“A covid está cá: não nos veremos livres dela tão cedo”

“Temos de estar atentos à possibilidade do surgimento de uma linhagem que além de fugir aos anticorpos seja mais patogénica”, diz o epidemiologista Carmo Gomes. 

“A covid está cá: não nos veremos livres dela tão cedo”

São cada vez mais as medidas que vão ao encontro do alívio das restrições que estavam em vigor devido à pandemia. Por exemplo, esta segunda-feira, a Direção-Geral da Saúde (DGS) anunciou que os testes à infeção com o coronavírus SARS-CoV-2 deixaram de ser recomendados a assintomáticos e acrescentou também que os doentes internados com covid-19 passam a poder receber visitas. Será demasiado cedo para dar estes passos?

“A covid-19 está a subir devagarinho, mas nada que se compare com o que se passou por esta altura no ano passado. O número de casos que a DGS reporta, evidentemente, não tem nada a ver com a realidade. Pensamos que temos de multiplicar aquele número por quatro para ter uma maior aproximação à realidade”, diz Manuel Carmo Gomes, o que significa que, no mínimo, devemos estar com 2500-3000 casos por dia. 

“Isto é bastante menos do que em novembro do ano passado porque houve uma grande subida e, depois, chegou a Ómicron e tivemos um pico monstruoso. Não é isso que se verifica agora”, explica o membro da Comissão Técnica de Vacinação, o órgão com funções consultivas junto da DGS, adiantando que “no que diz respeito aos principais indicadores que seguimos, temos os hospitais e os óbitos”. 

Neste momento, estão internadas na enfermaria covid-19 537 pessoas. Este é o número médio dos últimos sete dias. “Entre meados de outubro e a primeira semana de novembro, tínhamos 400-500 pessoas. Na segunda semana de novembro, ultrapassámos a fasquia das 500. É uma subida suave, mas não tem parado: é um facto. E não me espantaria que continuasse a aumentar porque vamos entrar no inverno”. 

Nas Unidades de Cuidados Intensivos estão uma média de 40 pessoas internadas “e viemos de uma média de 30-40 entre 15 de outubro e 15 de novembro. Estas subvariantes da Ómicron não são mais patogénicas do que a Alfa, a Delta, etc. Aparentam ser menos e, simultaneamente, temos uma grande cobertura vacinal e muitas pessoas já estiveram infetadas com o vírus”, nota o especialista, referindo que “a nossa população tem aquilo a que se chama uma imunidade híbrida muito elevada” e destacando que “isso, em parte, explica o motivo pelo qual estamos a evoluir neste ritmo lento”. 

“Estamos com uma média de oito óbitos por covid-19 por dia. Em setembro e outubro, andámos a variar entre 6 e 7, em média. Há altos e baixos, claro. Na segunda metade de novembro, estivemos entre 7 e 8. Também sobem ligeiramente e não se assemelham aos 13 e 14 de 2021. A covid está cá: não nos veremos livres dela tão cedo. É melhor esquecer isso”, afirma Manuel Carmo Gomes. “Temos um grau de proteção elevadíssimo, o vírus evolui muito depressa – acompanhamos com muita atenção -, mas, felizmente, estas novas subvariantes não causam doença muito grave”.

 “O risco de as pessoas irem parar ao hospital é baixinho. Só que ainda temos 2500 a 3000 casos por dia e, portanto, isso faz-se sentir. Também temos a gripe e o sincicial respiratório. Também rinovírus, adenovírus, os outros coronavírus… Há todo um jardim zoológico de vírus respiratórios que é habitual nesta época do ano”, indica, apontando que o caso do sincicial tem chamado mais a atenção – o VSR – porque afeta, principalmente, as crianças mais pequenas. 

“Todos nós, ao longo da vida, já fomos infetados com este vírus, mas nas crianças em geral causa doença mais grave e temos muitas crianças com menos de três meses infetadas. E entre essa idade e um ano. E muitas são internadas. Este é o vírus que está a originar o número de casos menos habitual e a maior afluência às urgências. Muitas crianças nunca contactaram com este vírus no passado porque estamos há quase três anos com um grande incentivo às medidas de distanciamento social”, observa o especialista, sublinhando que “agora, aliviámos tremendamente as restrições e é natural que haja esta dívida de suscetibilidade para com o vírus”. 

Já se sabia que os vírus respiratórios estavam a ‘entupir’ os serviços de urgências dos hospitais, mas agora sabemos que são o SARS-CoV-2, o Influenza e o Vírus Sincicial Respiratório que andam a fazer das suas. Quem avançou esta informação foi o Observador, mas Xavier Barreto, presidente da Associação de Administradores Hospitalares, relatou este cenário à TSF e exemplificou que na terça-feira passada os doentes urgentes com pulseira amarela esperavam 14 horas para serem atendidos no Hospital de Santa Maria.

Este panorama complexo já levou a que os chefes e subchefes das equipas do Serviço de Urgência de Medicina do Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) – 44 médicos, no total – apresentassem ontem a demissão, por acharem que está em causa a qualidade assistencial e a segurança dos doentes que procuram aquela instituição. Na segunda-feira, os chefes de equipa das urgências do Hospital Garcia de Orta, em Almada, apresentaram a demissão devido à escala para o mês de dezembro.

