Pequena história de um país que até Portugal não quis

Os primeiros historiadores dos Povos Árabes ignoraram pura e simplesmente os habitantes e o lugar. Um deles, John Bagot Glubb, não se limitou a fazer de conta que nada ali existia como ainda insultou quem perdia tempo a estudar o assunto. Agora, está no centro do Mundo por causa do Mundial de futebol.

Nascido em Preston, no dia 16 de Abril de 1897, John Bagot Glubb tornou-se num figurão, sobretudo depois de ser limpo de um resto de timidez que lhe sobrava após deixar os estudos no Cheltenham College e entrar nos Royal Engeneers, o famoso corpo de sapadores do Exército Britânico, no ano de 1915. Combateu na frente de batalha durante a I Grande Guerra e saiu dos combates com os queixos partidos à conta de uma bala perdida que, por pouco, não lhe atravessou o cérebro. Em 1920 estava no Iraque, transformado num protetorado do Reino Unido, chefiando um destacamento cuja missão era manter os territórios pacificados por ordem da Liga das Nações. Ficaria para sempre apaixonado pelos países árabes e os árabes, por sua vez, encantados com aquele homem que aprendera depressa a sua língua e tinha profundo respeito pelos seus costumes, ao contrário do que acontecia com a maior parte dos ocidentais que para lá eram enviados. Ganhou uma alcunha – Abu Hunaik: o Queixada Pequena. A bala não lhe dera cabo da vida mas deixara-lhe marcas para sempre. Passou para a Legião Árabe, na altura o exército regular britânico instalado no que era apelidado como Emirado da Transjordânia. Podia continuar a soltar expressões muito particulares como «Taly-hoo», «For God’s sake!» e «Fuckin’ hell!», mas absorveu profundamente a vivência do deserto e dos seus povos. E, como bom inglês, nunca perdeu o sentido de humor. Por outro lado, com o passar dos anos, começou a sofrer os custos do isolamento e foi perdendo a noção da relatividade. Transformou-se a pouco e pouco num tiranete barato, sobretudo quando, já com o cargo de Tenente-General, formou a Patrulha do Deserto, uma força paramilitar que tratou de contrariar qualquer tipo de tendência independentista por parte dos beduínos. Primeiro gostaram dele; finalmente odiaram-no. Mas deixou um dos livros mais interessantes que alguma vez se escreveu sobre a região do Golfo Pérsico, que agora é mais politicamente correto chamar de Golfo Arábico: A Short History of Arab Peoples. Prolífico como nenhum outro, publicou cerca de trinta títulos sobre os locais em que viveu a maior parte da sua vida. Curiosamente, ao longo das descrições que faz sobre todas as regiões que visitou, ignorou pura e simplesmente o Qatar. Nem sequer se deu ao trabalho de assinalar o nome nos mapas que desenhou. Na sua autobiografia, A Soldier With the Arabs, teimou na ignorância. Que diacho!, o Qatar é um país pequenino, com apenas 11.437 km2, mas não merece ser ignorado. Tem uma história como todos os outros. Mesmo que não seja grandiloquente. E, neste preciso momento, por causa do Campeonato do Mundo de futebol está no centro do mundo. O que nos faz querer saber mais alguma coisa ou outra sobre ela. 

