Ricardo Penarroias. “A greve dos tripulantes não é algo que vamos fazer de ânimo leve”

O presidente do SNPVAC diz que a fase de diálogo com a TAP já terminou e depois de mais de seis meses de espera garante que “a paciência tem limites”. 

Por Sónia Peres Pinto e Daniela Soares Ferreira

Para o presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC), os tripulantes foram os primeiros a apoiar a TAP no acordo de emergência no âmbito da pandemia. Mas os tempos mudaram e a companhia até está a crescer mais do que estava previsto, pelo que não entende o porquê de os trabalhadores continuarem com os cortes. Ricardo Penarroias dá cartão vermelho à administração de Christine Ourmières-Widener que diz que não promove a paz social que, no seu entender, deveria ser das principais bandeiras da empresa. O dirigente sindical explica que a greve de dois dias que amanhã começa já começou a ter impacto e que terá ainda nos dias seguintes e lamenta também a escolha dos serviços mínimos que diz ser ‘mais um atentado à democracia portuguesa’.

A greve está marcada para dia 8 e 9 de dezembro. O que reivindicam? 
Queremos retomar as nossas vidas. Com a pandemia veio um acordo de emergência e além dos custos brutais que tivemos, tivemos ainda um corte de 25%, que é transversal a todo o grupo TAP. O acordo de emergência retirou-nos algumas regalias, que eram benéficas para os tripulantes, para a operação, para a vida e para a estabilidade dos trabalhadores de cabine da TAP. Entendemos que a realidade de hoje já não é a mesma de 2021 e a própria empresa já assumiu – e foi difícil de assumir – que a operação aumentou mais do que era previsto.

A TAP destacou esse aumento quando apresentou os últimos resultados…
A empresa não pode vir dizer que estamos a ter lucros de 112 milhões de euros, que estamos a ter uma operação acima do que era expectável – em alguns dias, mesmo acima de 2019 – e depois não ter, por outro lado, os tripulantes de cabine que quando foi necessário ajudaram a empresa. Fomos os primeiros a aceitar, assinámos o acordo de emergência para a recuperação da empresa. A empresa está a recuperar e não somos nós os culpados da situação financeira e dos vários erros de gestão que a empresa teve ao longo destes últimos 20, 30 anos. Se a operação está a recuperar então queremos retomar aquilo que é nosso.

O acordo de emergência não tem data para terminar? 
Tem uma data, um princípio e um fim. Foi negociado até março de 2021 mas tem retroativos a partir de 1 de janeiro desse ano e vai até 31 de dezembro de 2024. Totalmente de acordo, assinámos. Mas cuidado, em relação aos cortes sabemos o que assinámos, e contra a classe muitas vezes falo, mas a verdade é que quer se queira quer não, os cortes de 25% também deverão existir em 2023 porque era mais ou menos expectável a operação a realizar. Temos de ter algum cuidado quando falamos dos 25%, achamos que é injusto, é insustentável porque não se sabia da inflação e da recessão de que hoje em dia se fala tanto. Um tripulante de cabine, neste momento, além do corte de 25% – que é aplicado acima dos 1410 euros – ainda tem a inflação que está a chegar aos dois dígitos. Ou seja, estamos a ter um corte a rondar os 30%. A situação está insustentável, não estamos a querer aumentar e já nem estamos a falar em manter os nossos níveis de vida, estamos a falar é de sobrevivência.

Qual é o ordenado médio?
Vou fazer ao contrário. Vou falar do meu caso: um casal, em que os dois são chefes de cabine, estamos a meio da tabela hierárquica, os dois juntos temos uma perda de 1200 a 1400 euros por mês no nosso rendimento. É muito. Pergunto a qualquer português se, de uma forma unilateral, sem ter culpa de nada, visse o seu rendimento cair desta maneira, quando criou a sua vida em função do seu rendimento, o que faria. Sofre este corte, sem ter culpa de nada, da pandemia, dos erros de gestão… A atual situação que a TAP vive não é apenas exclusiva da pandemia. É da pandemia mas é também resultado de vários erros de gestão.

