A deusa grega que caiu do pedestal europeu

Eva Kaili foi detida na semana passada por suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e associação criminosa. Antes de chegar a eurodeputada e vice-presidente do Parlamento Europeu, apresentava noticiários num canal de televisão grego.

A deusa grega que caiu do pedestal europeu

Tem a aparência de uma supermodelo (alta, loira, de olhos azuis rasgados), relacionava-se com bilionários da vanguarda da indústria espacial, como o britânico Richard Branson,  dono da Virgin Galactic, e já afirmava a sua influência junto da elite política europeia. Eva Kaili tinha o mundo a seus pés. Hoje, está nas bocas do mundo, mas não pelas melhores razões. Presa preventivamente por suspeitas de ter recebido dinheiro do Qatar a troco de elogios às reformas laborais daquele país, naquele que já é considerado um dos maiores escândalos de corrupção no seio de Bruxelas, a socialista grega que era vice-presidente do Parlamento Europeu caiu do pedestal no pico da carreira.
Nascida na cidade portuária grega de Salónica, banhada pelo Mar Egeu, Eva Kaili ingressou na política desde muito jovem, juntando-se à juventude partidária do Movimento Socialista Pan-helénico, mais conhecido como PASOK, aos 14 anos.
Na universidade, licenciou-se em Arquitetura e Engenharia Civil antes de se mudar para a capital grega de Atenas para realizar um mestrado em Assuntos Internacionais e Europeus. Também iniciou, sem concluir, um doutoramento em Política Económica Internacional. 
Aos 24 anos, foi eleita a mais jovem vereadora de sempre para a câmara municipal de Salónica, e, logo depois, em 2007, foi eleita deputada nacional para o Parlamento grego.
Antes disso, teve uma breve passagem pela televisão, como pivô e jornalista do canal grego MEGA Channel, profissão que lhe valeu a sua afirmação como figura política na Grécia. A revista espanhola Informalia descreve assim o seu poder mediático na Grécia: «Eva Kaili é imensamente famosa no seu país, onde foi apresentadora, uma espécie de rainha Letizia que, ao invés de se casar com o herdeiro da coroa, entrou para a política».
O seu mandato no Parlamento grego também não esteve isento de controvérsias, insurgindo-se contra posições dos seus colegas de partido, como aconteceu quando se recusou a apoiar o primeiro-ministro socialista George Papandreou em um voto de confiança crucial aquando da crise financeira da Grécia em 2011, conta o Politico. Kaili acabou por mudar de ideias e Papandreou sobreviveu no poder.
Em 2014, deu o salto para o Parlamento Europeu, onde se juntou à bancada dos Socialistas e Democratas (S&D), o grupo político europeu onde também está o Partido Socialista português.
Enquanto eurodeputada, destacou-se no âmbito das políticas digitais do bloco europeu, tendo estado à frente de comissões ligadas à inovação e tecnologia durante os anos em que a comissária europeia Margrethe Vestager travava uma guerra contra as gigantes tecnológicas. Kaili debruçou-se principalmente nas tecnologias de Inteligência Artificial, segurança cibernética e blockchain (a tecnologia que serve de base de funcionamento às criptomoedas). E também colaborou com a irmã num think-tank focado no impacto das leis sobre as novas tecnologias.
Sendo uma das poucas mulheres gregas em um cargo europeu de destaque, Kaili foi conquistando amplo apoio na imprensa, que lhe dedicou longos perfis. Em 2011, foi considerada personalidade do ano pela publicação alemã Der Spiegel. Em 2018, o Politico reconheceu-a como uma das «mulheres mais influentes em Bruxelas». Nesse mesmo ano, recebeu o prémio de Melhor Deputado ao Parlamento Europeu na categoria de Novas Tecnologias, concedido pela The Parliament Magazine.
Em 2020, conheceu o namorado Francesco Giorgi, de 35 anos, um conselheiro parlamentar italiano, experiente na área de relações internacionais e direitos humanos e fundador da organização não-governamental Fight Impunity. Em fevereiro de 2021, o casal teve uma filha. Giorgi também trabalhou como instrutor de vela, documentando essa parte da sua vida faustosa no seu perfil de Instagram, repleto de fotografias suas a velejar pela Sardenha, a esquiar pelos Alpes, ou em viagens de negócios em Doha.
Ninguém poderia prever a queda daquele que é considerado um dos casais mais influentes do Parlamento Europeu. Há cerca de um mês, Kaili surpreendeu a Europa com um um discurso fervoroso em defesa do Qatar, considerando o país uma «prova de como a diplomacia do desporto pode conseguir uma transformação histórica de um país com reformas que inspiram o mundo árabe». E foi mais longe: «Eu própria digo que o Qatar é líder nos direitos laborais». 
Na passada sexta-feira, estas palavras ganharam novo significado e contornos questionáveis, quando a até aqui vice-presidente do Parlamento Europeu foi detida, no âmbito de uma investigação sobre crime organizado, corrupção e lavagem de dinheiro ligadas ao lobbying a favor do Qatar. A detenção teve lugar quando ainda decorre naquele país o campeonato do mundo de futebol, adensando as suspeitas relativas à atribuição da prova a este país. 