Nem os portugueses…

Quando os arqueólogos começaram a escavar as areias do deserto onde o Qatar se situa, estavam convencidos que iriam encontrar alguma ligação com o Império Dilmun (também chamado de Telmun), um centro civilizacional de língua semítica-oriental que foi apontado pelos historiadores como tendo o seu início datado no terceiro milénio A.C. Enganaram-se. Dilmun teve raízes no Bahrain – uma pequena ilha mesmo em frente à Península do Qatar -, no Koweit e na Arábia Saudita, mas não surgiram vestígios no que é hoje o Qatar como território. Estranhamente, pode dizer-se, já que a proximidade é grande. Tudo leva a crer que era um sítio demasiado agreste para os gostos de qualquer ser humano. Andamos para a frente no calendário e encontramos outro dado interessante: em toda a zona do Golfo Pérsico (desculpem lá o mau jeito, mas vem dos tempos de escola), o Qatar é o único país com orla marítima onde não se conseguem encontrar ruínas de fortes portugueses. O que quer dizer que nem quatro mil e quinhentos anos depois do Império Dilmun, os marinheiros lusos se interessaram pelo local. E não se pode afirmar com grande firmeza que fossem uns tipos esquisitos. Ora, a conclusão mais acertada a tirar sobre este dado é que, durante o século XVI o território nunca foi habitado. E sem gente, sobra a areia que, como sabemos, costuma escorrer facilmente por entre os dedos. Mas havia o mar. E o mar dá peixe. Aos poucos, uma comunidade de pescadores instalou-se principalmente em Zubarah, a norte. Em seguida, adotaram outro tipo de comércio que veio a dar fama à região: o negócio das pérolas. Ora bem, por pérolas já os nosso compatriotas de então se interessavam. No entanto, o centro mercantil das pérolas instalou-se no Bahrain, votando de novo ao abandono a zona qatari. Se preciso for, deixemos que Camões o conte, nos Lusíadas: «Ali do sal os montes não defendem/ De corrupção os corpos no combate/ Que mortos pela praia e mar se estendem/ De Gerum, de Mazcate e Calaiate/ Até que à força só de braço aprendem/ A abaxar a cerviz, onde se lhe ate/ Obrigação de dar o reino único/ Das perlas de Barém tributo rico». Estivemos mesmo à beirinha mas não dos demos ao trabalho de atravessar o estreito.

Uma questão de famílias

É necessário caminhar até meados do século XVIII para depararmos com a família Al-Thani, dominadora da península. Os Al-Thani são um ramo da tribo beduína dos Tamin, inicialmente nómadas, mas que acabaram por se instalar nas redondezas, vá lá ao certo saber-se porquê já que o cenário era francamente bisonho, reduzido a uma vegetação seca e esparsa. As famílias são de sobremaneira importantes para percebermos a política dos países árabes. Os Al-Thani sobrepuseram-se aos Al-Khalifa que dominavam o Bahrain e ainda são a força que governa o país nos dias de hoje. E os focos de tensão entre ambas duram até agora. Muitas foram as batalhas disputadas pelo controlo da península que, de repente, passou a ter um interesse até aí desconhecido. Cabe à nossa visão do mundo como europeus, ignorar datas que, para os habitantes do Qatar e do Bahrain, neste caso concreto (exemplos pelo planeta fora são aos milhares), são de uma importância fundamental. Vamos, por momentos, até 1916, o ano em que Abdullah bin Jassim Al Thani, primeiro Emir do Qatar, assinou um acordo com o Reino Unido de forma a assumir definitivamente o poder. Abandonava. em troca da proteção britânica, todas as decisões referentes à política internacional, incluindo a de procurar ganhar posse de mais territórios vizinhos. Algo que incomodou as tribos que se dedicavam à pilhagem, à pirataria e ao comércio de escravos, a partir daí consideradas ações criminosas. Os Al Thani eram uma família de negociantes que fizera fortuna com o negócio das pérolas. Não tinham grande vocação militar e contavam com os ingleses para se perpetuarem no poder. Perceberam rapidamente que os seus aliados se estavam um bocado nas tintas para as convulsões sociais e políticas qataris, deixando-os sozinhos com o berbicacho de se entenderam com as famílias das redondezas. O Emir do Qatar viveu no fio da navalha. E percebeu que teria de suportar a sede de poder de um arrivista, Abdulaziz bin Abdul Rahman Al Saud, o fundador da atual Arábia Saudita.

No País do Ouro Negro

Serviu para que Hergé titulasse um livro das aventuras de Tintin, mas na verdade era uma expressão que abarcava todos os países e regiões na península maior, a Península Árabe, onde se encaixa a península pequena do Qatar. Mais correto dizer-se Os Países do Ouro Negro. Foi a partir de 1920 que os prospetores ocidentais perceberam o verdadeiro valor de cada grão de areia daquilo que tinha sido, até então, um deserto maçador e que dava mais chatices do que proveitos. O Universo mudou. Já não era mais tempo de olhar de esguelha as lutas pelo poder que se desenrolavam na zona. Havia que engodar os emires e os xeiques (os termos são muito idênticos, com emir a ter a conotação de príncipe de um país e xeique a de chefe de tribo ou família, algo que na maior parte dos casos se confunde) que dessem mais garantias de se dobrarem perante a vontade das grandes potências. Por parte dos ingleses, os dois principais responsáveis pela exploração petrolífera na Arábia, o major Frank Holmes e Sir Percy Cox, entraram em conflito. Especialistas em traçar mapas de acordo com os interesses do reino, o primeiro incluiu o Qatar nas negociações entretanto abertas com a família Al Saud enquanto o segundo traçou uma separação de fronteiras entre a Arábia Saudita e o Qatar. Para eles tudo se resumia a mais risco menos risco feito numa folha de papel. Mas para os Al Saud e para os Al Thani tratava-se, como é evidente, de algo muitíssimo mais importante.

