Marcel Proust. A persistência da memória

Há exatamente um século, a 18 de novembro de 1922, o tempo parou. A existência de Marcel Proust, o escritor que isolou esse elemento fugidio que se mede por minutos, horas, dias e anos, chegou a um ponto final.

Se o grande Eça de Queiroz escrevia de pé, numa mesa alta preparada para o efeito, Marcel Proust, seu contemporâneo cerca de 25 anos mais jovem, compôs a sua obra-prima, Em Busca do Tempo Perdido (À la Recherche du Temps Perdu) na cama, numa posição que a qualquer outro teria parecido absurdamente desconfortável. «Proust é sem dúvida o grande clinófilo de todos os tempos», refere Marc Lefrançois, a propósito de ‘clinofilia’ – o «desejo irrepreensível de permanecer na cama» -, em Histoires insolites des écrivais et de la litttérature. «O escritor, que tinha o hábito de escrever na cama, aí passará os dez últimos anos da sua vida», complementa.

De facto, Proust só escrevia deitado, como testemunhou a sua governanta, Céleste Albaret, em Monsieur Proust (ed. Imprensa da Universidade de Lisboa): «Nunca o vi tomar mesmo a mais pequena nota que fosse de pé. Sempre que o encontrei a trabalhar, estava na mesma posição […]. Estava praticamente deitado e nunca se recostava sequer na almofada: no máximo, contava com o apoio das camisolas empilhadas em cima dos ombros, que acabavam por formar uma espécie de encosto, como já disse. Para servir de secretária, não tinha mais do que os joelhos». E concluía: «Como é que ele escapou à ancilose nessa posição, pois, esse é outro mistério». 

Mas dizer que Proust não saiu da cama nos últimos dez anos de vida, como afirma Lefrançois, tem o seu quê de exagero. Em maio de 1921, desejoso de rever a Vista de Delft, de Johannes Vermeer, numa exposição de mestres holandeses organizada no Jeu de Paume para ajudar as regiões devastadas pela guerra de 14-18, o escritor dirigiu um bilhete ao seu amigo Jean-Louis Vaudoyer: «Nem me deitei para ir ver esta manhã Ver Meer e Ingres. Queira aí levar o morto que sou e que se apoiará no seu braço».

Não é certo que Proust se tenha sentido mal na exposição, e que tenha começado nesse dia o seu derradeiro e irreversível declínio, como defendeu Albaret. Mas o amigo que o acompanhou não pôde ignorar a dose de sacrifício que implicava aquela rara saída. «Nessa manhã, no Jeu de Paume, Proust estava extremamente afligido: podem imaginar o esforço que teve de fazer para estar às onze da manhã no jardim das Tulherias!», recordou. «Várias vezes foi sentar-se no ‘canapé’ circular de onde Bergotte rebola quando morre».

Não pode ser coincidência que, no seu livro, Proust tenha escolhido precisamente esse cenário para a morte do escritor Bergotte, uma personagem decalcada do seu antigo mestre, o escritor Anatole France. As circunstâncias são assim descritas no quinto dos sete volumes, A Prisioneira: «Por causa de uma crise de uremia sem maior gravidade haviam-lhe prescrito o repouso. Lendo, porém, num crítico, que na Vista de Delft de Ver Meer (emprestada pelo museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele apreciava muitíssimo e julgava conhecer em todos os pormenores, havia um bocadinho de parede amarela (de que não se lembrava) tão bem pintado que era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza completa em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir sentiu umas tonturas. […]. Enfim chegou diante do Ver Meer, de que se lembrava como sendo mais luminoso, mais diferente de tudo o que conhecia […]. As tonturas aumentaram; não tirava os olhos, como faz o menino com a borboleta amarela que quer apanhar, do precioso bocadinho de parede. ‘Assim é que eu deveria ter escrito’, dizia consigo. ‘Os meus últimos livros são demasiado secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tomar a minha frase preciosa em si mesma, como este bocadinho de parede’. Não lhe passava, porém, despercebida a gravidade das tonturas».

Repetindo as palavras «bocadinho de parede amarela», Bergotte senta-se num canapé circular e ilude-se ao pensar que se trata apenas de uma indisposição causada pelas batatas mal cozidas do almoço. «Nova crise prostrou-o, rolou do canapé ao chão, acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto».

A Vista de Delft de Vermeer era uma espécie de obsessão para Proust. Fora amor à primeira vista: logo que a contemplou pela primeira vez numa visita a Haia, em 1902, reputou-a «o mais belo quadro do mundo». E, no primeiro volume da saga, o personagem principal, Carlos Swann, refinado milionário e colecionador, escreve um ensaio sobre Vermeer que nunca chega a terminar.

