O pintor a quem ameaçaram cortar as mãos

Lucian Freud tanto se movimentava com à-vontade na alta sociedade de Londres e Paris como se dava com criminosos daqueles que vão parar à prisão.

N o meu último aniversário decidi oferecer a mim próprio um pequeno presente, os dois volumes da biografia do pintor Lucian Freud (The Lives of Lucian Freud, de William Fever) publicados pela Bloomsbury em 2019. Na realidade, nem se pode falar propriamente de uma decisão: seria mais correto dizer que os vi na estante de uma livraria, imponentes, de cores chamativas, li os comentários entusiásticos na contracapa – um deles diz «o prazer deste livro é infernal» – e de repente já não havia margem para escolha, tinha mesmo de os adquirir. O dia de aniversário acabou, antes, por ser um pretexto que veio mesmo a calhar.

Só depois vim a perceber por que os dois volumes se encontravam na livraria naquela altura: é que daqui a alguns dias celebra-se o centenário do nascimento do pintor, que veio ao mundo na cidade de Berlim, a 8 de dezembro de 1922.

Mesmo que Lucian Freud não tivesse sido o grande artista que foi e não tivesse pintado os quadros extraordinários que pintou, valeria a pena conhecer a sua vida. E quanto mais sabemos sobre ela, mais nos fascina. O facto de ser neto de Sigmund Freud dava-lhe, claro, um pedigree muito especial. Teve uma infância relativamente privilegiada, quer na Alemanha, quer depois em Londres, onde a família se instalou no fatídico ano de 1933.

Por volta dos 18 anos, na capital inglesa, começou a cultivar as relações que acabariam por abrir-lhe as portas da alta sociedade. A guerra não era desculpa para não socializar em cafés, bares e mesmo discotecas. Elegante, atrevido, bem-parecido e espirituoso, Freud não tinha dificuldade em cair nas boas-graças tanto de homens como de mulheres. Chegou a namoriscar com figuras tão célebres como Greta Garbo e Simone de Beauvoir, acabando por casar com a aristocrática Caroline Blackwood, filha do 4.º marquês de Dufferin e Ava e da herdeira da cerveja Guinness. Completamente obcecado, Freud tinha andado semanas à procura dela em Madrid, com um número da porta e do andar num papelinho… mas não o nome da rua.

Um dos aspetos invulgares da vida do artista é, chamemos-lhe assim, o seu ecletismo em termos de relações. Tanto se movimentava com à vontade na mais alta sociedade – em Paris, por exemplo, ia almoçar todos os domingos com o príncipe Jorge da Grécia, cuja residência na Avenue d’Iéna descreveu como «muito formal: criados com luvas brancas» – como se dava com criminosos. Verdadeiros criminosos, daqueles que assaltam bancos e vão parar à prisão.

De resto, ele próprio tinha tendência para se envolver em situações complicadas, contraindo empréstimos, em parte para financiar o seu estilo de vida opulento, em parte por causa das volumosas perdas em apostas de corridas de cavalos. Gostava do risco. Quando os gémeos Ronnie e Reggie Kray, que eram donos de discotecas e tinham um longo cadastro de assaltos, homicídios e atentados à bomba, ameaçaram cortar-lhe as mãos, foi o seu amigo Jacob Rothschild quem o tirou de apuros.

Freud era conhecido pelo feitio irascível. Uma vez, quando um jornalista do Spectator lhe solicitou uma entrevista, respondeu: «Caro Sr. Greig, A sua sugestão de me entrevistar a propósito da exposição na Tate do próximo ano deixa-me maldisposto. Mas se na altura ainda for vivo vou tê-la em consideração». Mas também podia ter um sentido de humor refinado. A propósito de o crítico David Sylvester ter dito que ele não tinha nascido pintor, antes se tornara um à custa de muito esforço, Freud comentou que essa noção de ‘pintor nato’ era apenas uma ideia feita: «Não, a única coisa que se pode ser quando se nasce, na verdade, é um bebé».