A arte lusitana de mandar pro c…

Paulo Bento mais não fez do que retomar uma antiga prática patriótica de expressar desagrado ante um estrangeiro hostil mediante a linguagem vernacular de matriz latina

O acontecimento mais importante do Mundial de Futebol do Qatar foi a expulsão do treinador da Coreia do Sul, Mister Paulo Bento – homem honrado e honesto. Intrigado com a sua fúria, analisei as imagens sem conseguir perceber o motivo de ter levado o cartão vermelho. Contudo, quando já abandonava o campo, pareceu-me que Paulo Bento recorreu ao mais antigo vernáculo da língua portuguesa: mandou o árbitro pro c… .

Ainda que este tipo de linguagem não seja a mais cordial, nem deva fazer parte dos novos currículos escolares inclusivos, a sua importância na História e na identidade portuguesa não pode ser esquecida. É uma metáfora belicosa que expressa o desejo de conquista de liberdade e que aconteça algo mau ao invasor. Vejamos: durante as batalhas pela independência, enquanto pelejavam bravamente os portugueses mandaram os espanhóis pro c…, mandaram os árabes pro c…, mandaram os franceses pro c…, mandaram os aliados ingleses pro c…, e também mandaram outros portugueses pro c… . O próprio Camões fartou-se de mandar gente pro c…, independentemente da sua condição social, nacionalidade, credo, raça, ou orientação sexual – até que o mandaram a ele para o c… da Índia.

Assim, Paulo Bento mais não fez do que retomar uma antiga prática patriótica de expressar desagrado ante um estrangeiro hostil mediante a linguagem vernacular de matriz latina – no seu caso, o árbitro inglês. 

Contudo, tendo sido estruturante na formação de Portugal, este tipo de linguagem foi perdendo importância na cultura nacional. Desde Bocage que nenhum escritor põe os seus personagens a mandarem-se uns aos outros para o c… .

Por exemplo, em Os Maias Carlos Eduardo podia muito bem ter mandado Dâmaso Salcede pro c… antes de o desafiar para o duelo. No Amor de Perdição, Simão Botelho poderia ter dito o mesmo à família de Teresa Albuquerque. Na Manhã Submersa, não estavam aqueles padres do seminário a pedir que os jovens seminaristas oprimidos os mandassem a todos pro c…? No Memorial do Convento tão pouco faltaram oportunidades a Blimunda e Baltasar para aplicar a expressão fálica a uma data de árbitros que lhes impunham regras injustas. Esta lacuna é tão evidente que nem os escritores neorrealistas que lutavam contra o Estado Novo colocaram os seus personagens a mandar algum PIDE pro c… .

Todavia, fruto de uma educação patriarcal e fascista que vetava o uso do vernáculo – nem lixar podia dizer –, confesso que não uso esta expressão nas minhas relações. Reservo-a para o pensamento ou para quando não posso ser ouvido. O meu contributo para a preservação da identidade nacional e da tradição linguística acontece geralmente quando estou a conduzir. Há dias, passeava no meu carro cumprindo as regras do código da estrada quando um cavalheiro desatou a buzinar-me sem motivo aparente. Obviamente, sem que o cavalheiro ouvisse ou sequer se apercebesse da intenção, mandei-o logo pro c… . Assim, ainda que em público não pratique a fórmula, em privado exercito-a sempre que possível.

A fórmula pode também ter aplicações mais subtis só ao alcance de grandes poetas. Refiro-me a Sua Excelência o Presidente da República, ao primeiro-ministro, ao presidente da Assembleia da República e às suas idas ao Qatar.

Numa altura em que Portugal foi ultrapassado pela Roménia e metade dos portugueses enfrentam dificuldades para satisfazer as necessidades básicas, o primeiro e o terceiro já lá foram e o segundo está a fazer as malas. Estas viagens, claro está, serão pagas pelos contribuintes – alguns dos quais já mal conseguem comprar comida. Acresce que o Qatar é um país caríssimo onde o preço dos hotéis é pornográfico, uma garrafa de água custa tanto quanto uma garrafa de Moët & Chandon e uma massagem feita por tailandesas equivale a um mês de renda em Lisboa. Assim sendo, numa perspetiva puramente poética a atitude das três excelências parece significar que nos estão a mandar a todos para o c…. Todavia, admito estar errado. Deixo a interpretação final destas viagens ao Qatar a linguistas, sociólogos e massagistas.

Uma coisa é certa. Poderemos não vencer o Mundial do Qatar, mas afirmaremos perante o mundo a nossa identidade histórica de belicismo oral. Enquanto Portugal jogar ou algum português for Mister, preparador físico ou roupeiro de outra seleção em prova, algum árbitro, ou vários, vão de certeza ser mandados pro c… .