Mas porquê a insistência naquele «bocadinho de parede amarela»? Não pode haver dúvida de que se trata de um enunciado da própria estética de Proust, que podia aplicar todo o seu esforço e talento numa única frase ou linha, até que esta ficasse perfeita. Josef Czapski, um aristocrata, pintor e autor polaco que em finais de 1939 e início de 1940 daria palestras sobre o escritor francês num campo soviético para prisioneiros de guerra, referiu as «frases longas de Proust, com os seus apartes intermináveis e a sua miríade de associações inesperadas e distantes, a sua estranha maneira de tratar temas imbricados sem qualquer hierarquia…». E o biógrafo Jean-Yves Tadié notou que, na óptica de Proust, «para o artista autêntico, não há tema que seja desinteressante ou género menor». Isto tanto se aplicava à literatura como às outras artes. Nas mãos de um pintor ou de um escritor de génio, até o mais vulgar pedaço de parede podia tornar-se um motivo de deslumbramento.

Um ano depois da visita ao Jeu de Paume, gravemente doente, numa luta contra o tempo («os meus brônquios não passam de borracha cozida», dizia à governanta na altura), o escritor colocava a palavra ‘fim’ no manuscrito de oito mil páginas. Um feito extraordinário, tendo em conta não apenas a importância da obra, como a sua dimensão esmagadora, para não falar da frágil condição do seu autor. Albaret situa o episódio num dia da primavera de 1922:

« – Bom dia, Céleste… – disse-me.

Passou-se um instante – o seu sorriso parecia estar a saborear a minha surpresa.

– Sabe, esta noite aconteceu uma coisa muito importante…

-O que foi, monsieur?

– Adivinhe.

Ele estava a achar muita graça àquilo. […]

– Monsieur, não imagino minimamente o que possa ser, não consigo adivinhar. Deve ser algum milagre. Tem de me dizer o que é.

Com uma expressão muito contente e rejuvenescida, parecia uma criança que tivesse pregado uma boa partida.

– Pois bem, minha querida Céleste, vou-lhe dizer. É uma grande novidade: esta noite, escrevi a palavra ‘Fim’. – Acrescentou, com o mesmo sorriso, e um brilho nos olhos: – Agora, posso morrer.»

‘Um romance extremamente impúdico’

Nascido na casa de um tio-avô a 10 de junho de 1871, em pleno rescaldo da brutal repressão da Comuna de Paris, Marcel era filho de um médico higienista que subira a pulso até ao topo da profissão e de uma mãe judia cuja família estava ligada à política e à finança. «A medicina não está presente apenas nas personagens, nas doenças da Recherche», escreve Jean-Yves Tadié na volumosa biografia de 1996. «Proust tem também um olhar de médico sobre o mundo, a vida, as paixões: tudo aí é patologia, sintomas, e toda a descrição torna-se um diagnóstico; e em nenhum lado isso acontece mais do que no amor. […] Adrien Proust era especialista na cólera e na peste. É talvez por essa razão que, quando trata o amor como uma doença cuja origem é ínfima, Marcel a compara com esta outra doença provocada pelo bacilo vibrião».

A influência do pai entranhara-se, pois, na própria forma como Proust olhava para o mundo. Mas era à mãe que dedicava uma afeição quase doentia, como revela, por exemplo, logo no início do primeiro volume, No Caminho de Swann, quando o protagonista não consegue adormecer sem que a progenitora lhe dê um beijo de boa noite.

Era uma criança mimada e enfermiça – um amigo, alguns anos depois, recordaria a tez pálidas e as olheiras pronunciadas – e a primeira crise de asma sobreveio quando tinha nove anos. Fonte de terríveis angústias, a doença atormentá-lo-ia até ao fim da vida. Mas deverá também ter contribuído para o seu desejo de recolhimento e introspeção, decisivo para a construção da sua obra. É precisamente no início da adolescência que Proust «começa a voltar-se para si mesmo e a estudar a sua vida interior», diz Tadié. «Por volta dos 16 anos, esta análise torna-se um sofrimento e uma obsessão intolerável, física».

Também os estudos acabaram por ser atrapalhados pela asma. Aluno do famoso Liceu Condorcet, mesmo se falhava longos períodos de aulas, obviamente destacava-se pela sua inteligência e cultura. Porém, nem todos apreciavam o seu estilo: um professor escreveu à margem de um trabalho sobre a filosofia de Sócrates: «Difícil de ler, escrita à inglesa e sobretudo com falta de divisões». Começavam a adivinhar-se as frases labirínticas e as longas páginas sem parágrafos.