Até foi polémico o caso da atribuição de prémios, numa altura em que a empresa tinha prejuízos…
Sem dúvida. Na altura, o ministro Pedro Nuno Santos foi contra essas medidas. Espero que tenha a mesma coerência este ano em relação aos prémios que possa ou não haver. Costumo dizer que o exemplo tem de vir sempre de cima e não de baixo e espero que essa rigidez financeira que a empresa tem apresentado e argumentado para evitar dar ou desanuviar este sufoco que os tripulantes vivem neste momento se mantenha. A companhia defende sempre essa rigidez financeira ao dizer que está a aplicar um plano de reestruturação, que está sob a alçada da União Europeia, mas o que se tem verificado e o que revolta os tripulantes de cabine e do grupo TAP em geral é que essa rigidez só é para um lado. Não me recordo, nas mesas das negociações, no plano de reestruturação, por exemplo, a mudança da sede. Já nem vou falar na mudança de frota que é tão ridículo e caricato. É o tal exemplo que vem de cima.

A mudança de frota acabou por ser cancelada, ainda assim a TAP teve de pagar uma indemnização…
Foi aprovado em assembleia, por unanimidade, um voto de desconfiança a esta administração. Esta administração parece que anda um pouquinho ao sabor do vento. Mesmo que tivesse razão, e vamos supor que os trabalhadores estavam errados, então a renovação da frota deveria ir para a frente. Se era realmente tão bom tinha de manter a sua posição e tínhamos de aceitar. Questiono muito esta administração que se calhar vai ser vista pelos números que apresenta, em que é preciso vender a companhia, insuflar a companhia, torná-la bonita. Por um lado, mostra-se que a companhia está recuperada, mas por outro lado temos de dizer aos trabalhadores que não viram nada, porque é para vender. Está a fazer isto para os compradores e os trabalhadores estão a sentir. Então e nós? Não recuperamos as nossas vidas? É basicamente isto que está a acontecer. E o que verificamos ao longo deste processo, que é grave e onde para mim a empresa falha redondamente e tem nota negativa é na paz social.

Voltando à greve. A TAP fala em perdas de oito milhões de euros, 360 voos cancelados, 50 mil passageiros afetados. O sindicato diz que a TAP é que vos deve 12 milhões em incumprimentos. Que incumprimentos são estes?
Aquilo não são perdas da TAP, é algo que é nosso. São os incumprimentos que a TAP, ao longo dos meses, foi fazendo. A partir de março e abril pedimos à empresa que nos sentássemos à mesa para dialogar e resolver isto a bem. A greve não é algo que vamos fazer de ânimo leve. É quando entendemos que o diálogo já terminou. Estamos há mais de seis meses para tentar resolver, a paciência tem limites. A empresa não está a pagar-nos oito milhões. Estava a devolver os oito milhões que são devidos, mas esquece-se que não são oito, são 12. Em muitas situações estamos a falar de e-learning, a empresa fez um protocolo em 2018 com a anterior direção do sindicato e até agora nunca o pagou a todos os tripulantes de cabine. A companhia, no acordo de emergência, suspendeu uma cláusula de 30 minutos para efeitos de tempos de trabalho e tempos de descanso, não era remuneração. É só fazer uma conta métrica: somos 2700 tripulantes de cabine, cada um retira 30 minutos diariamente, vejam bem quanto é que a companhia está a ganhar só nestes 30 minutos. Temos outras variantes mais técnico-fiscal que tem a ver com as ajudas de custos de que a empresa não fez os acertos, mais uma vez, unilateralmente. A ajuda complementar deixou de existir por estar numa situação difícil. Um tripulante de cabine, em média, teria que ser ressarcido, anualmente, perto de 3000 euros, por estes reajustes de ajuda de custo e de ajuda complementar. Quando a companhia diz que está a ceder, não está a ceder. Está a pagar aquilo que colocámos em tribunal e que, mais tarde ou mais cedo, vai ter de pagar.