Suspeita da prática dos crimes de branqueamento de capitais, corrupção e de participar numa organização criminosa, a eurodeputada não pode beneficiar da sua imunidade parlamentar porque apanhada «em flagrante delito», segundo as autoridades belgas. Contudo, não terá agido sozinha:  por trás tinha uma rede que integrava membros da sua família, como o pai ou o namorado italiano, que era assessor parlamentar no mesmo organismo da União Europeia em que a companheira assumia altas funções desde janeiro deste ano.
Além de Kaili, Francesco Giorgi foi também detido. O nome de Alexandros Kailis, pai de Eva, também constava da lista de detidos, ainda que viesse a ser libertado mais tarde, ao contrário do que aconteceu com a filha e com o genro.
Tudo aponta para que Giorgi seja o cabecilha da rede que recolhia subornos em troca de uma operação de limpeza da imagem qatari em Bruxelas — uma versão que as autoridades do país anfitrião do mundial de futebol negam em absoluto. O companheiro de Eva era também bastante próximo do ex-eurodeputado italiano Pier Antonio Panzeri, que também terá sido detido. É aí que as teias familiares se adensam: a mulher de Panzeri, Maria Colleoni, também acabou detida em Itália, tal como a filha do casal, Silvia Panzeri, ambas no âmbito do cumprimento de um mandado de detenção europeu.
Na sequência das buscas realizadas pelas autoridades belgas, foram encontrados mais de 1,5 milhões de euros em dinheiro nas casas de Eva Kaili e Pier Antonio Panzeri. Também o pai da eurodeputada, um engenheiro mecânico que ocupou um cargo de relevo na Administração Pública (foi ex-diretor-geral de Transportes e Comunicações da região da Macedónia Central), foi apanhado em flagrante pelas autoridades na passada sexta-feira. Alexandros Kailis foi detido quando se preparava para fugir para a Grécia. Tinha na sua posse uma mala com 600 mil euros em dinheiro, alegadamente provenientes do esquema de corrupção em que está envolvida a filha.
Outros montantes foram descobertos na sequência das buscas em residências e nos escritórios do edifício que acolhe o hemiciclo e os gabinetes dos deputados em Estrasburgo. De acordo com a Euronews, a polícia belga encontrou mais 150 mil euros num apartamento de um eurodeputado na capital belga.
A Autoridade de Combate ao Branqueamento de Capitais grega ordenou também a apreensão dos bens (imóveis, contas bancárias, empresas) dos familiares mais próximos de Eva Kaili no país, com a justificação de que podem ser resultado de atividades ilícitas. 
As declarações anuais de património apresentadas por Eva Kaili e disponíveis no site do Parlamento grego também mostram que os depósitos bancários mais do que duplicaram em dois anos. Na sua declaração de 2019, referente ao exercício de 2018, Eva Kaili declarou rendimentos no valor de 550 mil euros (mais de metade dos quais provenientes da venda de uma casa nos arredores de Atenas), e os seus depósitos bancários ascendiam a 210 mil euros, a maioria depositados num banco belga. 
Um ano depois (ano fiscal de 2019), os seus depósitos quase duplicaram atingindo os 405 mil euros, embora nesse período os seus rendimentos declarados diminuam (219 mil euros). Nesse ano, também declarou a compra de um apartamento no bairro do Psijicó, em Atenas, com um valor de 270 mil euros.
Em 2020, os depósitos declarados pela eurodeputada grega continuaram a subir e atingiram os 461.846 euros, embora os seus rendimentos tenham voltado a diminuir (164 mil euros).
A socialista de 44 anos, acabou afastada das suas funções pela presidente do Parlamento Europeu, a maltesa Roberta Metsola, depois de ter sido conhecida a sua detenção no fim de semana. A decisão foi aprovada em plenário por 625 votos a favor, um contra e duas abstenções, representando uma dupla maioria de dois terços dos votos expressos e uma maioria dos deputados que compõem o hemiciclo. Por enquanto, manterá o estatuto de eurodeputada, uma vez que este só pode ser-lhe retirado pela Grécia.
Contrariamente ao que era esperado, Eva Kaili não foi presente a juiz na quarta-feira, devido a uma greve dos serviços prisionais belgas e deverá permanecer em prisão preventiva, pelo menos até à próxima quinta-feira, dia 22 de dezembro. Até agora, diz estar inocente e nega ter recebido dinheiro para pôr em marcha uma agenda pró-Qatar no seio da União Europeia.
«Não tem nada que ver com financiamento do Qatar, nada, explícita e inequivocamente. É essa a posição dela», afirmou esta semana o seu advogado, Michalis Dimitrakopulos. Quanto a Alexandros Kailis que terá sido detido quando tentava fugir com sacos cheios de dinheiro, o advogado esclareceu que as autoridades belgas não lhe impuseram condições restritivas e que, se quiser, «é livre de regressar à Grécia».
O boletim de notícias diário do Politico também traz novos desenvolvimentos sobre o caso. De acordo com um pedido de extradição a que aquele jornal teve acesso, as investigações apontam agora também para Marrocos, sendo que o ex-eurodeputado Pier Antonio Panzeri terá recebido dinheiro e presentes de um ‘gigante’ em troca de favorecimento àquele país árabe. Segundo os documentos, cita o Politico, os procuradores sugerem que na origem desse dinheiro que foi transferido para o político italiano esteja Abderrahim Atmoun, o embaixador de Marrocos na Polónia.