Os primeiros artigos em revistas literárias apareceram ainda antes de completar 20 anos. Em 1896, saía o seu livro inaugural, Les Plaisirs et les Jours (Os prazeres e os Dias), com um prefácio de Anatole France e desenhos da Sr.ª Lemaire, uma dama da alta sociedade cujo salão, onde se cultivava a música e a literatura, viria a servir-lhe de modelo.

Também por essa altura iniciou Jean Santeuil, um romance de formação na primeira pessoa. Proust via como seus grandes defeitos a procrastinação e a falta de vontade, e acabaria por nunca terminar esta obra da juventude. Mas, como apontou Tadié, na sua vida e na sua obra, nada se perde, tudo se aproveita: Jean Santeuil (juntamente com Contre Sainte-Beuve) acabaria por constituir, em grande medida, a génese de Em Busca do Tempo Perdido.

Além da influência paterna na sua forma de olhar o mundo, talvez houvesse outro motivo para que Proust visse o amor como uma doença: a sua homossexualidade. Aquilo a que chamaria ‘a raça maldita’ era o tema de um ensaio que estava a preparar em 1908. No ano seguinte, propunha ao diretor do Mercure de France «um romance extremamente impúdico» em que «um dos principais personagens é um homossexual». Embora se lhe tenham conhecido várias relações românticas e paixões – por Lucien Daudet, pelo compositor Reynaldo Hahn e pelo seu motorista Alfred Agostinelli, que viria a morrer na queda de uma avioneta que lhe fora oferecida pelo patrão -, Proust nunca admitiu abertamente esta tendência, que retratou e analisou ao longo de centenas de páginas. O romance «impúdico» que corajosamente tinha proposto ao Mercure de France era nada menos do que a primeira versão de Em Busca do Tempo Perdido. O responsável do jornal recusou-o sem o ler, uma situação que se repetiria várias vezes (ficou também famosa a recusa de André Gide para a Gallimard), até Proust, um pouco em desespero, se sujeitar a pagar a Bernard Grasset para que este imprimisse o primeiro volume, No Caminho de Swann.

‘Eu era feliz e ninguém estava morto’

Antes de se fixar na escolha definitiva, Proust hesitou muito quanto ao título a dar à sua obra, equacionando várias alternativas: As Estalactites do Passado, O Visitante do Passado, Os Reflexos do Tempo, Os Espelhos do Sonhos. Curiosamente, a opção Em Busca do Tempo Perdido exibia muitas semelhanças, sob vários aspetos, com o título de uma obra de um autor que admirava: Le Temple Enseveli (O Templo Sepultado), do belga Maurice Maeterlinck. De resto, Proust via o seu romance como «uma catedral da literatura», onde procurou fazer convergir todas as artes.

Mas o seu propósito último era porventura reconstituir o mundo perdido que tinha conhecido – como o tinha conhecido. Recuperar os tempos felizes da infância, em que a sua maior preocupação era se a mãe subia ao seu quarto para lhe desejar as boas noites. Lembremos, a esse propósito, ‘Aniversário’, de Álvaro de Campos: «No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/ Eu era feliz e ninguém estava morto.» E rematava o heterónimo de Pessoa: «Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!…»

Proust quis, pois, trazer de volta os mortos – não apenas os entes queridos, mas todas aquelas pessoas que tinha conhecido nas suas incursões mundanas durante o fim da juventude e o princípio da idade adulta. Este período, que em certa fase considerara uma perda de tempo, afinal iria transmutar-se em matéria da literatura mais preciosa. Afinal, nada se perde.

« – Ah, Céleste – suspirava ele por vezes – tudo vai caindo um pouco, como se não fosse mais do que poeira», queixava-se o escritor à sua leal governanta. «É como uma coleção de belos leques de outro século numa parede. Podemos admirá-los, mas já não há uma mão que lhes dê vida. O facto de estarem fechados numa vitrina é uma prova de que o baile acabou».

Como um demiurgo ou um marionetista, Proust ia, através da sua arte literária, reerguer o salão, reunir os músicos e pôr novamente os pares a dançar. Além da alta sociedade, com o brilho e os tiques da aristocracia orgulhosa e rarefeita, ressuscitaria também as pessoas simples – criados, porteiros, empregados de restaurante, ascensoristas e ainda outras figuras de ocupações mais duvidosas.