A TAP recorreu ao Tribunal Arbitral para definir os serviços mínimos e foi fixado que os tripulantes têm de assegurar 3 voos diários (ida e volta) para Açores, 2 para a Madeira e um voo diário de ida e volta (2 para o Brasil) para 12 destinos internacionais. O que acha desta decisão?
Foi mais um atentado à democracia portuguesa. A decisão não tem em conta os interesses dos passageiros e apenas defendeu os interesses da TAP. Além disso, entendemos que o serviço mínimo não faz muito sentido nesta altura. Por exemplo, as ilhas são sempre as questões mais importantes, mas temos duas companhias a voar de Lisboa para a Terceira e depois não nos podemos esquecer que quem faz a ligação inter-ilhas é a SATA Açores. Também no caso da Madeira, tanto a easyJet, como a Ryanair voam de Lisboa para o Funchal, portanto há alternativas. Podem é demorar mais tempo para os passageiros, o que causa transtorno. Mas a verdade é que serviços mínimos, na minha opinião, é algo específico, é algo em que não há outra solução. E aí sim, defendo que haja. Se calhar há uns anos era o primeiro a defender que, no caso da Madeira, no caso dos Açores, teríamos de ser nós a garantir. Hoje em dia parece-me que não faz muito sentido e é uma maneira da empresa contornar e fazer os voos. O próprio Governo Regional da Madeira já veio dizer, de uma forma infeliz, que a TAP já tem pouco impacto na ilha. Não concordo e quando houver mau tempo vamos ver o que diz. Além disso os trabalhadores votaram positivamente a proposta para realizar um mínimo de cinco dias de greve a realizar até dia 31 de janeiro em datas depois definidas.

Mas esta paralisação vai ter efeitos antes e depois…
E já está a ter. A TAP já está a fazer convites, diria muito aliciantes, aproveitando-se das dificuldades financeiras que os tripulantes estão a ter e para tentar desinsuflar a greve. Estão a prolongar as estadias, contornando o que está no Acordo de Empresa para colocar esses tripulantes antes e permitir que o voo seja feito. Imagine que ficaria mais dois dias fora da base, isso mexe com as folgas. A TAP o que tem de perguntar é se o tripulante está disposto a abdicar dos dias de folga ou a empurrar os dias de folga para depois. Tem de perguntar. Unilateralmente nunca o pode fazer. Como muitos tripulantes não aceitam, a TAP está a fazer convites para poder fazer esses voos, porque a paralisação do dia 8 e dia 9 está a ter impacto, porque há muitos voos que já não saem. Há voos que já não saíram nos últimos dois dias. E depois, como é lógico, o tripulante que chegava a Lisboa dia 8 ou dia 9 provavelmente dia 10 ou dia 11 iria voar, mas como estes tripulantes vão estar fora da base por causa da greve também não vai haver tripulação para fazer certos voos de dia 10 e dia 11 e no dia 12 ainda haverá resquícios sobre isso. Tudo isto tem um efeito de contágio. Uma greve de dois dias na aviação engloba dois dias para trás e dois dias e, em alguns casos, três dias para a frente. Quando a companhia passa a mensagem de 360 voos cancelados sabe que o efeito é muito maior do este, porque vai ter vários dias de impacto. 

360 nos dois dias?
A TAP tem previsto dia 8, 301 voos e 322 a 9 de dezembro. Estamos a falar de 623 voos. Os efeitos são nessa magnitude e deixa-me satisfeito que a empresa tenha percebido a mensagem da assembleia. É preciso dizer que a companhia, ainda antes de ser oficializado o nosso pré-aviso já assumia esses cancelamentos, porque sabia que a adesão ia ser grande. Se não fazia como em 2021, se não me engano, com a Grondfource, em que não precaveu, quis pagar para ver e a verdade é que a greve teve um grande efeito e durante dois dias andou com voos cancelados. O aeroporto estava um caos porque quis pagar para ver. Neste caso, a companhia precaveu-se e elogiamos a postura de antecipação que fez, mas também mostrou que afinal percebeu a mensagem e que os tripulantes estavam unidos. É engraçado, a companhia conseguiu unir uma classe que, muitas vezes, é acusada de ser desunida.

Se juntassem os pilotos, a greve não teria mais impacto? 
Cada um tem os seus timings. Em agosto, o Sindicato dos Técnicos de Manutenção de Aeronaves (SITEMA), o Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC) e o Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC) enviámos enviámos uma carta ao ministro e fizemos uma manifestação silenciosa, que ocorreu junto do ministério. A estratégia do SPAC é outra, já estão a negociar o Acordo de Empresa e entendem que existem fundamentos e princípios para poderem renegociar. Respeito as duas estratégias.

