José Raposo. ‘Fui com o meu pai fazer um teste para a Vila Faia. Não fiquei’

Tem mais de 40 anos de carreira, mas descarta o título de mestre da representação. Nasceu no Dundo, em Angola, e mudou-se para Portugal aos 13 anos. A história de sucesso enquanto ator começou com um ‘não’, na altura para integrar Vila Faia, a primeira telenovela portuguesa. Hoje é Palmira na comédia ‘Trair e Coçar…

A peça ‘Trair e Coçar É Só Começar’ estreou no dia 19 de outubro. A duas horas do início de mais uma sessão, há sempre uma sensação de novidade? E dá sempre aquele nervoso antes de subir ao palco?

Eu tenho um defeito grave, não tenho nervos em teatro [risos]. O que normalmente acontece com qualquer artista em todas as áreas, mas comigo não. E considero um defeito e não uma virtude porque esse nervosinho é natural, é quando a pessoa vai enfrentar o público, quando tudo acontece enquanto estamos a fazer a nossa arte, mas eu não tenho nervos absolutamente nenhuns. Não é por estar mais velho, sempre fui assim. Agora, o facto de estar a fazer esta peça concretamente… é tão gratificante, é maravilhoso. Estou a adorar, estou a amar este género, comédia… Eu faço todos os géneros, tenho feito todos os géneros de teatro enquanto ator,  mas… a revista à portuguesa, a comédia, a alta comédia, a tragicomédia, quando estou a fazer algo em que a recetividade do público é rir, ah!, dá-me um prazer extra incrível. E porquê? Porque é a forma mais audível de sentirmos essa reação do público. Basicamente é isso: eu adoro aqueles timings em que o público se ri e nós não podemos falar logo a seguir porque… não são truques, são intuições em relação à comédia que é o tempo de o público rir e reagir. Adoro estar com eles, não é rir com eles porque eu não posso, mas amo essa recetividade. E aqui é uma coisa constante, esta comédia está construída pelo autor, o Marcos Caruso, está carpinteirada de tal forma que são gargalhadas constantes ao longo da peça. É um elenco fantástico de nove atores, também é uma sorte isso acontecer, uma encenação do Miguel Thiré muito cuidadosa, muito meticulosa. Ensaiamos ao pormenor todas as marcações, todas as inflexões, ensaiamos tudo, tudo milimetricamente. Ele foi fantástico. O Miguel tinha também a vantagem de conhecer muito bem a peça porque ele, sendo brasileiro, assistiu à peça desde muito novo, com 10/11 anos.

A peça está em cena, no Brasil, desde 1986…

Exatamente, é verdade, é incrível. Eu já conhecia a peça porque fiz uma novela há uns 15 anos, ai, como é que se chamava aquilo, eu troco os nomes todos… Foi uma novela realizada pelo Atílio Riccó, que foi o primeiro encenador desta peça, em 1986. É encenador e realizador e está cá em Portugal há muitos anos. Quando fiz essa novela com ele, disse-me: «Cara, tem uma peça do Caruso que é fantástica». Ele disse-me como era, do que se tratava e, desde aí, fiquei com um bichinho atrás da orelha para fazer esta peça um dia. 

Também já com um olho na protagonista Palmira? Porque também há esta particularidade de ser um homem a interpretar o papel.

Já! E nunca tinha sido feito por um homem, nunca, é a primeira vez. Essa foi uma das curiosidades. Há cerca de um ano, quando a Ana Rangel me convidou, assim que me diz ‘Trair e Coçar é Só Começar’ respondi: «Eu quero fazer essa peça». E, dias depois, disse: «Mas eu faço se for a empregada»; e ela: «O quê?! Ai meu Deus». Telefonou para o Caruso, que fez videochamadas comigo: «Cara, sempre foi uma atriz, como é que a gente vai fazer?». E como é que eu os convenci – autor, encenador e produtor? Disse: «Olha, dou-vos a garantia de que para fazer isto vou fazê-lo com a maior das verdades. É uma mulher, não é uma mariquice, ou uma ‘travestizice’. É assumir que esta empregada é esta mulher, que tem praticamente a minha idade, 60 anos…». Eles aceitaram e, hoje, estamos todos muito felizes porque isto resultou. Está a ser um sucesso, com uma procura de bilhetes incrível, está a esgotar e eu, como é evidente, estou felicíssimo da vida. O melhor para um ator é mesmo chegar ali e ver uma plateia cheia, é indescritível!

