António Frias Marques. “Há senhorios que estão a subir as rendas em 10%”

O presidente da Associação Nacional de Proprietários revela que esta é a solução encontrada para contornar a norma travão de 2%. Mas isso exige negociação com o inquilino e fazer novo contrato.

Como vê a norma travão de 2% imposta pelo Governo para travar o aumento das rendas no próximo ano?

O Governo adulterou os valores do coeficiente da atualização que foi publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) no dia 28 de outubro e está escrito preto no branco que o coeficiente é de 5,43%. Mas pela Lei 19, publicada a 21 de outubro, o Governo decidiu alterar esses parâmetros que existem desde sempre, transformando os 5,34% – um valor que já se de si é baixo porque todos sabemos que a inflação é seguramente mais do que 10% – em 2%, o que é uma coisa absolutamente estrambólica, e o resultado está à vista. Quando não podemos sair pela porta saímos pela janela. Há dois tipos de arrendamento. Há arrendamentos de prazo indeterminados, normalmente aqueles contratos antigos, anteriores a 1990, em que os arrendatários já são pessoas de uma certa idade e com uma renda indexada a baixíssimos rendimentos. Esses contratos continuam a beneficiar do chamado período transitório de eventual passagem para o NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano) e não podem ser mexidos. Já vamos com 10 anos nesta situação, em que há rendas à volta dos 50 e dos 100 euros e nem sequer pode ser aplicado o coeficiente de atualização anual. É aquela mexeriquice e naquela mexeriquice ninguém toca. E estamos a falar de cerca de 200 mil contratos de arrendamento. Em relação aos outros, que são 922 mil, em números redondos, têm um prazo determinado. Quanto a estes é natural que os proprietários, não podendo aplicar o coeficiente legal, porque lhes foi sonegado, tentem fazer valer os seus direitos porque precisam de fazer obras e entretanto têm de pagar seguros, conta da luz da escada, há o elevador, há a limpeza, há uma série de despesas de conservação e de manutenção que têm de ser asseguradas. O que está a acontecer? Quando chega a altura, os proprietários opõem-se à renovação do contrato. Isto é absolutamente legal, a menos que o Governo decida adulterar, desta vez, o Código Civil. Isso também não me admirava nada. Deste Governo espero tudo. O que acontece naturalmente é que os proprietários estão-se a opor à renovação dos contratos e em relação ao inquilino lá conversam com ele e dizem: ‘Vai ter de me pagar 10% de renda, se a renda é de 500 euros passa para 550 euros’. Na maior parte dos casos, o inquilino aceita e, nessa altura, é feito um novo contrato.

É começar tudo de novo?

Isto não é governar mal, é governar muito mal, porque implementaram uma medida que consideramos absolutamente demagógica que é a de não permitir um aumento 5,43% das rendas. As árvores conhecem-se pelos frutos, não é pela sombra que dão. O que acontece? Na prática, em vez de estarem a aumentar as rendas em 5,43% estão aumentar 10%, o que ainda assim até é muito menos do que a inflação anual. Mas fazendo novos contratos.

Contornam assim a norma travão?

O problema é que estamos a ganhar pouco. Quando é posta no mercado de arrendamento uma vivenda – e todos os dias acontece isso – com uma renda à volta de mil euros, essa casa passado uma semana ou duas é arrendada. Há aqui uma lei do mercado, os proprietários não são malucos e não vão pedir mil euros de renda se não houvesse procura. Pedem mil euros, por exemplo, porque aparece sempre alguém quem lhes dê. Agora posso não ser eu ou você que estamos disponíveis para dar os tais mil euros. Mas a verdade é que todos os dias há pessoas endinheiradas, muitas estão a entrar por Portugal adentro, até quadros de grandes empresas. Por exemplo, uma empresa brasileira tem um engenheiro brasileiro que vem para aqui para dirigir a fábrica, então tem de arranjar uma casa para esse quadro. Outro exemplo, a fábrica de cimentos que agora é turca. Evidentemente vêm para Portugal uma série de dirigentes turcos, com um alto poder aquisitivo e não lhes faz confusão nenhuma pagar uma renda de mil euros. Agora pessoas daqui com ordenados de 700 euros claro que não podem, mas aí se calhar tem que entrar a habitação social. 

E aí é que começam as dores de cabeça devido à falta de oferta na área da habitação social…

Este Governo tem tido habilidade e tem uma força de propaganda fabulosa, em que transfere o ónus de não ter feito nada em sete anos no aspeto da habitação para os proprietários. Ou seja, as pessoas que não têm outra possibilidade a não ser recorrer à habitação pública passam a ser responsabilidade dos proprietários privados. Isso é uma habilidade que tem surtido efeito, muitos dos inquilinos têm rendas mixurucas: 40% das rendas são inferiores a 400 euros. Só 2% das rendas são superiores a mil euros. Já as rendas inferiores a 50 euros são 84 304, ou seja, 9% do total. E rendas entre 50 e 99 euros são 63 580 contratos, isto é, o maior grupo. Entre 200 e 399,99 euros temos 372 919 contratos. Isto são valores perfeitamente aceitáveis. É evidente que quem anda à procura de casa tem maior dificuldade e depois as pessoas metem coisas na cabeça e não dispensam todas as comodidades. É evidente que quanto mais comodidades metermos dentro de casa mais a renda sobe. Conheço pessoas que não têm onde cair mortas mas que não dispensam uma cozinha com uma ilha central e depois não fazem nada e mandam vir a comida toda feita. 