“O foco é (…) ver se surge algo preocupante no mundo” “Quanto à obrigatoriedade do uso das máscaras… Aliviámos demasiado esta medida em locais particulares como é o caso dos transportes públicos. Advogo a utilização das medidas protetoras de uma forma inteligente. Sabemos como somos infetados, já não temos muitas dúvidas: principalmente pelo nariz. Inalamos ar que tem este vírus em suspensão”, declara Carmo Gomes. “Isso acontece em locais que não são arejados, onde estão ou estiveram pessoas infetadas e o simples facto de essas pessoas estarem presentes a respirar… Lançam no ar partículas virais infecciosas. E essas ficam em suspensão durante bastante tempo. Largos minutos ou até uma ou duas horas”. 

“Pode ser uma sala, um gabinete, um transporte público… Basta respirar normalmente para ficar infetado. Sempre que estamos nesses ambientes devemos usar uma boa máscara N95 que hoje em dia é baratíssima. Compramos nas parafarmácias e nos supermercados por um valor reduzido e tiramo-la quando saímos”, aconselha, dizendo que se as pessoas se informarem e perceberem como são infetadas, podem proteger-se devidamente. 

“Já não advogo a obrigatoriedade, exceto em sítios muito especiais como as unidades de saúde onde estão pessoas muito fragilizadas que correm risco de vida, mas de resto impõe-se a utilização inteligente. Aquelas ideias que tínhamos de que o vírus podia vir nas encomendas e etc., está tudo ultrapassado. Tudo bem, era a informação que tínhamos: pode acontecer, mas não é isso que domina. A esmagadora maioria das infeções acontece pelo nariz. Isso está bem estabelecido. Portanto, a coisa inteligente a fazer é protegermo-nos. Este vírus é mais perigoso do que a gripe e não temos interesse em ficar doentes”, sublinha, lembrando que há pessoas que, depois de passarem pela fase mais aguda da infeção, ficam com problemas de saúde. “Muita fadiga, dificuldade de concentração… O vírus afeta qualquer órgão do nosso sistema. Não é boa ideia sermos infetados: é péssima! Por vezes, temos de proteger as pessoas muito frágeis com quem contactamos e não pensar apenas em nós”. 

Relativamente ao caso da China, que aliviou as restrições devido aos protestos, considera-o “muito interessante”, assim como o de países como a Coreia do Sul ou o Japão. “Tiveram muito sucesso a controlar a pandemia em 2020 e 2021 através de medidas draconianas como prender as pessoas. No caso do Japão, foram muito disciplinados. Acontece que, por causa disso, têm uma percentagem muito elevada da população que nunca contactou com o vírus. Descuraram um pouco a vacinação. Na China, a percentagem de pessoas que fez o primeiro reforço anda à volta dos 50%. Eles têm uma cobertura vacinal que ronda os 89%, do esquema vacinal primário, mas a proteção já lá vai. Neste momento, esse esquema não protege contra a infeção, mas sim contra a doença grave. Apostaram muito nas medidas de confinamento, mas isso não funciona com a Ómicron porque tem uma transmissibilidade tremenda: é como querer parar o vento com as mãos”, confessa, admitindo que “aquela decisão de fechar as pessoas em casa é completamente anticientífica”. 

“É insustentável, uma utopia que tinham na cabeça. Os dirigentes políticos, porque tenho a certeza de que a comunidade científica não pensa desta forma. Agora vai sair-lhes o tiro pela culatra porque em vez de terem estado a investir em prender as pessoas e restringirem as movimentações, deviam ter insistido brutalmente na vacinação. Ainda por cima, não aceitaram as vacinas RNA do Ocidente e, neste momento, estão com um drama: têm 50 mil casos por dia e a situação vai agravar-se”, prevê. “Não sei como é que vão gerir o problema, mas meteram-se num sarilho desnecessariamente. Por falta de orientação científica: há um divórcio entre o conhecimento científico e a elite política”, lamenta. 

“Os dirigentes políticos ficaram deslumbrados com o sucesso que tiveram quando o mundo todo ficou de joelhos: as pessoas morriam em países como Itália e Espanha e eles eram bem-sucedidos. Não evoluíram como o vírus evoluiu. Agora é acompanhar as subvariantes: o vírus diversifica-se tremendamente”, menciona, notando que “as linhagens fogem aos nossos anticorpos e aos tratamentos monoclonais”, como a BQ.1 e a XBB e a CH.1 (ver pág. 10).

“Felizmente para nós, não está mais patogénico. Temos de estar atentos à possibilidade do surgimento de uma linhagem que para além de fugir aos anticorpos seja mais patogénica. Para já, não há sinal de que isso tenha acontecido ainda. Por exemplo, a variante Delta ainda existe e foi talvez a mais patogénica de todas. Chegou a Portugal em junho de 2021 e já estávamos vacinados”, recorda, frisando que esta criou “uma onda epidémica em pleno verão”.

“Pode haver uma recombinação da Delta com estas linhagens da Ómicron. Por exemplo, se um doente imunodeprimido mantiver a infeção durante muito tempo e for simultaneamente infetado pela Delta e a Ómicron… O vírus vai buscar informação genética às duas variantes e pode arranjar uma recombinante que gere preocupação”, reflete. “Há imensa circulação do vírus em todo o planeta. O foco, para nós, portugueses, é acompanhar a evolução do vírus e ver se surge algo preocupante no mundo”