“A violência doméstica é um assunto de todos”

No Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, a procuradora Teresa Morais fala dessa e de outras violências.

Nas vésperas do Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, Teresa Morais, que lidera a secção Especializada Integrada de Violência (SEIVD) do Porto/Matosinhos, fala ao Nascer do SOL. Magistrada do Ministério Público desde 1990, com tarimba nesta área, reflecte sobre um tema que parece colado à pele de um país com resquícios feudais, onde o número de queixas está no topo dos restantes crimes, e em que o roubo de um telemóvel tem uma moldura penal superior à de um agressor condenado por violência doméstica. Teresa Morais não esquece também as pessoas particularmente indefesas em razão da idade, como as crianças e os idosos, que considera «vítimas silenciadas» porque não há uma rede para a deteção e apoio efetivo e porque – diz – «não há respostas».

Coordenou o livro Violências Domésticas: Novas Questões Antigas, que acaba de ser lançado. Porquê o plural (violências)?

As vítimas deste crime têm pontos comuns, mas há várias diferenças. E a violência em si mesma também se diferencia. Tendemos a ficar na violência física, quando existe uma série de atos que ‘ferem’ tanto ou mais as suas vítimas, uma vez que se trata de um crime praticado nas relações de intimidade e de confiança. Por exemplo: um filho alcoólico que vive com a mãe, que se vê forçada a dar-lhe toda a sua reforma; um idoso cujo cuidador não cuida dele e que vive sem higiene, subnutrido, etc.); uma criança que assiste ao destrate permanente entre os progenitores; uma mulher abusada sexualmente ‘porque ele é homem e tem as suas necessidades’ ou que é agredida, ameaçada ou insultada porque ‘não sabe fazer nada em casa’ ou porque, hipoteticamente, ‘tem outros’; ou ainda um homem que é anulado como pai. Todas as pessoas têm a sua história. Ora, etiquetar uma investigação como ‘violência doméstica’ esquece as especificidades de cada caso e, sobretudo, as expectativas concretas da cada vítima. Aquela mãe não quer a condenação do filho e muito menos o seu afastamento de casa, quer apenas que o obriguem a tratar-se; aquele idoso não quer ser relegado para um lar ou ter uma assistente social a entregar refeições, precisa de mais, muito mais; aquela mulher não se sente capaz de ‘dar o salto no escuro’ e aquele pai apenas quer ter o direito a ser pai ou, melhor dizendo, quer que o filho tenha direito a ter um pai.

 Então, de que falamos quando nos referimos ao crime de violência doméstica?

Este crime, fundando-se nas tais relações de intimidade, protege uma confiança específica: a de que a pessoa com quem vou partilhar um projeto de vida, com quem vou partilhar o meu espaço de intimidade ou que tem o dever de prover pelo meu desenvolvimento físico, psíquico e emocional não praticará condutas violentas de qualquer tipo.

 Portugal tem uma das populações mais envelhecidas da Europa. Estamos preparados para os desafios que isso implica ou vamos ter de nos habituar às notícias de violência contra idosos?

De facto, em 2021 existiam 182 idosos (pessoas com mais de 65 anos) por cada 100 jovens até aos 15 anos. É verdade que o parâmetro de 65 anos está desfasado da realidade europeia, pois a grande maioria desta população está integrada no mercado de trabalho e é autónoma. Mas se falarmos de pessoas particularmente indefesas em razão da idade (que é o conceito da lei) e, em concreto, dos idosos (ou, como prefiro dizer, dos de ‘idade maior’), penso que estamos, inúmeras vezes, perante vítimas silenciosas ou silenciadas. Silenciadas pelo cuidador (que, muitas vezes, as mantém em isolamento). Silenciadas pelas próprias barreiras psicológicas (normalmente, o agressor é filho ou neto, pelo que é muitíssimo frequente a autoculpabilização da vítima, aquela ideia: ‘onde é que é que eu falhei?’). Silenciadas porque não há uma rede para a deteção e apoio efetivo e porque – sejamos claros – não há respostas integradas. Não é resposta deixar estas vítimas à sua mercê (por exemplo, com a retirada do cuidador/agressor) ou desenraizá-las do local com que se identificam, onde têm a sua história, as suas memórias e onde conseguem orientar-se. Nestes casos, estamos muitas vezes perante um pedido de socorro não para si próprias mas para o agressor. Agora, a sua questão, que corre o risco de ser uma realidade, é assustadora. Faz lembrar aquelas notícias de um idoso encontrado morto ao fim de vários dias… A violência também pode ser cometida por omissão e, nestas vítimas, é necessário estar alerta sobre isso. A normalização ou banalização da violência (e aqui abranjo qualquer tipo de violência) parece-me ser o caminho de uma sociedade falha de empatia. É o caminho da desumanização.

