A falsa neutralidade axiológica na Guerra da Ucrânia

Mas observamos, sobretudo, à falência moral entre aqueles que deveriam assumir a universalidade da ética e dos Direitos Humanos. 

Por Liliana Reis, *Diretora do Curso de Ciência Política e Relações Internacionais da ULHT, Professora UBI

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução 217A (III) a 10 de Dezembro de 1948, reconhecendo que as atrocidades cometidas durante a II Guerra Mundial não poderiam voltar a suceder-se e que a «dignidade e o valor da pessoa humana» deveria comprometer e limitar a ação dos Estados. Esta data seria indicada como o Dia Internacional dos Direitos Humanos, o qual assinalámos no passado sábado, num contexto de Guerra e o regresso da crueldade e da barbárie à Europa. Depois da invasão da Rússia à Ucrânia a 24 de fevereiro de 2022 e da sua cobertura mediática na sociedade 5.0, temos vindo a assistir a uma polarização crescente do debate na esfera pública. Ora, a esfera pública, para Habermas «influencia as decisões do sistema político, formando uma espécie de cerco a partir do escrutínio público». Isto é visível, sobretudo, nas sociedades democráticas devido à pluralidade do debate público, mas também à benigna representação ideológica no quadro partidário. Com a Guerra na Ucrânia, essa representação da esfera pública foi alargada das políticas públicas tradicionais para o domínio da política externa, procurando-se que a Guerra obedeça aos mesmos axiomas de um processo deliberativo democrático que a saúde ou a educação. E é, precisamente, aqui que encontramos uma visão cética radical em que as sociedades ocidentais mergulharam, sob uma pretensa neutralidade axiológica, que Weber afirma «não estar atrelada à objetividade». 

Já não basta o júbilo com as conquistas militares russas que assistimos, mas também interrogações permanentes, semelhantes a: porque devemos acreditar no que nos diz o Zelensky e não em Putin? Porque devemos acreditar nos órgãos de comunicação social ‘ocidentais’ e não nos russos que até foram sancionados? Ou, no limite, porque devemos acreditar que as imagens que nos chegaram de Bucha, Kramatorsk ou Izium não foram encenadas? Assistimos, assim, à equivalência entre agressor e agredido, escamoteando que a Rússia violou, ab initio o Direito Internacional Público e o princípio da integridade territorial, constante no artigo 2(4) da Carta das Nações Unidas. Mas observamos, sobretudo, à falência moral entre aqueles que deveriam assumir a universalidade da ética e dos Direitos Humanos. 

O niilismo profundo e a decorrente morte de Deus já não permite distinguir entre o bem e o mal, a verdade e a mentira, o belo e o feio. E, por isso, as liberdades e os direitos fundamentais numa democracia equivalem a uma autocracia, as notícias veiculadas por órgãos de comunicação social, onde é assegurada a liberdade de imprensa, equiparam-se àquelas que são tuteladas por estados para fins propagandísticos, e os crimes de guerra e contra a humanidade perpetrados por um Estado agressor não devem ser escrutinados por instâncias normativas internacionais, que nem subscreveram, regressando a Anarquia às Relações Internacionais e o caos, que a amoralidade encerra, aos Homens. A ‘miséria dos pós-modernos’ tem sido auto-fágica e pode, no futuro, apresentar-se como derradeiro golpe fatal à Pax Democratica.