Fernando Santos. Ele pegou o mundo pelos cornos da desgraça

Portugal, qualificando-se para os quartos de final deste Campeonato do Mundo, cumpriu a sua obrigação. Mas, de repente, com a eliminação da Espanha, defronta no sábado uma equipa que lhe é teoricamente inferior. Depois do murro na mesa dado pelo engenheiro talvez seja bom sonhar mais alto.

Fernando Santos. Ele pegou o mundo pelos cornos da desgraça

DOHA – Há muito anos, um inglês chamado Saul Gorn resolveu recolher em livro algumas das frases mais absurdas que alguma vez lera ou ouvira. Uma delas ia assim: “Before I begin to speak, there’s something that I would like to say”. Pois aproveito a deixa e vou pelo mesmo caminho: antes de começar a escrever quero dizer uma coisa. E essa coisa é algo de indesmentível e incontornável – Portugal está nos quartos de final do Campeonato do Mundo, com todo o mérito, sublinhe-se, mas não fez mais do que a sua obrigação, até tendo em conta os adversários que lhe surgiram pela frente. Muito bem, digamos que os 6-1 aplicados aos suíços foram uma espécie de brinde, uma compensação para as eliminações bisonhas do último Europeu e do último Mundial. O povo agradece, encheu a barriga de golos, está feliz, e pelo caminho Gonçalo Ramos encontrou a janela mal fechada por onde pôde entrar para o onze titular. Francamente, depois daquele ‘hat-trick’, não vejo como tirá-lo da equipa.

Agora que já disse o que tinha a dizer, prossigo com o que trazia para escrever. Fernando Santos fartou-se claramente das birras de Ronaldo, que vive numa luta contra si mesmo e contra o tempo, desesperado por já não ser o Ronaldo que foi – e se olhar para M’Bappé ainda ficará mais irritado -, incapaz de  perceber que não tem a influência que teve e deixando à vista de todos que  o seu estilo de capitão não encaixa com as necessidades desta seleção que não tem, em lado algum, uma voz de comando, porque essas também não são as características dos seus companheiro, excetuando Pepe, talvez. 

Não sei se podemos afirmar com toda a autoridade que, de um dia para o outro, Cristiano Ronaldo deixou de ter lugar como titular da Equipa-de-Todos-Nós, como lhe chamava Ricardo Ornellas. Até porque a Suíça que se apresentou no Estádio Icónico de Lusail foi uma equipa absolutamente bovina, sem um pingo de garra, sem um atitude de revolta para o que lhe estava a acontecer e, principalmente, de uma passividade capaz de irritar um monge tibetano depois de se ver a perder por 0-2 logo aos 17 minutos.

Caso Ronaldo O capitão da equipa nacional parece estar a atravessar uma fase absolutamente dispensável, tanto para ele como para a seleção. Chamo-lhe a “fase Dorian Gray” porque, tal como a personagem de Oscar Wilde, devia ter um quadro no sótão que envelhecesse em vez dele. As palavras que dirigiu a Fernando Santos no momento em que foi substituído no jogo frente à Coreia, e cuja gravidade, misturada com um toque de ordinarice bem à portuguesa, o selecionador só terá medido mais tarde, quando lhe chegaram as imagens televisivas, fizeram com que o engenheiro tivesse de tomar uma medida drástica. Como cantaria o meu querido Fernando Tordo, resolveu pegar o mundo pelos cornos da desgraça. Não terão sido muitos a apostar, singelo contra dobrado, como nos livros do Texas Jack, que iria atirar com o 7 para o banco, apostando no jovem Gonçalo Ramos, que terá vindo para o Mundial como terceira opção para o lugar de avançado-centro. Mas fê-lo. E ganhou. E fez da tristeza graça. Estamos habituados a considerar Fernando Santos como um treinador conservador, pouco disposto a correr riscos, sobretudo em jogos decisivos como foi o da Suíça. Diria que esse conservadorismo – que é factual e não teórico – já nos custou algumas dores valentes no pescoço, daquelas que só se engolem como a do magnífico António Silva: “Então diga-me lá – você é capaz de comer um carneiro inteiro?” E o outro, espantado: “Claro! Mas só se for com muito pão!” Derrotas que tivemos de enfiar goela abaixo com muito pão como também deve ter sido preciso muito pão e bolacha-Maria para que Cristiano engolisse aquela situação de se ver sentado ao lado dos suplentes e obrigado a não fazer cara feia para as dezenas e dezenas de fotógrafos que quiseram registar esse momento inédito, pelo menos em jogos tão fundamentais como o último.

Outra das coisas de que acusam Fernando Santos é a de ter sorte. Como se isso fosse mau. Se olharmos para trás, não há dúvida que o seu Portugal teve uma sorte danada no Euro 2016, prova na qual o único mostrengo que teve de enfrentar foi a França, na final de Saint-Denis. Se olharmos para agora, beneficiou da derrota da Itália no último minuto, em casa, contra a incipiente Macedónia do Norte, para resolver sem espinhas o play-off que a extremamente inevitável derrota na Luz frente à Sérvia (1-2 na fase de grupos do apuramento) nos obrigou a jogar. E quando tudo indicava que após eliminarmos a Suíça iríamos ter de defrontar a Espanha, (a equipa de Luis Enrique, uma das maiores desilusões deste Mundial – depois da entrada de leão com 7-0 à Costa Rica, o futebolzinho de rabia, de toque e retoque, não conseguiu nem mais uma vitória) eis que nos deparamos com Marrocos, que não é conjunto para desprezar, era o que faltava, mas, mais um vez, é um adversário ao qual temos a obrigação de ganhar, ou não? Afinal nunca estivemos tão perto de repetir 1966 e 2006. “Com bandarilhas de esperança/Afugentamos a fera/Estamos na praça da Primavera”. Mesmo que estejamos quase, quase no Inverno.