‘A perspetiva deformante do tempo’

Como representar o Tempo, que é mais fugidio do que a água, mais imaterial do que a luz, mais impalpável do que o ar e mais abstrato do que o silêncio? Em Busca do Tempo Perdido fá-lo mostrando as personagens em diferentes momentos da vida. Quando, no último volume, após uma longa ausência da sociedade, o narrador chega a uma recepção promovida pela princesa de Guermantes, tem dificuldade em reconhecer figuras que lhe tinham sido tão familiares noutra era. 

«Não sei o que pusera no rosto o jovem Lesensac, mas, enquanto outros haviam encanecido, este a metade da barba, aquele os bigodes, ele, desdenhando de tinturas, achara jeito de cobrir a face de rugas, as sobrancelhas de pêlos eriçados, o que, aliás, não assentava, dando-lhe um ar hirto, solene, envelhecendo-o tanto que nem parecia um rapazola. Espantou-me no mesmo momento ouvir chamar duque de Chatellerault a um velho de bigodes prateados de embaixador, no qual só o modo de olhar, sempre o mesmo, me permitiu reconhecer o jovem uma vez encontrado numa visita à Sr.ª de Villeparisis». O Barão de Charlus, outrora tão distinto quanto snob e arrogante, agora paralítico e caquético, representa também na perfeição a passagem do tempo, e a fatura que ele cobra.

«Por todos os motivos», continua o narrador, «uma recepção como esta era alguma coisa de mais preciosa do que uma visão do passado, oferecendo-me todas as imagens sucessivas, por mim nunca vistas, que separavam o passado do presente, ou, melhor, a relação entre ambos; era o que outrora se chamava um ‘panorama’, mas um panorama dos anos, a vista, não de um monumento, mas de alguém situado fora da perspectiva deformante do Tempo».

Um cemitério onde os mortos ganham vida

Apesar das várias recusas do manuscrito até à aceitação final por Grasset, a publicação do primeiro volume foi coroada de sucesso, segundo Jean-Yves Tadié. Sobretudo ao nível da crítica, tendo as vendas da primeira edição atingido razoável marca de 3300 exemplares.

Houve reações entusiásticas como a de Jean Cocteau, que não lhe poupou elogios. A imagem usada pelo Corriere della Sera merece ser recordada. Segundo o diário italiano, os livros de Proust eram «muito cansativos, porque é preciso subir, subir sem parar» mas depois o leitor era recompensado com «uma vista que alcançava até muito longe».

Ainda assim, nem todos ficaram impressionados com o estilo pessoalíssimo de Proust. «Ao fim de 712 páginas do manuscrito […] não se tem qualquer, mas qualquer noção do que se trata», escreveu Jacques Madeleine, editor da Calmette. A crítica do Mercure de France, por sua vez, recusou tomar «este soporífero». E Humblot, diretor da editora Olledorff, comentou: «Não posso compreender que um senhor possa empregar trinta páginas a descrever como dá voltas e mais volta na cama antes de pegar no sono».

Havia uma razão forte para Proust escolher o instante em que se adormece para o arranque da sua obra: é o momento em que as coordenadas se suspendem, em que o tempo deixa de ser uma linha regular, ou o tiquetaque num relógio, para adquirir uma nova dimensão. «Um homem que dorme tem em círculo à sua volta o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos».

O autor definiu o seu livro como «um grande cemitério onde sobre a maior parte dos túmulos já não se consegue ler os nomes apagados». Se Em Busca do Tempo Perdido era um cemitério, então tratava-se de um cemitério muito peculiar, onde, em vez de repousarem, os mortos ganhavam vida. E, ao contrário do que Proust supunha, não era assim tão difícil descortinar «os nomes apagados» nas lápides das sepulturas. Robert de Montesquiou, um dos modelos do perverso Barão de Charlus, reagiu exasperado: «Estou de cama, doente com a publicação destes três volumes que me viraram do avesso». Morreria pouco tempo depois. Laure Hayman, furiosa de se reconhecer na oportunista Odette, escreveu ao autor chamando-lhe «um monstro».

Uma mulher enorme vestida de preto

«Aquelas últimas semanas constituem uma espécie de longo túnel, mais do que nunca sem dias nem noites – uma longa escuridão escassamente iluminada pela luz verde do pequeno candeeiro, mas na qual os pormenores do fim se destacavam com uma nitidez que nunca hei de esquecer enquanto for viva», relatou Céleste Albaret.