Acha que há uma banalização da violência em Portugal?

Se falarmos na violência em geral, Portugal é dos países mais seguros. Mas se falarmos em violência doméstica, é o crime mais participado no país. Daí que possa estar muito ligado a fatores culturais, ou seja, que dentro de relações de intimidade haja alguém que supõe ter direito a tal. Dou-lhe um exemplo muito simples: vistoriar o telemóvel de outrem é uma violação de privacidade e muitos jovens não veem qualquer censura nisso. Por outro lado, estamos também perante uma questão de perceções. Há vítimas que nos dizem nunca terem sido fisicamente agredidas, mas durante a conversa ‘aparece’ um empurrão aqui, outro ali, outro acolá… Em entrevistas feitas pelo FRA (agência dos Direitos Fundamentais da UE) alguns países escandinavos aparecem no topo das manifestações de violência doméstica, o que, parece-me, tem exatamente a ver com as perceções.

Há idosos abandonados pelas famílias, quando são eles quem, perante a crise (ou crises), mais se têm voluntariado, a recebê-las em suas casas. Qual é a resposta da Justiça para o abandono dos pais pelos filhos?

A violência contra os idosos assume várias formas. O abuso físico, de que são exemplo as agressões, a exposição ao perigo, a falta de higiene, a subnutrição ou desidratação, a sub ou sobredosagem medicamentosa. Depois, o abuso psicológico ou emocional, que se pode traduzir no isolamento, desvalorização, injúrias, ameaças, coação, violações de privacidade (mexer nos objetos pessoais, por exemplo), sem esquecer a infantilização. Em 3.º lugar, o abuso financeiro, que pode consistir em retirar-lhe parte ou a totalidade dos seus bens e recursos, utilizá-los sem consentimento, representá-la ilegitimamente na gestão patrimonial. Em 4.º lugar, o abuso sexual, como o contacto sexual não consentido ou efetuado de forma ardilosa. E, por fim, a negligência, no sentido da omissão do cumprimento, ou cumprimento inapropriado, do dever de cuidar. Muitas vezes estas formas de abuso (à exceção do abuso sexual, que não é relatado) concorrem entre si. Há casos de idosos que deambulam pela rua a pedir comida, sem higiene, sem acompanhamento médico e cujas reformas são levantadas e retidas pelos agressores. E não são poucos. Mas também casos de sobredosagem medicamentosa, em que a vítima fica inerte, sem reação e, assim, não ‘incomoda’. O maior problema é quando o agressor é o único cuidador, porque aqui, ainda que haja caminhos de investigação, não há respostas. As entidades de apoio geriátricas estão superlotadas e não me parece existir uma política de respostas integradas.

Como é que as denúncias vos chegam?

Muitos desses casos aparecem-nos por chamadas da Polícia ao local (normalmente, por vizinhos), denúncias anónimas e técnicos da Segurança Social ou entidades cooperantes. As vítimas, por si só, muitas vezes não estão sequer fisicamente capazes para chegar ao sistema ou estão impedidas de o fazer.

Como resolver este problema sem retirar a vítima de casa? O que acontece ao agressor?

Os casos de violência contra idosos são os mais difíceis, quer de investigar, quer de decidir. Há inúmeras variáveis: as questões que já referiu, mas também questões de saúde mental. Tudo depende, muitas vezes, de meios de apoio social extremamente escassos. Agora, a premissa essencial é o respeito pela vontade da vítima, que deve ser devidamente esclarecida. É, na minha opinião, um erro a adoção de uma atitude paternalista em relação a estas vítimas. Outra premissa é que, caso possível, não deveremos desenraizar estas vítimas do seu espaço e das suas memórias.       

Sendo agora a violência doméstica um crime público, já se notam mudanças ao nível da denúncia por parte da sociedade civil?