Acusou as anteriores administrações de erros. Na altura, quando Pedro Nuno Santos foi buscar a atual administradora, disse que iria buscar os melhores do mercado. Foi um tiro ao lado? 
Não sei qual foi o contrato que foi feito, não sei se está ou não a atingir os objetivos pretendidos. Se o objetivo de Christine Ourmières-Widene era conseguir recuperar a empresa e manter a paz social então não está a conseguir. A mensagem não passa e se isso era um dos objetivos então algo está mal. Se o objetivo é recuperar a empresa operacionalmente para poder vendê-la a comprador – em sistema semi-privado ou privatizada totalmente ou encontrar um parceiro – então se calhar está a fazer o trabalho que era pretendido. Como diretor sindical, como trabalhador do grupo TAP, digo que o objetivo principal de uma administração é garantir a paz social. Uma empresa como a TAP tem características próprias de uma empresa de sua grandeza, mas também tem funções sociais e humanas. Não é uma empresa privada. Há certos voos que fazemos porque somos obrigados a fazer. Temos que ir para a Horta vários dias, por exemplo, por questões insulares. 

É uma espécie de serviço público? 
Exatamente, e a TAP nunca poderá ser desligada disso. Acho que sou o único diretor sindical – nunca ninguém fala nisso – que não percebe porque é que não há uma maior aposta no Porto. Se a Ryanair e a easyJet estão lá. Se calhar era uma maneira de recuperar alguns slots que foram perdidos em Lisboa.

O presidente da Câmara do Porto e o turismo criticam a falta dessa operação…
Não subscrevo totalmente porque o presidente da Câmara do Porto depois esquece-se da outra parte que raramente fala do que a Ryanair faz. Tem toda a razão em relação à TAP, subscrevo o que diz. Como português não percebo, como trabalhador da TAP não percebo e como diretor sindical também não percebo. Agora falta ao presidente da Câmara do Porto dizer: ‘Sim, mas também ajudamos uma Ryanair a estar sediada e tem benefícios que a TAP não tem para estar a operar no Porto’. Isso é que também deveria dizer. Fala-se muito que custa X aos contribuintes a sobrevivência da TAP e eu pergunto ‘quanto é que custa aos contribuintes em Portugal ter cá uma Ryanair?’. Porque na prática, a Ryanair não vem de borla e, na realidade, quem paga é o contribuinte. Sabemos que os poderes regionais e autárquicos subsidiam a presença da Ryanair em Portugal. A Ryanair tem neste momento um acordo de empresa com outro sindicato que é ilegal e inconstitucional, de tal maneira que nem sequer permitimos a portaria de extensão aos nossos associados tal é a inconstitucionalidade do Acordo de Empresa. Pergunto como é que uma empresa que tem um acordo inconstitucional pode estar a operar em Portugal? As regras do jogo estão totalmente desmontadas porque depois, no final, o cliente diz ‘se posso pagar mais barato na Ryanair, prefiro não ir para a TAP’. E no resultado final, a Ryanair faz números astronómicos, mas temos de começar a perceber porque é que conseguiu esses números astronómicos em Portugal. É fácil se não pagarem subsídio de férias e de Natal, se não cumprirem os direitos laborais que os trabalhadores estão a reivindicar desde 2009.

