O arguido político

O nosso Código Penal não prevê uma nova figura emergente com maior ênfase nas últimas décadas no ordenamento  jurídico português, o arguido político.

por Alexandre Faria
Escritor, advogado e presidente do Estoril Praia

Tratando-se de uma denominação inexistente em diversos países, o arguido pode ser definido, em Portugal, por alguém formalmente constituído como eventual responsável pela prática de um crime num processo penal. No regime jurídico português, tal sucede apenas quando existem indícios, a provar posteriormente, de ter sido cometido um delito criminal.

A constituição de um indivíduo como arguido, seja por um hipotético crime ou pela possível prática de uma contraordenação rodoviária, de excesso de velocidade ou por passar um traço contínuo, confere-lhe direitos e deveres processuais muito relevantes, destacando-se o acompanhamento por um advogado, a apresentação da sua defesa e provas por não ter cometido tais atos, tal como beneficiar do mais importante princípio do direito processual penal, a sua presunção de inocência até ao trânsito em julgado de uma sentença que o condene em definitivo, ou seja, o momento em que já não dispõe da possibilidade de recurso. Por esse motivo, pela chance de colaborar com a realização da justiça, a constituição como arguido até pode ser solicitada pelo próprio.

Frequentemente considerado um dos melhores a nível mundial, pela sua visão humanista de reintegração ao invés da perspetiva punitiva, o nosso Código Penal não prevê no seu texto, no entanto, uma nova figura emergente com maior ênfase nas últimas décadas no ordenamento jurídico português, o arguido político.

Os titulares de altos cargos públicos encarnam na perfeição este novo sujeito processual. Como têm mais responsabilidades face ao exemplo que constituem, é compreensível que a exigência seja bem maior, devendo ser severamente sancionados em caso de uma culpabilidade final comprovada. Porém, na fase de investigação, perdem os direitos habituais de um arguido normal num Estado de Direito. O arguido político não beneficia da presunção de inocência, a consagração da verdade material é distorcida pela influência da opinião pública e a formação de um juízo de valor é tomada antes do julgamento. Até o anúncio de um termo de identidade e residência, medida legal obrigatória que só confirma os elementos de identificação e define a morada para futuras notificações judiciais, assume proporções de punição.

Numa sociedade ávida de escândalos, embrenhada na desinformação, contaminada por movimentos organizados que apostam tudo na descredibilização da classe política e na fragilização dos alicerces da democracia, convenhamos que nada é mais estimulante para alimentar a típica inveja latina do que um arguido político. Neste contexto, contribuir para desacreditar aqueles a quem conferimos mandatos confere um prazer acrescido, permitindo digladiar-nos num júbilo alicerçado em frustrações.

Mas esta instigada predileção social pelo arguido político não demonstra que a democracia está em causa. Pelo contrário, a condenação de um arguido pela prática de crimes de prevaricação ou de abuso de poder comprova um princípio da separação de poderes a funcionar. Desde que aguardemos que as sentenças transitem em julgado.