Lentas, demasiado lentas. Quer ao nível da denúncia, quer da colaboração como testemunhas. Umas vezes por indiferença, outras por medo de represálias.

A violência exercida sobre homens é um assunto de que pouco ou nada se fala. Já há, no entanto, uma Casa Abrigo para homens. Parece ser revelador ou é só um adereço?

A maioria da violência nas relações de intimidade (e excluo agora as crianças e os idosos) é sobre as mulheres. Acredito, porém, que exista um considerável número de cifras negras (ou seja, de casos não participados) decorrente dessa cultura de que o homem não é frágil, ‘não chora’ – e, como tal, não recorre à Justiça. Daí que, pelo menos na SEIVD do Porto e Matosinhos, sejam residuais as denúncias de violência doméstica em que os homens são as vítimas.

Fala neste livro da questão da pena. Entende que a mesma é um óbice para uma melhor Justiça?

O Estado tem o dever de prevenir e punir, de forma dissuasora, os autores de violência doméstica. Considerando que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem vindo a considerar que estamos, de facto, perante casos de tratamento desumano ou degradante, e até de tortura, uma pena igual ou inferior a grande parte dos crimes contra o património parece subverter a ordem dos valores. O furto de um telemóvel pode chegar a uma pena até oito anos de prisão, mas um agressor de violência doméstica durante vários anos tem a previsão de uma pena, no máximo, até cinco anos. E existe a regra no processo penal de que as penas de curta duração devem ser suspensas… A isto liga-se o facto de a prisão preventiva pressupor uma forte possibilidade de uma futura condenação em pena efetiva. Deste modo, quer na fase de investigação, quer no julgamento, a mensagem que o Estado tem promovido é de uma responsabilização aquém do que a gravidade dos factos exigiria.

A maioria dos autores deste livro não é da área do Direito. Isso significa que as questões de violência doméstica são mais preocupações de ordem médica, social e cultural do que jurídicas?

O que me interessou ou desafiou foi juntar diferentes perspetivas. Complementamo-nos e dependemos uns dos outros. Usando uma frase que escrevi no início do livro – ‘Se nos desconhecermos, não conhecemos verdadeiramente coisa alguma’ –, nenhum magistrado pode desempenhar bem a sua função achando-se autossuficiente. Ele depende dos médicos, para analisar as mazelas físicas e psíquicas (veja-se, por exemplo, as síndromes que o livro aborda). Depende dos psicólogos, para uma melhor compreensão das vítimas e dos agressores, etc. A violência doméstica é um assunto de todos. E é um crime. Se é um crime, é assunto da sociologia, da criminologia, das organizações de apoio às vítimas, etc., mas também de responsáveis por estratégias de prevenção.

Então não estaremos a exigir demasiadas respostas ao sistema judicial, no caso concreto, ao Ministério Público?

O Ministério Público, ou seja, a investigação, está no final dessa linha. Só pode atuar perante a existência do crime cometido e não pode ser olhado como a panaceia para tudo. Mas também não podemos esquecer que o modo como a vítima é recebida, protegida, compreendida e valorizada durante todo o processo judicial é fundamental para o desfecho do caso.

Deixe-me recuar a 2012/2013, quando criou o projeto ‘Um passo mais’, que foi pioneiro ao criar no DIAP do Porto uma equipa multidisciplinar e especializada neste tipo de crimes. Acha que já foram dados todos os passos?

Esse projeto foi isso mesmo, um caminho a percorrer. Deixe-me recorrer a Eduardo Galeano quando cita um outro autor: «A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos (…). Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar». Esse foi o mote. Na prática, a ideia foi desburocratizar procedimentos entre os diversos atores da investigação, centrando-nos no caminho essencial e implicando-nos todos, todos os dias e a todos os momentos. E deixarmos de ser ‘meros’ profissionais. O resultado foi inquéritos mais céleres, vítimas mais rapidamente protegidas e uma mensagem de incomplacência. E, segundo a entidade que avaliou o projeto (a Escola de Criminologia do Porto), verificou-se uma diminuição de reincidências; para um ano, em 70%.

 Passaram 10 anos, entretanto, e foram criadas as Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD). O que trouxeram de novo?