E sem respeitarem, muitas vezes, as horas de descanso… 
Não respeitam as horas de descanso, há vários atropelos. Assim é fácil. Mas o grave desta questão é que a proposta que a TAP me apresentou é exatamente transformar operacionalmente a TAP numa companhia estilo Ryanair. Tenho o maior respeito pelos trabalhadores e tripulantes da Ryanair. Têm sido uns heróis, muitas vezes sozinhos, a lutar contra todos. Em que toda a gente – poder político, poder autárquico – fecha os olhos ao que se passa, mas o que se passa na Ryanair vai ter consequências na TAP. Porque ao contrário do que devia acontecer em Portugal, em que a Ryanair se devia aproximar da TAP ao nível de condições laborais, estamos a ver o contrário. Vou falar de uma situação caricata. A primeira proposta que a TAP nos apresentou para o acordo de emergência – na altura era diretor do sindicato e além de ter o pelouro da TAP também tinha o pelouro da Ryanair – a primeira resposta que dei foi dizer: ‘Meus senhores, isto é uma tradução mal feita daquilo que a Ryanair me apresentou para fazer o acordo de emergência dos tripulantes da Ryanair’. Essa primeira proposta foi totalmente rasurada da nossa parte e voltou para trás. Depois veio uma segunda proposta, dita melhorada, com algum bom senso. Mas voltando aos motivos da greve, além do sufoco salarial, dos cortes, existe bullying por parte da empresa. É aquela velha máxima de que não se fazem omeletes sem ovos. Neste momento temos 1400 tripulantes de cabine, menos 20 aviões do que havia em 2019. Não podemos ter uma operação idêntica ao que acontecia naquela altura. E estão previstos mais 10 voos do que estavam previstos para 24 de dezembro de 2019. Em 2019 foram efetuados 317 voos. Estão previstos para 24 de dezembro de 2022, 327 voos. Pergunto como é que a companhia faz isso com menos tripulantes e com menos aviões. Só há uma maneira de o fazer: é estoirar os tripulantes de cabine, é abdicar dos direitos dos tripulantes de cabine. Nas nossas reivindicações dizemos e bem: há que respeitar o princípio, meio e fim do acordo de emergência, mas a empresa ao longo deste último ano e meio não tem respeitado não só o protocolo, estou também a falar das das cláusulas do Acordo de Empresa de 2006. Tivemos de ir a tribunal para as cláusulas do próprio acordo de emergência. Quando a empresa nem sequer respeita o próprio acordo de emergência que ela própria assinou, as coisas tornam-se insustentáveis. E mesmo que não houvesse greve iríamos ter cancelamentos de voos e a companhia iria dizer que advém das licenças, como aconteceu há umas semanas, quando argumentou que eram as licenças parentais que os tripulantes de cabine estavam a tirar e que eram 400. Essas 400 sempre existiram, vão variando. Felizmente não há nada no contrato a dizer que as pessoas não podem ter filhos. Vai haver cancelamento de voos e a primeira bola que vai sair do saco é dizer que a culpa é dos tripulantes de cabine absentistas. E eu pergunto: como? Se há menos aviões, há menos tripulantes de cabine e há mais voos? Aqui entramos neste mundo paralelo.

Não há milagres…
No final de junho, julho houve um caos no aeroporto de Lisboa devido às várias greves que ocorreram na Europa e a TAP veio dizer que a culpa era dos tripulantes, do absentismo e dos festivais. Mas tinha dito em fevereiro de 2022 – e não tirei nenhum MBA, nem tirei gestão de companhias aéreas – que a companhia precisava para o verão de 500 tripulantes. A resposta da TAP foi dizer que não era preciso. No entanto, desde fevereiro até agosto a empresa contratou, reintegrou – uns por decisões de tribunal – 450 tripulantes. Não chegou aos 500 para não parecer que tinha razão. Só em julho foram 200 porque percebeu que tinha feito asneira e que realmente precisava dos tripulantes de cabine.

A administração disse há pouco tempo que todos podiam ganhar mais se voarem mais horas… 
Aí leva-nos a dois pontos importantes: a companhia já afirmou várias vezes que o nosso Acordo de Empresa já está desatualizado. Concordo. A tabela salarial é de 2006. De 2006 a 2022 está um abismo, Portugal está totalmente diferente, Lisboa também. Quando quiser mudar, começamos pela tabela salarial porque, ao contrário de todos os outros grupos profissionais do grupo TAP, fomos os únicos que não tivemos nenhuma remodelação do acordo. Ou seja, apenas tivemos os aumentos associados aos aumentos anuais da inflação. Temos uma tabela salarial de 2006 e, para ser mais preciso, até de 2000. Porque em 2006 os tripulantes de cabine assinaram o Acordo de Empresa abdicando de aumentos salariais em detrimento de algo que era importante para eles: estabilidade operacional. E aqui vamos a outro ponto: a empresa aborrece-lhe bastante esta parte da estabilidade operacional. E o que quer neste momento é a chamado flexibilidade. Eu chamo-lhe modernizar. Percebo que é necessário modernizar alguma coisa. Flexibilidade parece-me que é muito forte. Mas o ‘flexibilizar’ da empresa é diferente do meu. Flexibilizar é dentro do que está consagrado na lei, o que está consagrado no Acordo de Empresa, podemos modificar e há coisas que têm que ser modificadas, modernizadas.

