Nós só queremos ver Paris a arder

Esta onda de violência não resulta de falta civismo e de respeito pelos países onde melhoraram as suas condições de vida e usufruíram de direitos que não tinham nos países de origem, mas sim de terem sido colonizados pelos franceses.

Depois de Marrocos ter vencido a Espanha e Portugal, os marroquinos residentes em Paris, e noutras cidades francesas, celebraram a vitória com atos de vandalismo e pedradas na polícia. À hora que envio este texto para o Nascer do SOL, ainda não começou o jogo com a França. Mas é provável que, ganhem ou percam, aconteça algo semelhante. Ao contrário dos emigrantes portugueses que souberam festejar a vitória no Europeu pacificamente e aceitaram a eliminação do mundial com estoicismo, os marroquinos soltam a sua fúria.

Esta onda de violência não resulta de falta civismo e de respeito pelos países onde melhoraram as suas condições de vida e usufruíram de direitos que não tinham nos países de origem, mas sim de terem sido colonizados pelos franceses. Como já foi demonstrado por muitos historiadores, os povos colonizados têm direito a vingar-se, ainda que já tenha passado um século desde a independência, e ainda que os atuais cidadãos desses países – marroquinos ou outros – não tenham sido escravizados ou colonizados, assim como os atuais cidadãos franceses ou europeus não tenham escravos ou possessões coloniais. É a vingarem-se que os povos se reconciliam e saram as feridas do passado. E nada melhor do que uma loja da Louis Vuitton a arder ou um gendarme com a cabeça rachada para se fazer justiça. Quantas lojas Vuitton e quantos gendarmes deverão levar com cocktails de molotov e pedras, isso ainda está por apurar. Todavia, se considerarmos que o colonialismo europeu durou cinco séculos, penso que é razoável aceitar que pelo menos outros cinco séculos de vandalismo sobre as cidades e os cidadãos europeus será justo e merecido. 

É por isso incompreensível a atitude pacífica e passiva dos emigrantes portugueses e lusodescendentes em Paris. Será que já se esqueceram das invasões napoleónicas? Não se lembram que Junot, Soult e Massena invadiram por três vezes Portugal e que os soldados franceses mataram milhares de portugueses, violaram mulheres e crianças, pilharam obras de arte e vandalizaram o túmulo de D. Pedro e Dona Inês? E quanto às bidonvilles? Já esqueceram as condições miseráveis onde viveram nos anos sessenta enquanto edificavam as principais cidades francesas? Parece que sim. Esqueceram tudo, estão gratos à França por lhes ter melhorado a vida e adoram os franceses.

Ora isto é revoltante. E só demonstra que os portugueses são muito menos civilizados do que os marroquinos. Um povo verdadeiramente civilizado está atento às novas teorias de ajuste de contas com a História e não perde uma oportunidade de a pôr em prática. Como tal, lamenta-se que os portugueses, quer quando venceram o Europeu, quer aquando da eliminação do Mundial, não tivessem saído furibundos para as ruas de Paris e começassem a destruir tudo – menos os restaurantes portugueses – e a disparar caçadeiras sobre os gendarmes. Deveriam até entrar pelo Louvre, ver se não estaria lá nenhuma obra roubada pelos franceses, e depois arrasar o museu. A princípio, talvez houvesse algumas reações de desagrado por parte dos franceses, mas, com a intervenção dos pensadores ocidentais que defendem o ajuste de contas com a História, o apoio dos ativistas que reclamam indemnizações aos países colonizados, e umas pitadas de Maio de 68, tudo ficaria bem. E uma nova etapa nas relações entre Portugal e a França, sarada a ferida da invasão napoleónica e as bidonvilles, mais o «les portugais sont toujours gais», começaria. 

Les portugais du bâtiment et les femmes portugaises de la ménage estariam finalmente vingados.

No entanto, para que este movimento de afirmação de Portugal perante o mundo ficasse completo seriam necessários outros ajustes de contas. Seguindo uma ordem cronológica, o Instituto Camões deveria incentivar os portugueses residentes em Roma a pegar fogo ao Coliseu, às lojas Dolce & Gabbana e aos stands da Ferrari como vingança pela romanização de Portugal e pelo assassinato de Viriato. Depois seriam os próprios marroquinos a sofrerem ataques em Casablanca, em Tanger e em Alcácer Quibir para nos vingarmos de terem invadido Portugal e escravizado portugueses, por terem matado o Infante Santo Dom Fernando e pelo desaparecimento de Dom Sebastião. De seguida, pegava-se fogo a Madrid e dava-se uma coça em todos os espanhóis que andassem por aí de férias – chicas guapas inclusive para mostrar que não temos preconceitos machistas – para nos vingarmos do domínio filipino. E, por fim, expulsávamos os ingleses das quintas do Vinho do Porto, fechávamos as British School e criava-se um campo de concentração no Algarve para os bifes se lembrarem do mal que nos fizeram. E, como no início do séc. XX os emigrantes portugueses não foram bem recebidos no Brasil independente, e ainda se contam piadas xenófobas sobre eles, proibia-se durante uns tempos a caipirinha.