prosseguir. (…) A nossa meta é chegar aos três milhões de portugueses», assumiu, referindo-se às pessoas de «maior vulnerabilidade», incluindo as pessoas mais idosas.

Acerca do eventual regresso da obrigatoriedade de usar máscara, como acontece nos transportes públicos em Espanha, asseverou que está na hora de «virar a página do período mais difícil desta pandemia», evidenciando que «temos de fazer, sobretudo, uma mensagem de pedagogia». «As pessoas que estiverem doentes, mesmo que se trate de uma vulgar constipação, de uma infeção ligeira, tenham uma dor de garganta, tenham corrimento nasal, devem usar máscara sobretudo para proteger os outros», sublinhou o ministro.

«Claro, as pessoas que sintam porventura mais fragilizadas, em função da sua idade, de saberem que têm outras doenças, têm doença respiratória, outras situações de risco, se usarem a máscara, isso é uma atitude que deve ficar com uma avaliação de cada um», aconselhou. «Nós temos mesmo que virar a página do período mais difícil desta pandemia. Mas virar a página não significa decretar o fim da pandemia de covid-19 ou desvalorizar essa e outras infeções respiratórias. Significa aprendermos a lidar com essa situação de uma forma que nos permita um convívio social que também é essencial para a nossa saúde coletiva, que também tem uma componente muito importante em matéria de saúde mental».

'Os sinais são promissores'

«O ponto de equilíbrio foi oscilando em vários momentos e, portanto, significa que há momentos que poderão ser ligeiramente melhores ou piores e poderão obrigar a medidas mais ou menos intensas em função das circunstâncias», diz Tiago Correia, especialista em saúde pública internacional e professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT). «Falarmos disto não é apenas falarmos da covid-19, mas sim também de outras doenças respiratórias: quando digo que estamos numa zona de incerteza é na gestão de todas estas doenças sazonais onde a covid é mais uma delas».

A tendência é que os contágios aumentem – quanto às consequências, há poucas certezas, diz o especialista. «Sabemos que, nesta altura do ano, as pessoas contactam mais, é transmissível, mais facilmente se propagará e, à partida, mais pessoas terão mais contacto com o vírus», explica. «Quando estamos à procura do ponto de equilíbrio e temos um grau de incerteza inerente à covid – porque este é o primeiro inverno em que vamos deixar o vírus circular livremente -, esta é uma primeira dúvida para a qual estamos relativamente confortáveis devido à vacinação: ninguém tem certezas, mas os sinais são promissores», explica o professor que estuda os sistemas, as organizações e profissões de saúde assim como a epistemologia médica e a teoria social aplicada à saúde.

«Outra coisa é perceber que há grupos populacionais, nomeadamente as crianças pequeninas, a terem contacto com vírus com os quais nunca contactaram. Não significa que as pessoas começarão a morrer mais, mas poderá haver sintomas clínicos mais severos. E é isso que tem acontecido durante as primeiras duas semanas deste mês», constata. «Estamos a falar de crianças que praticamente tiveram contactos sociais muito reduzidos e estão a ser introduzidas à ‘normalidade’ que nós conhecíamos. Elas já são propensas a infeções, isso está em cima da mesa». 

«Continuamos a não ter uma bola de cristal: essa expressão que usei, na entrevista ao i, há dois anos, continua a ser correta. Quando digo isto é porque estamos num novo inverno em relação aos anteriores. As circunstâncias são diferentes e não podemos projetar aquilo que aconteceu no passado e há duas principais diferenças: a população amplamente vacinada e o vírus vai circular. E a terceira diferença é o facto de termos variantes distintas», admite Tiago Correia. «Não conseguimos antever o real impacto destas medidas que, à luz da realidade dos países, parecem-me adequadas. É o momento da tal monitorização, vigilância, atenção: é a mensagem principal da reunião desta sexta-feira e e os portugueses podem estar confiantes de que isso está a acontecer».

Apesar dessa nota de confiança, o professor admite que há aspetos que o preocupam. «Aquilo que mais me assusta neste momento é ver que, mesmo que não haja uma situação caótica, o Governo tenha dito que os casos de pressão nos serviços hospitalares foram pontuais. Recordo que os profissionais de saúde estão muito cansados. Não só levaram com o embate da pandemia diretamente como depois foram chamados à recuperação dos doentes não covid, consultas, rastreios, etc. Tudo aquilo de que não precisam neste momento são picos de pressão. Tendencialmente, eles acontecerão», alerta. «Mas, nesta fase, seria importante minimizá-los. Por isso, os planos de contingência já deviam estar cá fora porque os profissionais vêm de circunstâncias muito desfavoráveis e os decisores políticos deviam estar muito preocupados», recomenda o especialista que desenvolve também atividade enquanto investigador associado do CIES-Instituto Universitário de Lisboa e é ainda membro do Centro Colaborador da Organização Mundial de Saúde para as Políticas e Planeamento da Força de Trabalho em Saúde, da comissão executiva da Sociedade Europeia para a Saúde e Sociologia Médica.

«Uma outra preocupação tem a ver com o facto de estarmos com registos de mortalidade excessiva, superior àquilo que aconteceu em 2021. Significa que, mesmo com a covid relativamente controlada, há pessoas a morrer por causas que não são inteiramente claras, não sabemos bem quem são estas pessoas dos pontos de vista social, etário, económico, etc. Alguma coisa está a acontecer de mal e não podemos ignorar isto. Não me interessa apenas a covid: é mais uma doença e, claramente, há mais que afetam a saúde dos portugueses», finaliza.