Ajustar aos tempos modernos?
Totalmente de acordo. Começamos pela tabela salarial e acabamos em alguns clausulados. Há certas cláusulas de empresa que se calhar há 20 anos faziam sentido mas hoje em dia já não fazem. Se calhar há outras que têm de ser incutidas ao contrário. A evolução também ocorreu na ciência e já se percebeu que passados estes 20 anos o impacto negativo que operar nos aviões faz. É preciso não esquecer que muito provavelmente somos a classe profissional em que as mulheres têm mais abortos espontâneos. Somos provavelmente das classes profissionais que, devido às radiações, conjuntamente com os pilotos, temos mais casos de cancro. Isto não se fala mas é uma realidade. Em vez de tentarmos sentar-nos à mesa e resolver estas diferenças, em vez de tentar solucionar, a empresa atacou-nos. Curiosamente, fiz o meu trabalho de casa. E, por acaso, reparei que em 2016/2017 aproximei-me bastante das 900 horas, que é a lei. Não tenho culpa que a companhia tenha contratado em barda, não tenho culpa que a companhia tenha comprado aviões. Depois há outro ponto. A companhia diz para trabalharmos mais e nós dizemos que o tripulante está disponível para trabalhar mais. Até está no acordo de empresa, mas cabe-lhe ter equidade para o fazer e saber gerir. Se calhar uns trabalham bastante e outros trabalham pouco, mas é importante o planeamento. Temos uma dependência gigante do planeamento, que é o que decide a nossa vida. Temos que ter regras que a IASA também obriga, que cada vez mais fala dos descansos necessários, a verdade é que a empresa quando quer essa flexibilidade, quer aproximar-se de uma Ryanair, sem regras. A proposta que a TAP nos apresenta para a tal flexibilidade e um dos argumentos que a TAP apresentava – e era esse o meu receio – era que queria favorecer a produtividade e se trabalhador trabalhasse mais ganharia mais do que em 2019. Totalmente errado. Na proposta que nos foi apresentada, primeiro à cabeça, perdemos 400 euros, no base. E para receber aquilo que recebi, em média, anualmente, em relação a 2019, teria de trabalhar mais 200 horas que trabalhei em 2019. Ora mais 200 horas é ultrapassar o plafond que está na lei. 

O teto máximo é as 900 horas anuais…
Exatamente. Pergunto como é que a empresa quer fazer isso.

Os pilotos já alertaram que a TAP quer chamá-los em dias de férias, nos dias de descanso, etc. Isso acontece no vosso acordo?
Sim. A empresa também quer fazer essa flexibilidade. Este verão fez a proposta de que receberiam mais x se fizessem um voo durante as férias. Alerto que as folgas e os descansos existem por alguma razão. A administração tem duas grandes bandeiras neste momento, quase diria doentias – e não me vou descurar dessa palavra, é doentio – que já tiveram repercussões negativas para a empresa: é a flexibilidade e a produtividade, em que temos de trabalhar sol a sol, e o absentismo. O absentismo é um dos grandes fatores que também levaram as pessoas à greve. A memória não é curta. O algoritmo é algo que ficou marcado para todos os tripulantes da TAP. O despedimento coletivo ocorreu com base num algoritmo cego, surdo, mudo, sem coração, totalmente abrupto que, em nome do absentismo, empurrou, nalguns casos, e despediu noutros, tripulantes que não tinham nenhuma falta por justificar. Muitas dessas faltas foram justificadas pela própria clínica da TAP, pelas especificidades da profissão. Mas a empresa entendeu que, em nome da bandeira do absentismo, para tentar dar o exemplo aos outros tripulantes de cabine e ao grupo TAP, teria de fazer o despedimento coletivo. Mais uma vez digo, podia esquecer todos os motivos que apresentei e só por esse motivo, na minha opinião, o grupo TAP e todos os sindicatos do grupo TAP deviam unir-se. Já foi provado que este despedimento foi ilegal, ilícito e já está provado pela operação que é desnecessário.