Proust tinha por divisa uma passagem do Evangelho segundo S. João: «Trabalha enquanto é dia». E foi o que fez, enquanto lhe restava fôlego, muitas vezes pela noite fora até de madrugada. Não é inverosímil que tenha sacrificado a sua saúde à sua obra, e que o esforço posto nela tenha precipitado o seu fim.

Cada vez recebia menos visitas, e quando recebia fazia-o frequentemente com as mãos enluvadas. Se ficava sem voz, escrevia os seus pedidos nos papelinhos que usava para fazer fumigações no quarto, indispensáveis para mititgar a asma.

Na noite de 17 para 18 de novembro, Albaret teve um mau pressentimento quando se dirigiu ao quarto do escritor.

«- Não vai apagar o meu candeeiro, pois não?

– Monsieur, sabe perfeitamente que eu não tomaria a iniciativa de acender nem de apagar o seu candeeiro. É monsieur quem dá as ordens.

– Não o apague, Céleste… Há uma mulher enorme dentro do quarto… uma mulher enorme e vestida de preto, horrível… Quero ver bem…

– Espere um pouco, monsieur, não se apoquente; vou já correr com essa mulher! Ela mete-lhe medo?

Ele respondeu:

– Um pouco, sim. Mas a Céleste não lhe pode tocar…

Ele tinha-me falado muitas vezes sobre a morte ao longo dos anos, mas nunca com o aspecto daquela mulher medonha e vestida de preto que alguns diziam que aparecia para o assombrar, especialmente no aniversário da morte da mãe – mas que disparate! Até ali, sempre que fizera referência à morte, fora apenas para me dizer que morrer não lhe metia medo.

Quando me falou naquela mulher grande e horrível, pensei que teria tido um pesadelo, ou que estaria a delirar por causa da febre. Mas, pouco depois, quando o vi sossegado e parecendo ter voltado ao repouso, saí do quarto».

Ao fim da tarde do dia seguinte, 18 de novembro de 1922, Marcel Proust, um dos maiores romancistas do século XX, estava morto. Muitos amigos foram surpreendidos pela notícia, pois achavam que o escritor exagerava as suas maleitas. Como disse a sua governanta, o tempo tinha parado.

‘Um pouco de tempo em estado puro’

Quatro dias depois da morte de Proust, um arqueólogo britânico, Howard Carter, anunciava ao mundo a descoberta do túmulo de Tutankhamon no Vale dos Reis, em Luxor. Os antigos egípcios tinham descoberto uma forma de desacelerarem o tempo, preparando cuidadosamente os seus cadáveres com unguentos e faixas. Como explica o químico Nuno Maulide, o envelhecimento é nada mais do que «uma combustão lenta» das células do corpo. E os médicos egípcios conseguiam travar esse processo. Após um sono profundo de três mil anos, o corpo do jovem faraó continuava intacto.

Para Proust, a questão punha-se de outra forma. Não se tratava tanto ‘combater’ ou travar a passagem do tempo como de ficar a pairar fora dele.

Reveladoramente, para a pré-publicação de No Caminho de Swann, no Figaro, escolheu a seguinte passagem: «Depois chega o dia em que a vida já não nos traz mais alegrias. Mas então a luz que se lhes assimilou devolve-nos […] o que não mais é para nós do que uma reminiscência da felicidade; ela faz-nos experimentar, ao mesmo tempo no instante presente em que brilha e no instante passado que nos recorda, ou antes entre os dois, fora do tempo, e realmente faz disso alegrias perpétuas».

Era através dos lampejos da memória e dos momentos inspirados que se conseguia captar a essência da vida e desafiar a morte. Como na pintura de Dalí, A Persistência da Memória, em que um relógio pende com o mostrador deformado sobre uma corda, mole como uma peça de roupa ou esparguete, a memória permite fazer essa distorção do tempo.

Nada como recorrer de novo às palavras do romancista «E eis que repentinamente se neutralizava, se sustinha o efeito dessa dura lei, pelo expediente maravilhoso da natureza, fazendo cintilar a mesma sensação […] tanto no passado, o que permitia à imaginação gozá-la, como no presente, onde o abalo efectivo dos sentidos, pelo som, pelo contacto, acrescentara aos sonhos da fantasia aquilo de que são habitualmente desprovidos, a ideia da existência, e, graças a esse subterfúgio, me fora dado obter, isolar, imobilizar – a duração de um relâmpago – o que nunca dantes apreendera: um pouco de tempo em estado puro». «Tempus fugit», diziam os latinos. Por um instante que fixou para sempre, Proust conseguiu, se não dominar o tempo, pelo menos escapar às suas garras.