Montenegro em choque com Passos Coelho

O artigo de Passos Coelho contra a eutanásia marcou a primeira rutura pública no novo PSD. Montenegro não gostou da ‘lição’ de estratégia do antigo presidente. E respondeu à bruta.

A resposta perentória de Luís Montenegro a Pedro Passos Coelho acerca da eutanásia – «Sou muito direto. Discordo completamente da posição do dr. Pedro Passos Coelho. Discordo pelo facto de ele discordar da realização de um referendo sobre esta matéria. Discordo porque a posição dele é muito fechada» – denunciou um desconforto indisfarçável do líder do PSD em relação ao antigo primeiro-ministro, que saltou ainda mais à vista sabendo-se da relação entre ambos, aliás testemunhada pelo apoio público que aquele último concedeu à atual direção do partido, aceitando participar na reunião dos sociais-democratas no Pontal no verão passado.

Dependendo de quem olha para esta estranha intriga pública entre os dois, o episódio tem levado a várias interpretações. 
Entre quem é mais próximo da direção do partido procura desvalorizar-se o diferendo de opiniões. 
Mas não falta também quem veja uma subtil tentativa de emancipação de Montenegro em relação ao seu antecessor politicamente mais próximo e que o nomeou líder parlamentar.

Entre recursos para tentar impor um referendo à despenalização da morte medicamente assistida, o artigo do antigo primeiro-ministro a contestar a ideia de referendo e a pressionar o PSD a comprometer-se, desde já, a reverter a lei assim que chegar ao poder,  incomodou manifestamente a liderança social-democrata. Ainda para mais pelo timing de Passos Coelho.

Se o antigo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, veio a público manifestar a sua oposição à legalização da eutanásia no final de novembro, ainda antes de Montenegro defender o referendo, Passos veio a terreiro com posições radicais sobre esta matéria  na véspera da votação da lei na Assembleia da República e da exigência de uma consulta popular pelo seu partido – com a qual, aliás, Passos Coelho discorda frontalmente.

Ainda que se jure a pés juntos que «não há qualquer desconforto», como fez o secretário-geral do PSD, Hugo Soares, em declarações ao Público nesta semana, ninguém ignora que esta foi uma forma de Montenegro marcar uma posição e se distanciar do lastro passista

A querela pública, a primeira entre os dois, também não passou ao lado dos habituais comentadores que acompanham as dinâmicas internas dos sociais-democratas. «Pedro Passos Coelho foi muito veemente e Luís Montenegro não achou graça nenhuma», comentou Pedro Santana Lopes, na CMTV. O antigo primeiro-ministro e atual presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz sugeriu ainda que  Passos Coelho está a querer a marcar espaço para uma eventual candidatura a Belém.

José Miguel Júdice tambémapontou que o caso foi um «erro desnecessário», argumentando que  «os antigos primeiro-ministro têm todo o direito de dizer o que pensam, mesmo que isso não ajude o sucessor que enfaticamente apoiaram». Júdice sublinhou as «vezes» que Montenegro disse «discordar» de Passos Coelho e a forma como reagiu à «pantufada» do ex-primeiro-ministro. E disse ainda esperar que este não seja um sinal de que o partido já está a voltar às guerras internas que marcaram os últimos anos.

O instigador Relvas
A este burburinho também se juntou Miguel Relvas, que antes mesmo da troca de argumentos entre Montenegro e Passos já tinha vindo criticar a forma como o líder social-democrata geriu o processo da eutanásia. Na CNN, o antigo ministro de Passos reconheceu que o PSD «pecou pela forma tardia» com que avançou no processo. «Deveria estar a defender o referendo há um mês», sugeriu.

Afastado do Governo de Passos, na sequência da polémica sobre a sua licenciatura na Universidade Lusófona, e muito crítico da liderança de Rui Rio, Miguel Relvas foi perdendo peso dentro do PSD. Apesar de mais próximo de Luís Montenegro, que apoiou na corrida à liderança do partido contra Rui Rio, manteve-se longe da sua esfera de influência passada e tem sido uma das vozes instigadoras das críticas à forma como a atual direção do partido tem lidado com questões como a eutanásia. 

Ao Nascer do SOL, defendeu que a posição de Passos Coelho em relação ao tema partiu de uma questão de consciência, não vendo com bons olhos o facto de Montenegro ter acusado o antigo primeiro-ministro de ter uma visão «muito fechada» sobre esta matéria, tendo em contra «a própria experiência pessoal e familiar» de Pedro Passos Coelho nos últimos anos.

O Nascer do SOL também sabe que Miguel Relvas tem tido encontros com mais regularidade com o ex-primeiro-ministro. Algo que não parece totalmente inocente numa altura em que se questiona o futuro político de Passos Coelho, desde que o Presidente da República o empurrou a para uma próxima corrida presidencial.

Mas há ainda quem também alimente a possibilidade de que esta advertência de Passos a Montenegro pode abrir caminho a um eventual  retorno do ex-líder à liderança do PSD, com olhos postos numas próximas legislativas. «Quando Passos Coelho afirma que era bom reverter a lei no futuro, creio que não fala genericamente no PSD, mas no PSD liderado por ele […] Essa é talvez a revelação mais importante do artigo: quando muitos o dão em Belém, parece que o dr. Passos ainda se vê em S. Bento», disse ao Público o analista João Pereira Coutinho.

Nos bastidores sociais-democratas esta é uma possibilidade considerada remota ou mesmo impossível, vingando a tese de que este pode ter sido, sim, o tiro de partida de uma candidatura a Belém.