É um projeto da Procuradoria-Geral da República, no cumprimento de diretivas europeias, visando a interligação entre a investigação e o tratamento das questões ligadas aos menores, designadamente, na regulação das responsabilidades parentais e na promoção e proteção das crianças. Isto porque se constatou que, apesar de alguns mecanismos de agilização de comunicação, era necessária uma resposta convergente e abrangente destas duas áreas – o crime, e a família –, no sentido de evitar, por exemplo, decisões de afastamento do agressor das vítimas no processo penal enquanto um Tribunal de Família e Menores determina um regime de visitas. Por outro lado, atuando em estreita ligação e com partilha de informação nos dois sentidos, a visão de cada caso resulta mais completa. Pena é que este projeto, com inegável mais-valia e em cumprimento de decisões europeias, esteja na prática a ser bloqueada pela calamitosa falta de funcionários (que são menos de metade do mínimo necessário). Por isso, temos uma constante sensação de estarmos a prestar um mau serviço à Justiça.

Quantos funcionários têm?

(risos) Já estivemos pior… Agora, nesta SEIVD, estão cinco a trabalhar. Deveriam estar, no mínimo dos mínimos, 14.

E inquéritos?

Desde a criação da SEIVD do Porto, em janeiro de 2020, deram entrada cerca de 8.500 Inquéritos.

Basta a falta de funcionários para que os inquéritos se acumulem. É um tempo desmoralizador para as vítimas.

Claro! São processos urgentes, processos que não param nas férias e que não pararam (e ninguém das SEIVD parou) durante a pandemia. Com aquele número de inquéritos e com o estado de exaustão e desmotivação em que os funcionários se encontram (porque se sentem completamente desvalorizados e esquecidos), não é possível pedir-lhes mais. No passado dia 17 de outubro, estavam cerca de 1.700 inquéritos com despachos por cumprir! E já não conseguem fazer o que vários deles aguentaram a fazer durante dois anos: sair às 21h e ir trabalhar pro bono ao sábado. Já que estamos a falar de violência, aqui pode-se falar de violência institucional. Mas também lhe posso falar da SEIVD de Matosinhos, onde existem várias salas fechadas (para acorrer a uma qualquer situação rara) e os procuradores têm uma única sala para ouvir as vítimas (não o podendo fazer nos gabinetes, porque os partilham) e os funcionários têm uma ‘salinha’ inumana para o mesmo efeito. Além disso, a secção administrativa da SEIVD tem perto dela a receção de todos os arguidos, polícias, etc. de todos os outros crimes. Qualquer cidadão percebe que isto é insensato e é, mais uma vez, um péssimo serviço às vítimas.

Imagino que já se tenham queixado várias vezes destas condições.

O Ministério Público já lutou por salas, mas já se passaram quase três anos e tudo está igual…

Tem havido decisões judiciais que levam a que se pense: ‘Olha, esta estava mesmo a pedi-las!’ Quer comentar?

Não posso falar de casos concretos. Mas posso dizer-lhe que tenho a sensação, até pelo que desabafam algumas delas, de que há vítimas que chegam ao fim de um processo em pior estado do que quando o iniciaram. 

Ao fim destes anos todos nesta área, há algum caso que a chocou particularmente?

Lembro-me de casos de bebés abanados ou agredidos. De idosos esquecidos, com hipotermia, ou barbaramente agredidos. Apanhei casos de mulheres desfeitas, desumanizadas, com uma enorme dependência emocional em relação ao agressor. Mas também da instrumentalização de menores como ‘armas de arremesso’, onde se destroem laços de vinculação à figura paterna. Chocarmo-nos não me parece ser algo negativo; não nos chocarmos, é! Nesse dia, é preferível mudar de área de investigação.

Voltando ao livro, este começa com o caso real de uma vítima – contando como começou por desculpabilizar o agressor, depois as várias saídas de casa e os seus regressos, a apresentação da queixa e, mais tarde, a retirada. Porquê esse caso?

Porque é um caso que, dentro de uma realidade em maior número, espelha bem os sucessivos avanços e recuos de uma vítima, quer em face do próprio agressor, quer perante o sistema judiciário. Mas é, sobretudo, um caso de mensagem de esperança para as inúmeras vítimas – às quais não devemos deixar de fazer acreditar que é possível dar esses ‘passos’ e viver livre de violências.