Os trabalhadores podiam recorrer a tribunal…
E alguns foram. E mais uma vez, representou mais um erro de gestão da empresa e do gabinete de advogados que a companhia contratou para levar a cabo a reestruturação e do próprio Governo, que deu o aval. Houve um despedimento coletivo e 12 desses tripulantes foram reintegrados pela empresa porque foi obrigada.

E neste caso, os trabalhadores não podem ser alvo bullying?
Não posso dizer taxativamente que haja esse bullying propositado mas é uma situação incómoda e há sempre essa possibilidade. Mas a razão estava do lado deles, os motivos que a empresa apresentou para os despedir não eram os corretos, não eram os mais transparentes, daí ter sido considerado ilegal e ilícito. Alguns tripulantes continuam a aguardar uma decisão, mas a imagem da empresa será sempre afetada. Temos familiares, amigos e conhecidos que se viram envolvidos num processo desumano, resultado de um algoritmo.

Em agosto vários sindicatos entregaram uma carta a Pedro Nuno Santos e o ministro já admitiu que o Acordo de Empresa tem de ser ajustado…
Acredito que o ministro quer ter um papel, não efetivo, neste conflito e também entende que a administração tem margem de manobra para resolver a situação. Tenho esperança que o ministro tome as rédeas à situação, porque já se percebeu que dos dois lados há posições extremas. A greve vai ser um facto e a TAP é a maior responsável por isto. A administração tem de ser responsabilizada, porque muitas das nossas reivindicações foram apresentadas em março e abril. Houve tempo suficiente para poder dialogar e construir.

Mas o ministro já deu um “puxão de orelhas” ao dizer que a greve era o pior que podia acontecer nesta altura…
Peço desculpa pelo incómodo mas não podemos abdicar dos nossos direitos. Não é porque e, agradecendo muito aos contribuintes portugueses que ajudaram à sobrevivência da TAP, agradecendo também o papel que o ministro teve para a sobrevivência da TAP, dá direito à administração de ter atitudes, diria autocráticas, de pressão, de tentar justificar vários erros de gestão, vários erros operacionais à custa dos trabalhadores, nomeadamente os tripulantes de cabine. Não podemos passar de embaixadores, como a empresa nos apresentou durante muitos anos, para meros números, para meros trabalhadores de segunda. A companhia está a banalizar a nossa profissão e isto é grave. 

Tem problemas de memória?
É seletiva na escolha. A empresa inflaciona bastante quando diz que dos 14 postos que apresentámos, nove deles solucionou. Solucionou meia parte e resolveu levar os retroativos para tribunal. Não é assim que se fazem as coisas. Para isso tinha feito uma negociação bilateral normal. Não precisávamos de chegar a um pré-aviso de greve para tentar solucionar isso. Depois há outros casos que são vergonhosos por parte da empresa e alguns desses pontos são questões sociais, humanas. É a questão dos descansos que está consagrada na lei, quando dizemos que a empresa tem, por exemplo, de manter o infantário da TAP com a mudança da sede.

Vai ser mais um braço de ferro? 
É inflexível. A empresa tem uma rigidez financeira quando toca a solucionar as nossas reivindicações mas depois muda de sede…

Para a antiga sede dos CTT? 
É um edifício de onde os próprios CTT saíram porque era insustentável economicamente.

E vai para lá a TAP…
E vai a TAP, que está muito bem financeiramente. Então se está bem financeiramente repõe os cortes. 

A questão das creches para o comum dos portugueses não é uma questão sensível? A maior parte não tem essas benesses…
Não vejo dessa maneira. Diga-me quantas creches em Portugal trabalham 24 sobre 24 horas. Quando a companhia quer acabar com o absentismo então se retirar a creche, muitos tripulantes não têm onde deixar as crianças e aí o absentismo pode aumentar. No nosso caso, dou-lhe o exemplo: somos dois tripulantes de cabine e por acaso tenho uma estrutura familiar que me permite não ter necessidade da creche. Mas se calhar tenho muitos colegas que são de fora de Lisboa, são os dois trabalhadores do grupo TAP e não têm onde deixar a criança.

