Uma equipa do outro mundo

A seleção da Austrália caiu nos oitavos de final, mas deixou uma boa imagem no Qatar. Três refugiados, um eletricista e um jogador que nunca esteve no país deram forma à seleção mais improvável do Mundial.

por João Sena

Chegaram do outro lado do mundo para surpreender pelo futebol positivo, até os seus adeptos foram apanhados de surpresa. Foi preciso ganharem dois jogos seguidos e passarem aos oitavos de final para o Governo da Nova Gales do Sul mandar montar um ecrã gigante no Tumbalong Park, para que os adeptos pudessem ver o jogo contra a Argentina (às 6h00 locais), mas logo o primeiro-ministro estragou a festa ao proibir o consumo de álcool no local. «Se eles quiserem, podem ir ao pub», justificou. Confirma-se que estão nos antípodas da nossa realidade.

A Austrália participou pela sexta vez num Campeonato do Mundo de futebol. Na repescagem, eliminou o Peru nas grandes penalidades (5-4) e garantiu um lugar entre as melhores seleções do mundo. O veterano guarda-redes Andrew Redmayne – quer ser professor quando deixar o futebol – usou da sua arma secreta: saltitar de um lado para o outro sobre a linha de golo, balançando os braços e as pernas para desestabilizar os adversários. Deu certo ao sexto penalti, os peruanos falharam e a Austrália seguiu para o Mundial.

A primeira surpresa é que sendo um país da Oceânia está integrada na Confederação Asiática de Futebol. As razões são simples: a Oceânia é o único continente que não tem uma vaga direta e, depois, como o futebol nessa região é considerado amador, apenas a Austrália e a Nova Zelândia têm ligas profissionais, não fazia sentido colocar as duas realidades em confronto.

Olhando em pormenor para os ‘Socceroos’, nome pelo qual é conhecida a seleção e que resulta da junção dos termos soccer (futebol) e kangaroos (cangurus), encontramos três refugiados de guerra, um eletricista e um jogador que nunca esteve na Austrália. A isto chama-se globalização no futebol. A equipa treinada por Graham Arnold surpreendeu no Qatar ao terminar a fase de grupos no segundo lugar, com o mesmo número de pontos da França, após triunfos (1-0) sobre a Tunísia e Dinamarca – pela primeira vez venceu dois jogos consecutivos num Mundial. Ninguém queria acreditar, nem mesmo os australianos, o que levou o treinador a desabafar: «Eu vou chorar». Nos oitavos de final apanhou a poderosa Argentina e perdeu (1-2), mas no final do jogo teve várias ocasiões para empatar e obrigar Messi e cia. a horas extra.

A seleção australiana foi feita por medida pelo técnico a pensar na competitividade, e pode dizer-se que honrou os dias de glória de grandes jogadores, como Tim Cahill, talvez o melhor de todos, Harry Kewell e Mark Viduka.  A geração de 2022 pode não ter o mesmo brilhantismo, mas deixou uma imagem positiva no Qatar, como salientou o seu selecionador: «Sei que neste momento não tenho ninguém que se destaque com regularidade nos principais campeonatos do mundo, mas temos talento aqui».

 

Prova de sobrevivência

A seleção australiana tem vários jogadores que atuam nas principais ligas europeias, nomeadamente em Inglaterra, Itália e Espanha. Um deles é o avançado do Cádiz, Awer Mabil, que jogou no Paços de Ferreira na época 2017/18. Mabil esteve no campo de refugiados de Kakuma (Quénia) até 2006, depois de os seus pais terem deixado tudo para trás e cruzado fronteiras para escapar das bombas e balas que devastavam o Sudão do Sul. Tem 27 anos e durante muito tempo sobreviveu com uma refeição por dia. E jogava descalço com uma bola feita de meias. Quando saiu do campo de refugiados foi viver para a Austrália. Chegou à Europa em 2016 com sonhos por realizar e com a «responsabilidade de mostrar às pessoas que há sempre um caminho a seguir. Nunca me senti mal com o facto de ser refugiado e quero que todos conheçam a minha história», disse o jogador. A extraordinária história de Mabil é inspiradora e o treinador usa o seu exemplo para motivar a equipa quando defronta as melhores seleções do mundo.

Mabil não está sozinho nesta história de sobrevivência. A guerra civil no Sudão do Sul obrigou Thomas Jok Deng e a sua família a procurar abrigo no mesmo campo de refugiados no Quénia. Só depois seguiram para a Austrália e foram viver para Adelaide quando Deng tinha seis anos. O defesa central, hoje com 25 anos, joga no Albirex Niigata, da segunda liga japonesa. Deng foi capitão da Austrália na histórica vitória (2-0) sobre a Argentina nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2020 e recebeu o prémio Player of the Match. O seu irmão mais velho representa a seleção do Sudão do Sul.

A família de Garang Kuol foi forçada a abandonar o Sudão do Sul em busca de segurança, e foi parar a um campo de refugiados no Egito. Estiveram um ano nesse campo antes de partirem para a Austrália, onde, finalmente, conseguiram ter uma vida normal na cidade de Shepparton. Aos 18 anos, a vida voltou a sorrir ao promissor ponta de lança que, na próxima janela de transferência em janeiro, vai trocar o Central Coast Mariners pelo Newcastle, atual terceiro classificado da Premier League.

O avançado Mitchell Duke, 31 anos, joga no Fagiano Okayama, da segunda divisão japonesa, mas há uma década era apenas um jovem que vivia numa casa modesta, nos subúrbios Sydney, com os pais e mais oito irmãos. A sua paixão pelo futebol levou-o a trabalhar intensamente. «Fazia sessões infernais de flexões e abdominais, mas tive momentos em que pensei que não era suficiente bom», admitiu numa entrevista à televisão australiana ABC. A necessidade de ajudar a família (desde criança habituou-se a usar roupa em segunda mão ou de uma das seis irmãs mais velhas) obrigou-o a ter vários empregos. Foi rececionista noturno no aeroporto de Bankstown, durante o dia era vendedor numa loja de peças para automóveis e, depois, trabalhou como eletricista. É então que o atual selecionador se cruza no seu caminho e o contrata para o Central Coast Mariners. O sonho começou a ser realidade e ganhou uma nova dimensão no Qatar, com o golo que marcou à Tunísia e valeu a vitória dos ‘Socceroos’.

Nascido em Aberdeen, na Escócia, Martin Boyle, avançado de 29 anos, foi ignorado pela seleção do país e passou os últimos anos a mostrar o quanto os conterrâneos se enganaram. Casado com Rachael Small, jogadora da seleção feminina escocesa, nunca tinha estado na Austrália até ser convocado para defender os ‘Socceroos’. A convocatória para a seleção surgiu por acaso, quando Graham Arnold fez uma visita a dois companheiros de equipe de Boyle, então no Hibernian, e foi avisado de que os pais do avançado eram australianos. Fez toda a fase de qualificação, mas a dois dias do primeiro jogo foi declarado inapto devido a uma lesão no joelho.