Com mais de 40 anos de carreira, também este ano integrou o remake do filme ‘O Pai Tirano’, que considerou um dos papéis da sua vida.

Ah sim, sim. Aliás, qualquer artista em qualquer área, seja música, canto, pintura, dança, etc… em qualquer área artística, qualquer artista, digno desse nome, nunca estará realizado até ao fim da vida. Há sempre trabalhos surpreendentes que não fizemos, é impossível numa vida fazer-se tudo o que se pode fazer, tudo o que existe para se fazer. Meu Deus, esta peça [Trair e Coçar É só Começar] é uma prenda para mim, esta e outras que tive, obviamente, ao longo da vida. Não é que surjam projetos tão bons como este todos os anos, a toda a hora. Umas vezes fazemos coisas que têm maior qualidade e outras que têm menor, mas esta peça, de facto, é um projeto de grande qualidade. E sendo uma comédia, que normalmente nos meios artísticos, nos media e nos meios mais intelectuais, digamos assim, é considerado um teatro menor… eu nunca considerei nada disso, tenho tanta dificuldade em fazer este género [comédia] como outro qualquer. E neste, por acaso, acho que ainda existe mais dificuldade porque fazer comédia não é para qualquer um. Tem que se ter uma intuição natural, é uma coisa nata, não se explica como ter estes tempos naturais de comédia, são muito difíceis e muito intuitivos. É por isso que me dá um prazer extra fazer uma coisa destas. 

Assume que não é adepto de ler e reler os guiões. Também é tudo muito inato? [risos]

Exatamente, exatamente. Muita gente considera muito feio, mas eu não tenho paciência, não somos perfeitos… O Nicolau Breyner, por exemplo, dizia – não publicamente, claro -, mas eu posso dizer porque, além dele não estar cá, eu sou um admirador… pffff, Meu Deus!. O Nico, para mim, foi um mestre, mas ele dizia várias vezes: «Eu não quero fazer teatro», já depois de ter feito muito teatro. As pessoas não sabem isso porque começou a ter uma grande visibilidade só a partir aí dos seus 40 e tal, 50 anos, quando começou a fazer televisão e cinema – que tem outra visibilidade por parte do grande público -, mas o Nico dizia: «Ai, teatro eu não quero mais». Só que é engraçado porque no teatro, e eu fiz teatro com ele, tive esse privilégio, ele reinventava-se, lá está, isto não é igual todos os dias e, por isso, é que o teatro tem esta magia. Quando fazemos uma novela está gravado, é aquilo. No cinema está filmado, está filmado, é aquilo. Aqui não, todos os dias há qualquer coisa que acontece, ou se acrescenta porque o público reagiu de determinada maneira, embora tenhamos sempre um cuidado muito grande para não desvirtuar muito o texto e a peça porque está tão bem definida, tão bem escrita que há esse cuidado. Tanto da parte do autor como do encenador sempre houve uma chamada de atenção grande e eles têm toda a razão; e nós tentamos ao máximo preservar o que acontece de muito bom nesta peça mas, ainda assim, há surpresas que nos acontecem porque os públicos são sempre diferentes. Começa logo por aí, se um público é diferente de uma noite para outra, já é um espetáculo diferente. Temos uma reação aqui ou acolá de que não estávamos à espera e isso é que é mágico e fantástico no teatro.

Falou no facto de Nicolau Breyner ter sido um mestre para si. Mas como é ser, hoje, também, um mestre para outros atores?