Para já, este travão aplica-se apenas a contratos feitos até ao final de 2021. Não deveria ser estendido aos contratos assinados este ano?

Os contratos feitos em 2022 não podem simplesmente aumentar nada. Aliás, podem aumentar mas depois não são beneficiados com o coeficiente de compensação que é o tal 0,9%.

São as tais compensações fiscais?

Essas compensações em termos fiscais são muito engraçadas porque as rendas vencem-se a partir de janeiro de 2023 e essa eventual compensação, que ainda estamos para ver como é que vai ser feita porque andamos aqui com promessas há uma série de anos, mesmo que aconteça só vai ocorrer no segundo semestre de 2024. 

É na altura da entrega do IRS…

Exato, e essas contas serão feitas a seguir. Vamos ver o que vai acontecer nessa altura.

E em relação às rendas comerciais?

As regras são as mesmas, porque a lei diz que são os contratos habitacionais, não habitacionais e até rurais.

Espanha anunciou esse travão e foi apontada como um exemplo…

Essa é outra aldrabice. Primeiro não se pode falar em Espanha, porque há a região autónoma de Madrid, as Astúrias, o País Basco, a Catalunha etc., e como há governos regionais esta matéria é tratada por eles. E mesmo quando houve, se não estou em erro foi em junho, foi um acordo entre o Podemos e o PSOE, em que os 2% era para vigorarem durante três meses. Agora vamos comparar com Espanha? As pessoas como não sabem nada de nada fazem isso. E, por outro lado, a renda média em Espanha é, pelo menos, o dobro de Portugal e os ordenados nem se fala, e quando vamos ao supermercado as coisas custam o mesmo preço ou se calhar até são mais baratas.

Disse na última entrevista que deu ao i que este Governo nos últimos sete anos não tinha feito nada a não ser “matar” o mercado de arrendamento. Este travão é mais uma “facada”?

Não é só mais uma facada, como também é de uma falta de habilidade completa porque, na prática, os proprietários estão a impor aos inquilinos um aumento de 10%.

Mas nem todos terão condições financeiras para suportar esse aumento…

Os bens de primeira necessidade, e estudamos isso no primeiro ano de economia, são a alimentação, o vestuário, e a habitação vem depois. Quando chego ao supermercado, que eu saiba o Governo não pôs um travão nos preços. Por exemplo, o leite, que é dos primeiríssimos bens de primeira necessidade, estava a 48 cêntimos em janeiro hoje está a 83 cêntimos o litro. É quase o dobro, mas que eu saiba o Governo ainda não impôs a nenhum supermercado que só possa aumentar 2% e que não pode subir mais. Então porque é que impôs isso no arrendamento? Porque o proprietário particular é o bobo da festa, e já há muito tempo. E é por isso que ninguém quer ser senhorio. 

Isso cria instabilidade e insegurança para os proprietários porem os seus imóveis no mercado de arrendamento? 

Imagina as rendas que não são pagas? É uma coisa extraordinária. Aí é que o Governo devia atacar. Temos casos de inquilinos que não pagam a renda e estão lá sete, oito, nove anos e ninguém os tira lá de casa.

Para isso existe o balcão de despejos…

Não é de despejos, é o Balcão Nacional do Arrendamento, despejos é um cognome que alguém deu. Isso só funciona se o inquilino sair a bem, se não sair a bem, o processo vai para os tribunais. Se o inquilino for uma pessoa muito bem educada e certinha, aceita essas coisas, se não for não sai e se não tiver para onde ir é evidente que não sai mesmo.

Ainda assim, Portugal continua a ter uma cultura de proprietários…

Devemos pôr o proprietário entre aspas porque 80% da população vive em casa própria, mas muitos deles são inquilinos dos bancos. O número de contratos de arrendamentos habitacionais dos Censos do ano passado são 92 2921, isto equivale a cerca de 10% da população. A grande maioria não vive em casas arrendadas e dizem que ‘o andar é meu’. Embora muitos deles tenham uma mentalidade de inquilinos. Mas é uma ilusão que as pessoas têm.

Disse que a solução passaria por uma aposta na habitação pública. O PRR tem verbas para isso…

Só se pode falar em novos projetos depois de estarem realizados. O Governo pode prometer o que quiser, mas há uma coisa que posso garantir: nos últimos sete anos não se construiu casas para as pessoas de classe média ou baixa ou seja o que for. Se corrermos, principalmente Lisboa, vimos construção de luxo e há uma realidade que geralmente nos esquecemos, que é a quantidade de estrangeiros endinheirados que entram por aqui diariamente e que não se importam de pagar rendas altíssimas. E até eventualmente comprarem.

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