O mundo-sombra de Alfred Kubin

Alfred Kubin não era de modo algum um homem vulgar. Certo dia, viu-se tomado por uma ‘força tenebrosa’ que fez nascer no seu espírito ‘visões de situações grotescas e apavorantes’.

Para que servem aqueles papelinhos, mapas, bilhetes de comboio e panfletos de museus que trazemos das viagens e encafuamos num sítio qualquer? Para ficarem a ganhar pó e a desfazer-se? Não necessariamente. Um destes dias encontrei esquecido no fundo duma gaveta o panfleto de uma exposição visitada em 2008. O desenho bizarro que ostentava chamou-me a atenção. «Uma das conquistas marcantes do pensamento moderno é o reconhecimento do inconsciente», li ao abrir o panfleto, num pequeno texto assinado pelo diretor da galeria onde a exposição decorreu. «É este mundo-sombra – dos impulsos não controlados, dos desejos e medos primitivos – que o artista Alfred Kubin explora magistralmente. Os seus desenhos misteriosos enraízam-se num domínio firme da arte do desenho. Mas ao combinar a técnica refinada com uma fantasia desabrida, Kubin dá vida a visões surpreendentes ‘do outro lado’».

Mas que ‘outro lado’ é esse a que se referia o diretor da galeria? Nascido em 1877 na atual República Checa e amigo de Kafka – seu admirador confesso -, Alfred Kubin não era modo algum uma personalidade vulgar. Tinha uma obsessão pela morte: não por acaso, a capa da sua autobiografia, embora se chame A minha vida, exibe o desenho de um esqueleto apoiado num gadanho.

Esta propensão doentia pode ter resultado do facto de Kubin assistir ao passamento da própria mãe, tinha ele dez anos. «Foi o primeiro ser humano que vi morrer. Estava à sua cabeceira quando ela recebeu a extrema-unção; em seguida, despediu-se de mim e do meu pai». A descrição de como o progenitor levantou da cama os magros despojos mortais da mãe e andou com eles nos braços pela casa fora é igualmente impressionante.

O jovem acabou por ir estudar para Salzburgo, vivendo quase como um selvagem e tornando-se cada vez mais distante do pai. Uma das suas distrações favoritas, nessa época, era observar os cadáveres em decomposição que o seu protetor, o coveiro, resgatava do rio. «É daí que vem o meu interesse pronunciado por essas coisas horríveis», escreveu na autobiografia. À curiosidade mórbida, juntava-se a tentativa de compreender a morte e os seus mistérios.

Como seria de prever, a sanidade mental de Kubin ressentia-se. E um dia, quando prestava serviço militar, teve um colapso nervoso, um pouco à semelhança do que sucedera com um dos seus heróis, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche.

Noutra ocasião, depois de ter estado num music hall, vagueou pelas «ruas sombrias», e sentiu-se «literalmente violado por uma força tenebrosa que fazia nascer como que por magia no meu espírito visões de animais estranhos, de casas, de paisagens, assim como de situações grotescas e apavorantes».

Quem olhar para os desenhos e gravuras de Kubin perceberá até que ponto estas palavras são precisas. O ‘outro lado’ referido pelo diretor da galeria que organizou a exposição de 2008, era, portanto, o avesso da razão, as fantasias e os pesadelos do mundo interior.

Antes de voltar a guardá-lo, desdobrei por completo o panfleto. Ao virá-lo, tive uma bela surpresa: o outro lado acabou por revelar-se um pequeno cartaz com um magnífico e sombrio desenho de Kubin de 1900-1901, intitulado The Lady on the Horse (A senhora no cavalo). Uma autêntica relíquia, que me fez pensar que vale mesmo a pena trazer a papelada das viagens. E tirá-la das gavetas de vez em quando.