Peru. Um golpe ‘trapalhão’

Líder de esquerda nem uma hora se aguentou no palácio após tentar dissolver o Congresso. E virou colega de prisão do ex-Presidente Fujimori.

Peru. Um golpe ‘trapalhão’

No espaço de uma semana, Pedro Castillo deixou a Casa de Pizarro, o palácio presidencial peruano, e deu por si numa cela do Diretório de Operações Especiais (DIROES), no leste de Lima. Este antigo professor e líder sindical de 53 anos, juntara as suas raízes políticas marxistas-leninistas com valores sociais conservadores, numa mistura feita para apelar ao Peru rural. Acabou detido após tentar dissolver o Congresso quando este ia votar a sua impugnação. Castillo ainda tentou impôr estado de emergência, mas foi ignorado pelas autoridades policiais, sendo acusado judicialmente de «conspiração e rebelião». Já a sua vice-presidente, Dina Boluarte, tornou-se a primeira mulher a liderar o Peru, prometendo levar o mandato até ao fim.

Castillo agora faz companhia ao ex-ditador Alberto Fujimori, de 84 anos, que também está preso nas instalações do DIROES, a prisão de Barbadillo, avançou o canal peruano RTVD 4. Tanto o ex-Presidente conservador como o agora deposto marxista-leninista têm em comum terem tentado dar um ‘autogolpe’, uma prática típica da América Latina. Que consiste num chefe de Executivo dissolver os controlos ao seu poder após chegar ao posto através de meios legais.

Com a diferença que Fujimori foi bem-sucedido, em 1992, seguindo-se oito anos de um reinado de terror sobre o Peru, estimando-se que quase 70 mil pessoas tenham sido abatidas pelos seus esquadrões da morte, levando a cabo planos para exterminar populações indígenas. Já a trama montada por Castillo foi tão atabalhoada que até se tornou em motivo de troça na imprensa, reforçando a sua fama de incompetente.

Quando Fujimori dissolveu o Congresso, ordenou aos militares que conduzisse um tanque pelas suas escadas acima, para deixar bem claro quem mandava. Castillo nem sequer uma hora se conseguiu manter no palácio após decretar o mesmo. Fujimori tomou o poder justificando-o com o combate a Sendero Luminoso, contando com um certo grau de apoio entre os peruanos, fartos de sofrer ataques terroristas destes fanáticos maoístas. Enquanto Castillo lançou o seu ‘autogolpe’ isolado, depois do Congresso decidir  impugná-lo por «incapacidade moral permanente», com 101 votos a favor, dez contra e seis abstenções. Quando ordenou um recolher obrigatório, o chefe do Estado-Maior demitiu-se de imediato, seguido por quatro ministros, incluíndo o das Finanças e dos Negócios Estangeiros.

Rapidamente o Presidente peruano derrubado se pôs em fuga, pensando-se que procurasse abrigo na embaixada do México, com quem mantinha excelentes relações. Mais uma vez, até aqui Castillo falhou. Quando Fujimori deu  por si a ser acusado de corrupção e acossado pelo Congresso, montou um plano de fuga para o Japão, aproveiando a sua dupla nacionalidade, só sendo apanhado quando visitou o Chile, em 2005. Já Castillo meteu-se apressadamente num carro, tentando atravessar a baixa histórica de Lima em hora de ponta, mas ficou preso no trânsito, segundo o Globo. Foi a sua própria escolta presidencial que o deteve, apercebendo-se para onde o vento estava a soprar. Seria levado para uma esquadra, à porta da qual ainda se assistiu a alguns desacatos menores entre os seus poucos apoiantes e a polícia, contaram testemunhas à Associated Press.

Assim acabou a saga de Pedro Castillo, um Presidente fluente em espanhol e quechua, que começou o mandato o ano passado, aclamado pela esquerda e por comunidades indigenas. Na segunda volta foi alternativa à conservadora Keiko Fujimori, filha do seu atual companheiro de prisão.

«Será a primeira vez que este país será governado por um camponês, alguém que pertence às classes oprimidas», declarara Castillo durante a sua tomada de posse , ostentando um fato e um sombrero, a sua imagem de marca, típico de Cajamarca, uma região rural onde o futuro Presidente se tornara conhecido por chefiar greves de professores, assim como programas de auxílio alimentar aos mais pobres.

É que o Peru  «nos últimos duzentos anos habituou-se a ser governado por advogados, engenheiros, economistas, arquitetos e militares», mas isso só diferenciava Castillo de Fujimori, escrevera a AP durante a campanha eleitoral. Notando que esta era «uma administradora de negócios formada nos EUA, que durante a sua adolescência vivera rodeada de guarda-costas e de privilégios no palácio presidencial». Já Castillo, quando lá chegou, seria acusado pela procuradoria-geral de criar uma autêntica «organização criminosa», através da qual a sua família – a esposa, cunhada e dois sobrinhos foram acusados – e outros aliados receberiam subornos a troco de contratos públicos. 

Poderia ser fácil minimizar a tentativa de ‘autogolpe’ de Castillo como uma mera manobra desesperada de alguém incompetente. Contudo, «o golpe trapalhão de Castillo mascara um problema mais profundo», notou Michael Stott, editor do Financial Times para a América Latina.

«Alegações de corrupção não são nada de novo na política peruana. Muitos dos antigos líderes do país e uma ampla proporção dos seus legisladores também foram acusados de aceitar subornos», frisou Stott. «Castillo só durou até agora porque o Congresso ainda é mais desprezado do que ele». 

O Presidente derrubado deixou para trás a sua vice, que tem nas mãos a dura tarefa de conseguir obter uma maioria para governar. Criando uma baixa entre os governos esquerdistas da América Latina, que se afirmavam como uma espécie de maré cor-de-rosa 2.0, com a reeleição de Inácio Lula da Silva no Brasil, Gustavo Petro na Colômbia ou Alberto Fernández na Argentina. O caos da governação de Castillo foi tal que, apesar das suas credenciais como líder de esquerda, boa parte destes dirigentes ficaram calados.

Escutaram-se poucas vozes em seu apoio, com excepções como Andrés Manuel López Obrador, mais conhecido por AMLO. «É lamentável que, devido a interesses das elites políticas e económicas, desde o início da presidencia legítima de Pedro Castillo, uma atmosfera de confrontação tenha sido mantida contra ele», queixou-se o Presidente mexicano.

Já os seus aliados preferiram manter-se neutros. «A Colômbia condena qualquer ataque contra a democracia, de onde quer que venha», garantiu o Governo de Gustavo Petro, em comunicado. «E lembra que a democracia exige o reconhecimento da vontade popular expressa tanto pelas eleições para Presidente como do Congresso».