NATO perdoa Kiev, mas Zelensky nega ter atingido a Polónia

A culpa é do regime de Putin, que tornou a Europa de Leste um “campo de batalha imprevisível”, acusou Podolyak. Já na imprensa russa é notório um certo “regozijo” com o embaraço de Kiev.

A queda de um míssil em território da NATO, numa aldeia polaca, causando duas vítimas mortais, foi seguida de uma noite de especulação febril. Incluindo acusações da parte de Volodymyr Zelensky de que fora uma “escalada muito significativa” cometida pelo Kremlin. À luz do dia, analistas estão cada vez mais convencidos de que o míssil era de facto um modelo russo – mais concretamente soviético, dado que os destroços indicam que se trate de um míssil disparado pelos S-300, os velhos sistemas antiaéreos que a Ucrânia tem usado para travar a invasão.

Dado que o alcance destes sistemas não costuma ultrapassar os 150km, parece improvável que o míssil tenha sido disparado pelos russos. Provavelmente os S-300 da Ucrânia estavam a ser utilizados para tentar intercetar mísseis do Kremlin – que passou o dia a conduzir ataques contra a infraestrutura elétrica dos vizinhos, incluindo em Lviv, muito próximo da aldeia de Przewodów– e falharam o alvo.

“Deixem-me ser claro, isto não é culpa da Ucrânia. A Rússia tem responsabilidade última por continuar a sua guerra ilegal contra a Ucrânia”, salientou o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, à saída de uma reunião de emergência com embaixadores em Bruxelas, esta quarta-feira. “Não temos indicações de que isto seja resultado de um ataque deliberado e não temos nenhuma indicação que a Rússia esteja a preparar ataques militares ofensivos contra a NATO”, assegurou Stoltenberg.

Já o Ministério da Defesa russo garantiu que a campanha de bombardeamento de terça-feira não tinha visado nenhum alvo a menos de 35km da fronteira da Polónia. “As declarações de diversas fontes ucranianas e dirigentes estrangeiros sobre alegados ‘mísseis russos’ caírem sobre a aldeia de Przewodów são uma provocação deliberada com o objetivo de escalar a situação”, declarou em comunicado, visto pela TASS.

Este desmentido não é particularmente útil para perceber o que de facto se passou, dado o hábito do Kremlin de negar até os incidentes mais óbvios. Mas chega a haver uma sensação de “regozijo” na imprensa russa, de que “há um certo prazer com isto entre algumas secções do aparato de porta-vozes” de Vladimir Putin, apontou Shashank Joshi, editor para Defesa do Economist.

A própria NATO recorreu aos dados sobre o sobrevoava a Polónia no momento do impacto do míssil para apurar a rota deste, avançou uma fonte militar da Aliança à CNN. É sabido que a NATO usa os seus aviões-espiões E-3 para monitorizar manobras dos russos à distância, em tempo real, e que essa informação, vai parar às forças ucranianas, contribuindo muito para o seu sucesso no campo de batalha.

Estes aviões-espiões “têm uma resolução tal que conseguem seguir um bando de gansos”, explicara há uns meses Walter Dorn, professor no Royal Military College of Canada, ao canal CBC. Quando mais um míssil…

Apesar das evidências preliminares, apontadas até por alguns dos seus aliados mais próximos, Zelensky insistiu em negar que a Ucrânia tivesse algo a ver com as duas mortes em Przewodów. “Não tenho dúvida que não foi um míssil nosso”, assegurou o Presidente ucraniano à agência Interfax. Explicando que tinha sido informado disso pelas suas forças armadas e que “não podia senão confiar” nestas.

O incidente não só envergonhou Kiev, como poderá levar a um reforço das linhas de comunicação entre a NATO e Moscovo, de maneira a evitar uma escalada acidental do conflito. “Precisamos de garantir que quando incidentes ou acidentes acontecem, não há uma guerra a decorrer na vizinhança, que isto não foge de controlo”, explicou Stoltenberg, em entrevista à BBC.

O secretário-geral da NATO salientou que no que toca a negociar “a decisão cabe à Ucrânia”. Admitindo, no entanto, que “em algum ponto esta guerra provavelmente acabará na mesa de negociações”. Ressalvando que “o resultado dessas negociações estará intimamente ligado à força no campo de batalha”.

Enquanto Zelensky tentava negar que o míssil que caiu em Przewodów tivesse sido disparado pela Ucrânia, o seu conselheiro Mykhailo Podolyak, teve uma posição mais em linha com a NATO. “É preciso seguir apenas uma lógica. A guerra foi iniciada e está a ser conduzida pela Rússia”, explicou, em declarações à Reuters. “Não pode haver nenhuma outra explicação para qualquer incidente com mísseis”, rematou o dirigente ucraniano. “A Rússia tornou a parte leste do continente europeu num campo de batalha imprevisível”.

 

Terror além-fronteiras

Até terça-feira, o horror que vive a Ucrânia não se sentia muito em Przewodów. Mas tudo mudou de um momento para o outro. Esta pacata aldeia dedicava-se a secar a sua colheita de cereais quando foi abalada por uma explosão, vitimando um agricultor e um funcionário da única loja local, o “centro da comunidade”, relatou Jevhen Kozak, que morava mesmo ao lado da quinta onde caiu o míssil, falando a um repórter da BBC.

Subitamente, estradas por onde raramente transitava alguém encheram-se de polícia, paramédicos, militares e jornalistas de todos os cantos do mundo. “Estou apavorada, duas pessoas que conhecíamos muito bem morreram”, lamentou à Reuters Joanna Magus, professora numa escola primária que fica a apenas 100 metros do local da explosão. Muitos passaram a ter receio de deixar os seus filhos brincar na rua, ao contrário do habitual.

O receio não desaparecerá tão cedo desta aldeia, nem de outras localidades nos arredores da fronteira ucraniana. Por mais que analistas apontem que arsenais de mísseis de cruzeiro russos – como os X-101 e X-55 que foram o grosso dos bombardeamentos de terça-feira – se estão a esgotar, o Kremlin dispõe dos drones iranianos e tenta comprar mísseis a Teerão. Sendo que a Ucrânia não vai desistir de proteger a sua rede elétrica, estando também em risco de ficar sem munições caso a NATO não acelere o envio de mais.

“Há medida que os stocks de munições de alta precisão se esgotam, mais armas menos avançadas serão usadas”, como os S-300, salientou Frank Gardner, correspondente para Segurança da BBC. “Com o risco inerente de falharem o alvo”.