Ai, não, não, não. Sinceramente, isto não é modéstia, é a realidade, nós… Meu Deus, eu conheci pessoas como… eu falei do Nico, mas falo do Francisco Nicholson, do Armando Cortez, do Canto e Castro… é impossível atingir aquele tom sublime que estas pessoas tinham. Não estou a dizer… Em todas as gerações há pessoas fantásticas, então na minha geração há gente fabulosa, nas gerações mais novas também, lógico. Eu tenho dois filhos atores [Miguel e Ricardo Raposo] e são muito bons. Eu sempre disse que para se ser ator ou artista em qualquer área tem que se ter esse dom: talento. Depois estuda-se, claro que sim, o estudo faz parte e tem que ser, mas primeiro está o talento, sem isso não vale a pena.

A parte do estudo…

…Não, não, essa parte não quero: o estudo [risos]. A isso nunca liguei muito. Quero dizer, qual foi o meu estudo? Foi a prática com estes mestres, esse é o grande conservatório da vida, não há melhor do que aprender no palco com os bons encenadores, com os bons atores. Irmos sentindo e vendo o que é melhor e nós próprios, através da nossa intuição, bebermos o que há de melhor neles. Acho que é isso que eu faço e que quem segue esta vida faz, de uma forma inteligente. Referi estas pessoas, mas posso falar, Meu Deus, de tanta gente: a Manuela Maria, a Florbela Queiroz, a Rita Ribeiro, a Maria José, a mãe da Rita Ribeiro… muitas vezes as pessoas não falam delas porque não tiveram a tal grande visibilidade, mas tiveram uma grande sapiência em dar-nos o que nos deram. O António Montez, sei lá, é difícil falar de nomes porque esqueço-me sempre de alguém, mas, de facto, esses foram os meus professores, digamos assim. Eu digo que não atinjo esses patamares porque eu não tenho essa condição de ensinar naturalmente. Em cena sim, claro.

Mas também aprendeu em cena, tal como os outros atores podem aprender consigo?!

Claro, claro. Mas tenho pena de não ter jeito para explicar tecnicamente como é que se faz isto ou aquilo. Pronto, ok, observem, tudo bem, acho que se aprende assim, mas não me considero essa coisa [risos].

Fez referência a Francisco Nicholson que foi, aliás, pela mão de quem entrou no teatro…

Sem dúvida.

Aos 18 anos. Ainda antes de vir para Portugal, na altura tinha 13 anos, já sonhava com os palcos e com a representação?

O meu pai era ator amador, gostava muito de teatro e levava-me ao teatro cá em Portugal. Em Angola também me levava ao Teatro Avenida, em Luanda. O meu pai sempre foi um entusiasta do teatro, claro que isso também me motivou muito. Desde muito cedo, nós temos sempre aquela história: ‘Na escola eu já era o engraçadinho’. Eu não direi isso, mas direi que na escola tinha muito a mania de imitar e, no fundo, o ator é isso: um imitador das personagens reais da vida. Tinha muita facilidade em imitar políticos, figuras conhecidas, por aí, sim, digamos que tinha uma certa tendência para estas áreas; agora, isto não é só isso, o teatro é muito mais. Antes dos 18 anos, antes de fazer o teste no Ádóque, onde o Francisco Nicholson, de facto, me escolheu para ficar naquele teatro maravilhoso, antes disso tinha tentado já um teatro meio amador, ali na Cova da Piedade, porque eu vivia na outra banda, ia muito ver o Grupo de Campolide, sediado em Almada. Ia ver as peças todas com o António Assunção, o Canto e Castro, o Carlos Gonçalves, aqueles atores fabulosos e claro que isso me chamava para esta área. Eu dizia ao meu pai: «Gosto tanto de ir ao teatro, gostava de tentar». E fui com o meu pai, curiosamente, fazer um teste para a Vila Faia – a primeira novela portuguesa -, em que não fiquei, com o próprio Nicolau [Breyner] a fazer-me o teste, isto foi para aí em 1978/79. É muito engraçado porque, mais tarde, em 1983, conheci o Nicolau e claro que tive coragem para dizer ao Nico: «Olha, tu não me escolheste». Respondeu-me: «Foi? Epa, como é que é possível?!». Fizemos uma grande amizade, ele é que me levou para a televisão. O Francisco Nicholson escolheu-me para o Ádóque, em 1981, e, depois, o Nico, a partir de 1983, levou-me para a televisão.

