Um problema chamado ‘Ronaldo’ (esta crónica não é sobre futebol)

A maledicência, que tem vergado o país, devia ser elevada a desporto nacional, tal a facilidade com que se julga e condena sem se efetivamente conhecer.

Portugal apurou-se (e joga hoje) para os quartos de final do campeonato do mundo de futebol. Fê-lo com uma exibição e um resultado históricos – sobretudo para os fãs do desporto-rei. A notícia, todavia, não foi o resultado ou a exibição, mas se Cristiano Ronaldo jogou ou não na equipa titular e se comemorou os golos (ou como o fez).

A região metropolitana de Lisboa conheceu uma tempestade imensa da noite de 7 de dezembro/madrugada de 8. Mais do que os estragos e do que a resposta à intempérie, a notícia era se os avisos do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) e da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) chegaram a horas.

Falar mal é fácil e grátis. Pouco se pode fazer a respeito do «idiota da aldeia» (nas palavras de Umberto Eco) que escreve sem controle nas redes sociais. À comunicação social pode e dever exigir-se mais. Assistimos a jornalistas pressionarem o Presidente da República e diversos presidentes de câmara, sobre um eventual atraso nos avisos do IPMA e da ANEPC. O foco não pode ser esse, o foco devia estar no fenómeno meteorológico e nas consequências para as pessoas.

De nada serve, em cima do momento, tentar crucificar IPMA, ANEPC ou os decisores políticos. De nada serve, em cima do acontecimento, fazer análise sem informação.

Perdemos demasiado tempo desfocados do que é verdadeiramente importante e não olhamos as questões com a seriedade e serenidade devidas. Num tempo de comunicação rápida, no qual apenas se analisa a superfície, torna-se importante encontrar casos e expiar culpas. Como tal, urge fazer de ‘Ronaldo’ um caso, o mesmo sucedendo com o IPMA e ANEPC. Tem de haver um cordeiro a quem se atribuam responsabilidades.

A maledicência, que tem vergado o país, devia ser elevada a desporto nacional, tal a facilidade com que se julga e condena sem se efetivamente conhecer. Quem não estiver disposto a viver nesse jogo de canibalização social é facilmente trucidado no espaço mediático. Os portugueses vivem como se estivessem em trincheiras numa guerra civil. É cada vez mais difícil manter a serenidade ou racionalidade.

Salva-se, fora desta torrente de informação negativa, a forma célere como os poderes públicos reagiram aos efeitos da intempérie e como acudiram as populações. Assim como se deve salvar o exemplo da seleção portuguesa de futebol, que continua a ser um referencial de organização e excelência, num país no qual os exemplos de excelência não são assim tantos.

‘Ronaldo’ não é um problema. O nosso problema é termos poucos ‘ronaldos’ e perturbarmo-nos mais com o seu sucesso do que com a elevação do sentimento patriótico que ele sempre trouxe. Um miúdo pobre, filho de pobres e neto de pobres (como muitos dos pobres deste país) conseguiu, graças ao seu talento e à sua ética de trabalho, elevar-se além da mediocridade reinante. Muitos portugueses sofrem da doença de gostarem mais de denegrir do que admirar o sucesso alheio.

Camões terminou Os Lusíadas com a palavra «inveja», provavelmente condenou este povo a viver com o fado de preferir invejar do que compreender.

Quase todos os homens que entrarão em campo, daqui a umas horas, preferiram compreender e imitar ‘Ronaldo’, por isso estão quase a tocar o Céu. Podíamos tentar fazer o mesmo.