Foram questões que já foram postas em cima da mesa, por exemplo, na Autoeuropa… 
Aceito se houver revisões de acordos de empresa. Não unilateralmente. Se no futuro acordo de empresa estiver estipulado a retirada do infantário, ok. Foi uma negociação que existiu, em que há ganhos e perdas. E depois chega-se a um consenso. Mas vou dizer de outra maneira para se perceber a perspetiva. Além da parte operacional e logística de um tripulante de cabine, faço esta pergunta: estamos com um corte de 25%, a inflação é galopante, retira-se a creche, então daqui a pouco não vale a pena o tripulante ir trabalhar. Neste momento temos muitos casos – e isto não é populismo da minha parte, é uma realidade factual – de tripulantes da TAP que recorrem, todos os meses, ao sindicato para ajuda financeira. Há tripulantes de cabine que vamos sabendo, porque não têm coragem de o dizer, que têm estado a recorrer ao Banco Alimentar. Tenho folhas de vencimento de um tripulante de cabine com seis anos de casa que devia estar a ganhar por volta dos 1300 euros e tem ordenados de 600 euros. O problema não são os 600 euros, que já é grave. Grave é que este tripulante fez a sua vida, projetou a sua vida para outro ordenado. Eu projetei a minha vida familiar com mais 1300, 1400 euros por mês que deixaram de existir. Isto foi unilateral por parte da empresa. E ao contrário do que a empresa e o Estado gostam de afirmar, recordo que os 25% não foi uma medida negociada. Foi uma medida imposta à margem de acordos de emergência. E pergunto: porquê os 25%? Ninguém questionou o ministro, nem a administração. O custo efetivo para a empresa dos salários de todos os trabalhadores do grupo TAP representa 12%. Então porquê estes 25% que os trabalhadores têm que cortar?

O argumento é a imposição do plano de reestruturação… 
Certo, então onde está esta imposição dos 25%? Nunca vi essa imposição.

A redução de trabalhadores foi outra imposição…
Hoje é fácil dizer que nós, os sindicatos, negociámos e aceitámos os acordos de emergência. O ministro e a administração já vieram dizer que os acordos são para cumprir. Não tínhamos uma pistola, mas tínhamos duas espadas. Uma era o sucedâneo e a outra era 750 trabalhadores despedidos. Na altura, era diretor sindical, entendemos que não íamos a jogo sabendo que o risco era de que 750 trabalhadores podiam ir para a rua. Não sabíamos quem é que podia ir para a rua. É algo inimaginável. Se estou revoltado porque foram 35, imagine a revolta que era assumir 750 colegas despedidos por não termos assinado o acordo de emergência. Foi algo que esta direção entendeu que era preferível negociar. Uma das propostas que o SNPVAC fez na altura, a juntar aos 25%, era uma redução do período normal de trabalho, em que o primeiro ano era de 15%, no segundo ano 10%, no terceiro 5% e no quarto 7%. Na primeira proposta em vez dos 15% assumimos à cabeça 20%. E com esses 20% nenhum trabalhador seria despedido. A companhia disse que não e que preferia os 15%.

Acha que houve má-fé da parte da TAP em impor essas alterações?
Vou dizer isso de outra maneira. Há dois momentos, primeiro a necessidade, e fomos os primeiros a ajudar. Estávamos parados, não havia na pandemia dez voos por dia e foi assinado o acordo de emergência e ninguém questionava o corte dos 25%. Depois há um segundo momento, que é o que vivemos atualmente, que é um aproveitamento, em nome da pandemia, em nome da reestruturação mantém os tripulantes e os trabalhadores do grupo TAP estrangulados para poder desinsuflar a massa salarial para ser ainda mais apetecível para vender. Toda a gente sabe, e nos corredores fala-se nisso, que nas vésperas da pandemia havia companhias aéreas que estavam interessadas em comprar a TAP. Mas um dos grandes handicaps dos compradores eram os acordos de empresa. Nada que uma pandemia, nada como o aproveitamento de desinsuflar dessas medidas para transformar os acordos de empresa mais apetecíveis para um comprador.