Na altura foi difícil gerir esse primeiro ‘não’?

Ui, muito! Custou-me muito. Mas, é assim, eu não tinha o perfil de galã e a personagem era de um galã, foi o Nuno Homem de Sá que fez esse papel e foi aí que ele se estreou também. Lembro-me de fazer em Algés, salvo erro, um teste com uma câmara, aí sim, nervoso, porque era uma coisa estranha, uma câmara num compartimento fechado e ter que dizer um texto. Depois, na altura, pronto, pensei ‘olha afinal não era bem isto’. Passados dois anos, vou ao Ádóque e, pela mão do Nicholson, fiquei nesse teatro. O Ádóque era uma cooperativa de teatro onde toda a gente fazia um pouco de tudo, ou seja, todos os atores iam também para a secção do guarda-roupa trabalhar, iam para a carpintaria, para a bilheteira… Íamos um pouco a todos os setores e, no fundo, isso é uma escola. Foi essa escola que me iniciou, mas foi pouco tempo porque só entrei na última Revista do Ádóque, fiz a peça infantil ‘O Teatrinho’, em dezembro de 1981, encenada pelo António Feio – eram as primeiras encenações do António Feio, ele era um delfim do Francisco Nicholson, digamos assim. O Xico deu-lhe essa hipótese de começar a ensaiar ali, e muitíssimo bem, o António era fabuloso, toda a gente sabe. Tive também esse privilégio e essa sorte e, por isso, é que também comecei com grandes professores numa escola que era uma cooperativa. Por exemplo, aí estava a Cremilda Gil, a Magda Cardoso, o Nicholson, o Montez, o Henrique Viana, a Delfina Cruz, meu Deus…

Tempos bons?

Muito bons, foi uma sorte ter essa gente como meus professores, que é mesmo assim.

Olhando para as mudanças na área até aos dias de hoje… é muito diferente? A entrada de novos atores e das novas gerações?

Há muito mais gente em todas as áreas de qualquer profissão, portanto, tudo é mais complicado de se iniciar profissionalmente. Saem muitos alunos das escolas profissionais hoje em dia. A começar pelo Conservatório que é uma escola superior: por ano saem sei lá quantos atores, mas são muitos, muitos atores, muitos jovens pretendentes a atores, também do TEC de Cascais, do ISMAI do Porto, do Chapitô, da ACT, enfim, há várias escolas profissionais e escolas superiores de onde saem, eu não sei quantos, mas são uns milhares. Ora, isto é muito complicado porque o mercado não dá para abranger essa gente toda, mesmo tendo as novelas hoje em dia como um mercado que emprega muita gente: atores, técnicos e produtores. Mesmo assim, sei de muita gente que tem muita dificuldade em prosseguir. Depois também são os critérios de escolha, não é? Hoje em dia a comercialização da imagem é uma coisa que se sobrepõe ao talento, à partida, o que é injusto. Sei de muitos, muitos jovens com talento mas o facto de não terem aquele perfil que as televisões exigem para vender que é a beleza, e não sei o quê… pronto, aquilo que a gente sabe. E isso impede-os de começarem uma carreira justa, ou mais justa. Mas acho que isso é um problema mundial, não é só de Portugal.

Existe essa questão da imagem nos mais jovens mas também nos mais velhos. Já contou, aliás, uma história que aconteceu consigo em que lhe ligaram para fazer de avô da Cláudia Vieira?!

Ai sim, sim. Exatamente, e eu disse: «Os tomates!», ao telefone [risos]. Disse e assumo. A Cláudia Vieira é uma querida e eu adoro a Cláudia, isto não tem nada a ver com ela, mas tem menos 14 anos do que eu. Como é que eu podia fazer de avô? Quer dizer, é uma coisa incongruente, é uma coisa… Disse mesmo: «Olhe, os tomates! E dou-lhe aqui 10 nomes de veteranos, com cerca de 70 anos ou mais, que podem perfeitamente fazer de avô da Cláudia Vieira. E são atores bons que estão sem fazer nada». Portanto, é um preconceito. Há mesmo esse preconceito também em relação aos mais velhos.