A Anglo-Persian Oil Company tomou conta da perfuração de cada quilómetro quadrado de deserto mas, até 1926, os buracos feitos não forneciam crude. Após o primeiro grande sucesso obtido no Bahrain, as buscas redobraram. Era tempo de se assinarem novos acordos, desta vez fortemente comerciais e não, como antigamente, numa base de proteção militar. George Martin Lees, o geólogo principal contratado pela Anglo-Persian Oil Company não se deixou impressionar pelas frustrações iniciais das pesquisas e elaborou um relatório no qual insistia para que se explorasse em força o território qatari. Passaram-se alguns anos e os acordos foram morosos. Em 17 de Maio de 1935, Abdullah bin Jassim assinou um documento que entregava a concessão do petróleo da Arábia Saudita aos proprietários da Anglo-Persian por um período de 75 anos, recebendo em troca 400.000 rupias no acto de assinatura e 150.000 rupias por cada ano de exploração. Pelo caminho, a Anglo-Persian encaixou a concessão numa empresa subsidiária, a Petroleum Development Qatar Ltd., que ficava responsável pelos trabalhos levados a cabo no Qatar que acabou por se ver diminuído no negócio, primeiro porque demorou mais tempo a encontrar jazidas no seu solo e, em seguida, porque as exigências da II Grande Guerra atrasaram gravemente as prospeções.

Foi frente a Zubarah, nas ilhas Hawar, onde estava instalada uma guarnição militar do Bahrain, que o petróleo começou a jorrar em abundância. Ora, as Hawar eram consideradas pela família Al Thani como pertencentes ao Qatar pelo que o Reino Unido voltou a ver-se com um sarilho em mãos para resolver. Inicialmente, e porque a família Al Khalifa era mais submissa, o governo britânico suportou as pretensões do Bahrain. Mas o assunto fiou mais fino quando os Al Khalifa utilizaram outra família, os Al Nuaim, para reclamarem igualmente a posse do deserto que rodeava Zubarah. Farto de intromissões, o Emir do Qatar de então, Hamad ibn Isa Al Khalifa, ameaçou com a guerra imediata. Aconselhado pelos ingleses a manter-se sossegado, avançou para um embargo e fechou o território. A crise agudizou-se, grande parte da população qatari emigrou para o Irão, o país caiu em nova fase de pobreza que só viria a terminar em 1949 quando, após um novo acordo, os lucros do petróleo das zonas marítimas começaram a encher os bancos do Qatar e a definição de autoridade sobre as Hawar foi concertada entre os Al Thani e os Al Khalifa. Com o dinheiro surgiram novas ambições. Durante vinte e cinco anos foram surgindo diversas famílias e forças políticas com o objetivo de derrubar o poder dos Al Thani, principalmente na fase em que o emir Ali bin Abdullah se deixou corromper pela avidez do dinheiro, tornando-se numa figura de pacotilha com contas abertas na Suíça e viajando pelo mundo como um nababo.

A verdadeira independência do Qatar – deixando definitivamente de ser um protetorado britânico – data do dia 1 de Setembro de 1971 e foi promulgada em Genebra e não em Doha, a urbe que foi crescendo economicamente até se tornar uma das capitais do Ouro Negro. Nesse dia, os Al Thani informaram o seu povo que se separavam da união entretanto firmada entre emirados (os atuais 7 Emirados Árabes Unidos e o Bahrain), desfazendo a confederação e sendo, de imediato, seguidos pelos Al Khalifa. Tinham contas antigas para ajustar uns com os outros. A posse das ilhas Hawar mantém-se sobre a mesa. Recentemente, o envolvimento do governo qatari com organizações terroristas levaram ao cerrar de fronteiras imposto pela Arábia Saudita, a falta de respeito pelos Direitos Humanos tem fustigado violentamente a imagem do país que, dentro de uma semana, recebe a fase final do Campeonato do Mundo. Não há nada a que uma bola não resista.