Qatar. A grande injustiça de avacalhar a púrpura

Jogando em casa, o Qatar saiu cedo do seu Mundial com três derrotas e foi esculhambado por toda a imprensa internacional, esquecendo-se os seus críticos de que falamos do campeão da Ásia, título que conquistou há três anos nos Emirados Árabes Unidos.

AL-DOHA – Ia começar a escrever que esta foi a primeira vez que o Qatar se qualificou para uma fase final de um Campeonato do Mundo, mas a frase não seria nem correta nem autêntica porque a seleção qatari se limitou a aproveitar do privilégio que toca a todas equipas representativas dos países organizadores garantindo a presença por direito adquirido. Tendo em conta a opinião geral de todos os camaradas de imprensa com quem me vou cruzando, sejam eles de que nacionalidades forem, este torneio está a ser organizado de forma excelente, proporcionando a todos impecáveis condições de trabalho e só havendo motivos de queixa em relação aos voluntários que estão cá com a missão de nos darem indicações mas que não sabem nada de nada ou, pior ainda, apontam-nos para direções opostas daquelas para onde pretendemos ir. Enfim, faz parte de uma cultura em que dizer que não é tomado como falta de educação. E o remédio é procurar nunca colocar perguntas que possam ser respondidas com sim ou não porque arriscamo-nos sempre a ouvir sim, mesmo que não corresponda à realidade dos factos.

O Qatar foi, decididamente, invadido por um enorme grupo de jornalistas que aqui desembarcaram com preconceitos e, portanto, decididos a ir à procura do que era negativo para a imagem do país. E, como em todos os países, há imagens negativas, se escarafunchá-las for o nosso particular objetivo. Confesso que viajo, pouco importa se profissionalmente ou não, com a mente aberta e preparado para aceitar as idiossincrasias de cada povo. Se não é aceitável sentar-me no passeio de uma das ruas de Doha a escorropichar uma garrafa de tinto, por que hei de me sentir ofendido ou diminuído nos meus direitos se mo proíbem. Já chega e sobra o direito de vir ou não vir. Não me cabe aterrar no Qatar e pôr-me a dar lições de como devem gerir a sua existência.

A Púrpura A última e mais violenta crítica que se levantou sobre este Mundial abrange o desprezo pela qualidade da seleção qatari, à qual chamam de Púrpura, por causa da cor das camisolas. Encaixada no Grupo A, com Equador, Senegal e Holanda, somou três derrotas, a saber: 0-2, 1-3 e 0-2. Eliminação sem rebuço e uma imagem de pouquíssima capacidade competitiva. Que não deixa de ser estranha porque nos cinco últimos jogos de preparação para este Mundial, o conjunto orientado pelo catalão Felix Sánchez Bas, que aqui chegou em 2006, depois de trabalhar com as camadas jovens do Barcelona, somara cinco vitórias: Nicarágua (2-1), Guatemala (2-0), Honduras (1-0), Panamá (2-1) e Albânia (1-0), tendo todos estes jogos sido disputados em Espanha.

O assunto foi debatido com tal fervor que houve mesmo quem fizesse chegar à FIFA uma proposta para que os organizadores dos próximos Mundiais deixem de ter acesso direto às fases finais – algo que faria correr muita tinta se pensarmos que o próximo torneio terá, em consequência, três membros da CONCACAF já apurados, Estados Unidos, México e Canadá. Por outro lado, a maledicência gratuita fez com que quase todos se tenham esquecido de que o Qatar é o actual campeão da Ásia, título que conquistou em 2019, nos Emirados Árabes Unidos, e com indiscutível categoria. Três vitórias na fase de grupos – Líbano (2-0), Coreia do Norte (6-0) e Arábia Saudita (2-0); eliminação do Iraque nos oitavos de final (1-0); eliminação da Correia do Sul nos quartos (1-0); eliminação dos Emirados nas meias-finais (4-0); e finalmente um glorioso triunfo sobre o Japão (3-1) no Estádio de Zayed Sports City, no Abu Dhabi, perante 45 mil espetadores. Era o dia 1 de fevereiro de 2019, não foi há lustros, convenhamos, e o Qatar cometeu ainda a proeza de sofrer apenas um golo em sete jogos, marcando 19. Na final, os pontapés certeiros couberam a Ali Zainalabedin (12m), a Abdulaziz Hatem (27m) e Ak Afif (83 m, de penalti) – os japoneses marcaram por Minamino (69m), que agora está no Mónaco depois de ter passado pelo Liverpool. Almoez Ali foi o melhor marcador da prova, com nove golos, e a festa que rebentou em Doha e em todas as cidades que a cercam foi tão de arromba como o título que o Qatar acabava de conquistar. Talvez mais importante do que ele apenas jogar um Mundial perante o seu público. Mas seria de uma insuportável falta de senso e de profissionalismo esquecer o nome do campeão asiático – defende o reinado aqui mesmo, no Qatar, para o ano – só porque falhou a toda a linha no seu Campeonato do Mundo.