E confirmou-se? Chamaram alguém mais velho?

Não. Quem foi substituir-me, por acaso, foi um colega que só tem mais dois ou três anos do que eu. É incrível, fiquei triste, porque é um estigma, acham que os mais velhos não vendem. É muito estranho porque nos outros países isso não acontece. Vemos uma novela brasileira e estão lá uma série de atores seniores e com mais de 80 anos e que toda a gente os conhece e, aliás, cada vez que entra um desses atores até é uma questão de prestígio para o próprio projeto. ‘Está la a Fernanda Montenegro, o Lima Duarte, a Laura Cardoso’, mostram uma admiração e um respeito por essas pessoas. Agora sou presidente da Casa do Artista e estão lá aquelas referências, que são as minhas referências, e que cada vez que eu e os meus colegas da direção podemos, falamos deles para trabalhos, como é óbvio. Desde que estejam aptos para isso, que estejam com as suas faculdades, porque não?! O ator só acaba quando morre, só deixa de ser ator quando desaparece fisicamente. Por isso, é uma grande incongruência essa.

Ser presidente da Casa do Artista tem sido um grande desafio? Sim, sim, sim. Aliás, hoje atrasei-me para a entrevista e tem muito a ver com isso. Estava preocupado com um trabalho específico que tem muito a ver com um livro sobre os atores, ainda hoje estive lá. Estamos ali exatamente para dar o máximo de dignidade possível àquelas pessoas que são as nossas referências e que fizeram todas as pessoas sonhar durante toda a sua vida e que merecem uma qualidade de vida digna. Estão lá pessoas como a Manuela Maria, a Lurdes Norberto, o António Évora, várias pessoas que têm essas condições e que de vez em quando trabalham e vão fazer coisas pontualmente. Claro que dentro das suas capacidades físicas e de cabeça, mas faz-se muitas coisas ainda com eles. Mas não nessas áreas de que estou a falar e isso é que tenho pena.

E como é que é chegar a uma fase em que liga a televisão e vê-se na RTP Memória?

[Risos] É verdade, é verdade.

Estão agora a repetir o primeiro trabalho que fez em televisão: O Canto Alegre, em 1988.

 

Exatamente [risos].

É bom?

Opa, é muito bom. Eu adoro, sou muito saudosista, ao contrário da maior parte das pessoas. Sou saudosista principalmente das coisas boas, claro. Ah, foi uma época fantástica porque foi uma época de descoberta, de início, era tudo mágico. Continua a ser, quando estou a representar, mas agora já faço, por exemplo, uma seleção em relação às coisas. Uma pessoa, quando começa, sujeita-se ao que lhe é oferecido e ao que aparece, a pessoa tem é que fazer e fazer até para aprender, com grupos diferentes, encenadores diferentes e coisas diferentes.

Em Portugal é um privilégio poder fazer essa seleção.

Sim, é verdade, é verdade. Sou um privilegiado nesse sentido, tenho essa noção. Mas também tenho a noção de que se calhar mereço [risos]. Já mostrei através do meu percurso artístico que posso integrar determinados trabalhos, mas essa seleção é mesmo feita por mim em relação àquilo que me apetece fazer. Vou dar um exemplo: podia ter feito uma peça que estreou ao mesmo tempo do que esta [Trair e Coçar é Só Começar], mas eu não só me tinha comprometido como queria muito fazer esta comédia e há pessoas que dizem: «Mas como é que tu… Com um texto elitista…». Para mim não há textos superiores, ou seja, há textos de superior qualidade, mas isso em qualquer registo, até neste da comédia.

