“Há ausência de memória no politicamente correto”

Ângelo Correia considera patética a atitude do Ocidente relativamente ao Campeonato do Mundo de futebol no Qatar. As autoridades portuguesas foram atrás desta nova ‘cruzada’, agora por causa do futebol.

“Há ausência de memória no politicamente correto”

por João Sena

Ângelo Correia, ex-ministro da Administração Interna de Cavaco Silva, analista político e empresário, é também um profundo conhecedor do mundo árabe, tendo exercido o cargo de presidente da Câmara de Comércio e Indústria Árabe-Portuguesa. Em entrevista ao Nascer do SOL, dá uma visão global e abrangente dos valores que opõem o Ocidente à civilização islâmica e que entraram de forma abrupta na agenda da política internacional por causa do chamado desporto-rei. Dizem que «o futebol é a coisa mais importante de entre as coisas menos importantes», mas foi o Campeonato do Mundo do Qatar que serviu de rastilho a um movimento global de boicotes e contestação a uma realidade que esteve 12 anos esquecida.

Uma onda de manifestações islamofóbicas agitou muitos países ocidentais por causa da violação dos direitos humanos e não só. Contudo, o que choca profundamente o Ocidente é considerado pelos árabes como uma interferência na sua civilização.

O mundo árabe é composto por países localizados no Golfo Pérsico, Oriente Médio e África, e com valores e culturas diversificadas. A realização de um grande evento desportivo no Qatar levantou a questão a violação dos direitos humanos nesse país. O problema de base é saber se a visão do Ocidente desses direitos é, ou não, razoável no emirado. O comentador político explicou: «Com base nos valores cristãos e iluministas, os direitos humanos têm uma preponderância substantiva e decisiva na nossa civilização. Existem, porém, civilizações com outros valores, com outras maneiras de viver e de encarar o Mundo. A questão que se coloca é saber se a nossa civilização se sobrepõe a outras civilizações».

 

Hipocrisia do Ocidente

Altos responsáveis europeus não foram ao Qatar para não branquear o regime, nomeadamente a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, que, no entanto, enviou um dos seus vice-presidentes à abertura do Mundial em sua representação, e o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, também recusou ir ao Campeonato do Mundo, mas esteve semanas antes no país em visita oficial. Aliás, têm sido muitos os sinais contraditórios, como bem explicou Ângelo Correia: «É uma hipocrisia e um complexo de superioridade do Ocidente. Está a penalizar-se a si próprio pelos erros do passado relativos à colonização bárbara de alguns países, ao mesmo tempo que assume a superioridade do presente, como se nada tivesse acontecido. Há uma contradição na Europa entre ter pecado por excesso nesta matéria e mostrar uma supremacia sobre aqueles que não estão no seu trilho. É uma atitude equívoca, patética e contraditória».

Portugal seguiu a mesma narrativa, com o Presidente da Républica, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, a fazerem declarações consideradas ‘hostis’ pelo Governo qatari e que obrigaram a intensos esforços diplomáticos para evitar um ajuste de contas por parte do emirado com consequências desagradáveis para Portugal. A situação amenizou com o discurso mais assertivo do presidente da Assembleia da Républica, Augusto Santos Silva, aquando da sua deslocação a Doha. Depois disso, também o primeiro-ministro voltou ao Qatar para assistir a um jogo da seleção nacional e… nada de direitos humanos.

«A posição portuguesa sobre o Qatar foi análoga em alguns termos e circunstâncias, houve algum oportunismo de certas pessoas e de alguns partidos. Hoje em dia há duas questões que escapam à realidade democrática portuguesa, e que são a ausência de memória e uma agitação em torno do politicamente correto. As pessoas seguem o politicamente correto e não a sua consciência. É transversal a todo o país e a outros Estados. Atualmente, a democracia sofre de uma crise de representação provocada pela ausência de memória coletiva» fez questão de referir o antigo ministro do PSD, que reforçou a sua ideia: «Acredito que a democracia tem força quando as instituições democráticas têm força. Quando essas instituições começam a esboroar-se é o próprio sistema político que se esboroa. Sempre defendi as instituições, mas se alguns atos do atual Presidente da Républica podem, eles mesmos, contribuir para essa erosão, que sejam praticados por ele e não por mim».

Para o analista político, as atitudes pouco coerentes do Ocidente ao longo dos séculos justificam a menor compreensão, quase indiferença, perante os atuais problemas da Europa. «Uma das questões que a guerra da Ucrânia manifestou foi o agastamento que muitos países desta parte do globo têm em relação ao Ocidente. A nossa civilização esqueceu os pecados graves que cometeu em termos de descolonização, foram feitos massacres bárbaros, ao mesmo tempo que assume no presente a sua superioridade», disse.