O tal preconceito? É o tal preconceito que existe, está emprenhado e não há nada a fazer. Quero dizer, espero que haja a fazer um dia, mas as pessoas têm muito este preconceito do teatro menor e do teatro maior. Claro que cada um faz o que quer e cada um escolhe o seu percurso, mas eu acho que todos os atores – todos -, deviam experimentar tudo, todos os géneros, todos os registos, todos os grupos, dentro da possibilidade de quando os convidam, mas acho que é importante para um ator experimentar mesmo tudo. A Revista, por exemplo, adoro fazer a Revista e hei de voltar a fazer um dia. A Revista é uma escola fantástica porque temos a possibilidade de, em cinco minutos, mostrar se conseguimos ou não fazer aquela personagem e, de repente, passados dois minutos, já estamos a fazer uma personagem completamente diferente. Agora dizem que é fácil. Fácil? Então vão lá fazer para ver se é fácil, porque, embora sejam personagens populares, a maior parte delas são completamente diferentes. Fazer um político, depois um pedreiro, no chamado quadro de rua, que é um dos setores de uma Revista, são personagens completamente diferentes. Ainda por cima adoro fazer ‘bonecos’, imitações, fazer o Marcelo ou aquelas figuras que são mediáticas. Estou-me a lembrar do Herman [José] com aquela equipa genial que ele tem, fazem uns sketches fabulosos, com aquelas imitações e aquilo não é nada fácil, não é qualquer ator que consegue transformar-se como eles se transformam, a começar pelo próprio Herman, claro. A comédia é, de facto, um registo muito difícil, que eu amo.

[Toca o telemóvel. José Raposo atende. É Sara Barradas, que também integra o elenco da peça Trair e Coçar é Só Começar]

É mais difícil trabalhar com quem se vive ou é mais fácil?

 

[Risos] Não, não. Sinceramente aqui não misturamos essa facilidade ou dificuldade. Aliás, a Sara é muito mais trabalhadora do que eu, não tem comparação. Jesus, ela é pragmática nas coisas, super trabalhadora e é uma atriz fantástica, toda a gente sabe, e ainda bem que ela está aqui porque, lá está, valoriza o elenco. É um elenco com gente de muita qualidade e ela é uma dessas pessoas e é por aí que nós vemos a coisa. Até tem a vontade de fazer registos, porque ela tem 30 anos e não fez muito teatro, o problema é que ela já tem uma carreira de 20 anos, começou aos 11, mas fez muito pouco teatro por causa do tal preconceito. Ela sempre quis fazer teatro, mas nunca a chamaram porque é uma menina da televisão. Há esse preconceito, que é horrível.

Apesar de já ter feito um bocadinho de tudo, televisão, teatro, cinema… Muitos atores defendem que o teatro é o estado mais puro de ser-se ator. Concorda?

 

Sem dúvida nenhuma. No teatro estamos ali, a nu, temos o público à frente e temos a reação ao segundo, portanto, ou se está bem ou se está mal [risos]. É logo avaliado ali enquanto na televisão ‘para, corta, repete’, até fazer o melhor possível, aquilo que o realizador quer, no cinema também. Aqui há um trabalho muito mais profundo e não tem comparação.

Quando alguma coisa corre mal tem alguma muleta?

Aqui no teatro? 

Sim.

Há, mas por isso é que é mágico, é o que na altura acontece. Ou quem é que safa o quê, porque falhou uma frase, ou alguém não entrou a tempo, ou qualquer coisa do género. Isso resolve-se na altura para que o público não perceba…

…A capacidade de improviso e de reação tem que ser enorme?

Claro que sim, claro que sim.

Disse que era saudosista. Do que tem mais saudades dos tempos em que viveu em Angola, na infância?

Ah… A minha fase de infância, até aos cinco anos, foi no mato. Eu nasci no Dundo, de Lunda Norte, era uma pequena cidade que era rural, vivíamos no meio do mato. O meu pai era contabilista, ia fazer pagamentos às sanzalas, aos trabalhadores, aos sítios onde viviam e viajávamos muito de jipe, o meu pai levava-me. Tenho imagens muito ténues, mas tenho da selva, dos animais: os macacos, os veados, tenho assim umas imagens e, depois, o meu pai recordava sempre muito tudo isso e, portanto, está muito presente na infância. É o que mais tenho pena de não poder voltar [risos].

Nunca chegou a voltar lá? Não. Não foi por opção, foi por trabalho constante, constituição de família, por uma série de coisas. Já estive várias vezes para tentar lá ir nem que fosse só para… Aliás, eu dizia muito aos meus filhos: «Eu tenho que vos levar ao sítio onde nasci, vocês têm de conhecer». Por acaso, o Miguel, o meu filho mais velho, já lá foi em trabalho, fazer um filme, mas não foi ao Dundo, foi a Luanda. Eu até aos cinco anos estive no Dundo e, depois, fui para Luanda, já vivi a parte citadina na adolescência. Tenho essas duas vivências.

Então já não foi um choque assim tão grande quando veio para Portugal?

Não, o choque foi de culturas. Cheguei aqui e pronto, a vivência, a cultura, a maneira de ser e de estar era completamente diferente.

Com 13 anos era fácil fazer essa adaptação?

Para mim, é fácil adaptar-me. Adapto-me muito facilmente a outras realidades e às pessoas diferentes, agora que foi um choque de culturas foi, muito grande. Nós, lá, tinhas uma, como é que hei de dizer, uma liberdade maior, uma visão das coisas, penso eu, como se costuma dizer, ‘mais à frente’. Além de ser um país enorme naquele continente maravilhoso que é África, a noção de espaço, de tempo, era completamente diferente. Faríamos aqui uma entrevista inteira só sobre isso.

A vida consome-nos a ponto de não conseguirmos às vezes parar e observar as coisas às quais não demos prioridade para fazer?

Sim, sim.

A viagem a Angola está nessa ‘to do’ list?

Está, eu quero ir. Olha gostava, por exemplo, de ir com O Trair e Coçar é Só Começar a Luanda. Acho que a este espetáculo vem todo o tipo de público: popular, intelectual, classes médias, altas, vem toda a gente. Este espetáculo, de facto, é muito abrangente nesse sentido. É uma comédia e uma comédia muito bem feita e que é muito agradável de se ver e, por isso, por mim íamos a África, ao Brasil, à Madeira, aos Açores. Não sou produtor, mas já temos falado nisso porque com o sucesso que está a ter dá vontade de a mostrar a muito mais público e a muito mais gente diversificada.

Numa altura como a que hoje vivemos, rir é mesmo o melhor remédio?

Ah, é o melhor remédio, sem dúvida. Isso cativa muito as pessoas a vir ver isto porque estamos numa altura em que, é isso mesmo, precisamos de desopilar, como se costuma dizer, e as pessoas aqui chegam ao fim e… levantam-se, a rir, a chorar a rir, a baterem palmas, porque é mesmo uma catarse. Olha, até foi um pouco surpreendente nesse sentido, nós sabíamos que isto era muito giro, muito bom, mas depois de ter a reação é fantástico e para nós, meu Deus, enche-nos aqui o ego todo [risos].

Momentos antes de subir mais uma vez ao palco, há algum ritual que tenha? Nenhum, não tenho superstições, aliás, nem tenho paciência para os exercícios que se fazem,  mas respeito os meus colegas, que todos eles fazem ‘mememe, mamama’, aquelas coisas. Acho que sim e a vida é assim, mas eu nunca fiz, não gosto. Prefiro comer um chocolatinho, beber um café, ou qualquer coisa assim antes de ir para o palco [risos].

A comida é um dos maiores prazeres da vida…

É, é dos meus grandes prazeres e nisso temos um país genial, que tem uma gastronomia completamente diferente de Norte a Sul, o que é reconhecido internacionalmente. Aliás, o que eu gosto mais no teatro é de fazer tournées, adoro fazer tournées, porque são vários prazeres num: fazer teatro – que é o que mais gostamos de fazer; comer bem e diferente – por todas as regiões do país, as comidas regionais que são fabulosas; visitar os sítios – que temos sítios lindos, neste espaço tão pequenino, como é que há tanta coisa diferente e tão bonita?! É dos maiores prazeres que tenho. Às vezes até digo: «Faço teatro para passear e comer [risos]».

É um modo de vida?

É, maravilhoso!