 

Choque de civilizações

Há séculos que existe um atrito latente entre o Ocidente e o mundo árabe e muçulmano, com a Europa a considerar ser um assunto geográfico e financeiro… e nunca político. A opinião do empresário, que tem profundo conhecimento desta região, é muito clara: «A civilização ocidental judaico-cristã e iluminista teve um papel preponderante nos dois últimos séculos. A partir do século vinte começámos a perceber que existiam outras civilizações com diferentes matrizes culturais que o Ocidente não se dava ao trabalho de conhecer. Apesar das influências da Inglaterra e França no Egipto e Turquia, percebemos que havia uma civilização distinta, e isso ficou evidente na Declaração dos Direitos do Homem do Cairo de 1985. Nessa declaração há uma interpretação clara, expressa no Islão, em que se baseia fundamentalmente num ente que é anterior e superior a cada homem que é a chamada Umma, e é a base fundamental da análise dos direitos».

Nas últimas décadas do século passado percebeu-se que a civilização ocidental teve uma supremacia sobe as restantes, nomeadamente a islâmica. «Tem havido uma tentativa de evitar que os ocidentais digam isso», afirmou Ângelo Correia, que adiantou: «O Ocidente valorizou o ser humano de maneira que impede a tortura e morte, mesmo para pessoas detidas. Simplesmente, não pode dizer que está isento de culpas. Há estados americanos e países ocidentais onde existe pena de morte, ou seja, não estamos livres de um problema que também nós praticamos. Dir-se-á que é problema de escala, mas o que está em causa não é um problema de quantidade ou dimensão, é um problema de natureza. Por isso, estou convencido de que o Islão não irá alterar as práticas fundamentais do Corão, mas vai fazer uma coisa que está a acontecer em alguns países que é suspender a pena de morte».

Assim como a religião católica abdicou de ser a titular da verdade absoluta, também no plano dos direitos humanos há diferentes modos de encarar a vida e que, em alguns casos, são inultrapassáveis. «Colocar uma plataforma de direitos humanos universalista é de difícil aceitação e praticabilidade, o que não quer dizer que a solução da civilização ocidental não possa ser reproduzida progressivamente em outras civilizações, mas há momentos em que esbarra na cultura sínica, na cultura islâmica e, parcelarmente, na cultura indu. Se queremos um multiculturalismo efetivo e tolerante devemos perceber que há quem tenha valores diferentes e que nós, apesar de sentirmos que os nossos valores deviam ser universais, temos de aceitar essa realidade. Esta é a base de partida para abordar o tema dos direitos humanos», afirmou o ex-político.

As condições de trabalho e o número de mortos na construção dos estádios e das restantes infraestruturas para o Mundial do Qatar foi outro ponto de acesa discussão. Ângelo Correia tem opinião própria: «Ninguém confirmou que os seis mil ou 15 mil mortos eram das obras relacionadas com o Mundial de futebol. Tomou-se o número global de mortos com o número de mortes nos estádios. Passei muitos anos em países árabes e vi regras de proteção muito apertadas na construção civil». Mas reconhece que «algumas das coisas que se disseram são verdadeiras, nomeadamente a entrega do passaporte à entidade patronal o que condiciona a liberdade do trabalhador». O empresário reconheceu também que «as horas de trabalho e as condições de vida estavam fora dos padrões exigidos, mas também devemos questionar se alguns países ocidentais são exemplares nessa matéria. Apelamos a um conjunto de valores, mas não damos exemplos claros e corretos ‘quem acha que é puro que atire a primeira pedra’, utilizando o exemplo de apedrejamento de Epicuro».

O mundo islâmico é muito diferente do nosso. Leva a palavra do profeta Maomé à letra e isso choca com o Ocidente, nomeadamente em relação à condição das mulheres. «A questão das mulheres é um preceito que separa de forma muito concreta as duas civilizações, com particularidades sociais que ilustram de modo evidente os aspetos religiosos. Penso que, apesar de tudo, o tema tem sofrido evolução nos últimos anos. Há países como Marrocos, Tunísia, Argélia e Egipto onde se verificou uma evolução. No Iraque, Jordânia e Palestina é manifesto. O problema continua a persistir nos países onde há uma aura excessivamente religiosa, como é no caso do Irão e em outras nas zonas xiitas no Golfo. Apesar disso, verifica-se que no Parlamento do Koweit e da Jordânia há mulheres, e em outros países do mundo sunita há modificações importantes, como é o caso da Arábia Saudita, onde há um conjunto de libertações em relação ao estatuto da mulher que as aproximam do modelo ocidental. Mesmo nos sítios mais radicais do Islão tem havido alterações no sentido de libertar a mulher do seu estatuto de subalterno e aproximá-la das tradições ocidentais», explicou.  Outro aspeto essencial é perceber o estatuto esclavagista dos países árabes. «Não é um produto exclusivo das civilizações islâmicas. O Ocidente só abandonou essa prática no século dezanote e nos, Estados Unidos da América, mais de meio milhão de americanos morreram na Guerra da Sucessão. Hoje em dia esse problema está praticamente banido, o que não quer dizer que não existam focos no mundo islâmico, embora fora da lei», concluiu Ângelo Correia.