Portugal. Autópsia sobre uma morte anunciada

A seleção nacional de Fernando Santos morreu! Campeã da Europa, não durará até 2024 – como estava definido no contrato com a FPF – e parece óbvio que a corda quebrou por vontade do selecionador nacional que se viu, durante este Mundial, perante uma situação vexatória que não só não pôde admitir como, ficando, o…

DOHA – Já se passaram quase quinze dias sobre a eliminação de Portugal frente a Marrocos, nos quartos-de-final deste Campeonato do Mundo que já fez as malas e prepara para se mudar – veremos se com tanta polémica como a que envolveu o Qatar – para os Estados Unidos (México e Canadá só fazem figura de corpo presente), um daqueles países que – utilizando ironicamente o estafado argumento de que foi ridículo organizar o Mundial deste ano num país minúsculo que não tem tradição futebolística –, como sabemos, é apaixonado pelo soccer desde sempre. Nem com a chegada de Pelé, Eusébio, Cruyff, Beckenbauer e tal e tal, nos anos 70, conseguiu que, além dos latinos, alguém passasse cartão à bola redonda, e ainda por cima, já organizou a competição (uma das piores organizações da história, diga-se) em 1994. Pode ter sido uma eliminação dolorosa, a nossa, por ter sido contra quem foi – estávamos todos à espera de serem os espanhóis a enviarem-nos para casa – e contra quem temos contas a ajustar desde 1986, mas acabou por ser naturalíssima tendo em conta que Portugal – individualmente e como equipa – está longe, mas mesmo muito longe, de merecer as fanfarronadas com que o presenteiam nas vésperas de cada nova grande competição.

A seleção nacional tal como existiu de 2014 para cá (Fernando Santos assinou contrato no dia 24 de setembro, substituindo Paulo Bento que apurou Portugal para o Mundial do Brasil mas não resistiu a uma derrota caseira com a Albânia na fase de classificação para o Europeu de França) morreu e só ainda não foi enterrada porque alguém não parece estar muito interessado em limpar as enxúndias, como diria o Alexandre O’Neill. No momento de fazer a autópsia a um cadáver não apenas feio como até com algo de mal cheiroso, diga-se que essa morte que já vinha a avançar lentamente ao longo de estertores muito pouco compreensíveis e ainda menos desculpáveis, viu o atestado de óbito ser assinado no momento exato em que o engenheiro decidiu que não queria ser mais selecionador nacional. Apesar de conhecer Fernando Santos há coisa de trinta anos e ter por ele a simpatia geral que provocava com um feitio brincalhão e o sem número de histórias que trazia sempre na ponta da língua, numa altura em que jornalistas, jogadores e treinadores criavam relações de proximidade natural – pela razão principal que éramos poucos aqueles que andávamos na esteira das equipas e das seleções – não temos tido tempo para conversas e quanto muito, vamos deixando promessas de as cumprir através de mensagens de circunstância. A despeito da relativa distância, muitas foram as vezes que, nos últimos tempos, lhe adivinho angústia. Ela esteve, aliás, à vista de todos ultimamente. E se saiu de Lisboa em direção a Doha, e em seguida a Al-Shahanyia, onde Portugal assentou o seu quartel-general, depois de ter concedido uma entrevista na qual transpirava serenidade, foi claramente com uma evidente irritação que apareceu na conferência de imprensa na véspera do jogo frente a Marrocos e, digo eu, com certo alívio que deixou, de vez, a função de selecionador e o inacreditável número de problemas que ela acarretou nestes tempos mais recentes.
 
Vontade! 
O silêncio parece ser o refúgio escolhido por todos após a revelação de que Fernando Santos não continuaria como selecionador até ao próximo Europeu, como estava registado no seu contrato. Quando assim é, não resta outra solução do que procurar interpretar esse silêncio, ou esses silêncios, neste caso, porque são vários e, quase ia a escrever, bem audíveis. Muitas vontades parecem ter-se entrechocado no período que antecedeu e durou a fase final do Campeonato do Mundo do Qatar para a qual partimos, mais uma vez, debaixo de uma vanglória e de uma jactância absolutamente injustificadas. E esse blasonar, tão prontamente adotado pela comunicação nacional no seu todo, também é responsável pela queda abrupta numa sensação de frustração e de depressão tão injustificadas como a farronca. Quando Cristiano Ronaldo resolveu oferecer – parece-me um termo certo – a um tal de Piers Morgan uma visibilidade que este não conseguiria pagar nem com um milhão de libras, usando o ‘jornalista’ (assim mesmo, com ‘’) para abrir um conflito insanável com o United e provocando a quebra da ligação com o clube de Manchester, foi feita a sua vontade: escrevi-o aqui mesmo no dia da separação. Claro que a segurança com que o capitão da seleção apareceu, logo de imediato, também em conferência de imprensa, já no Qatar, deixou na intuição coletiva a ideia de que já tinha o futuro garantido e que passaria por um clube à medida das suas ainda enormes ambições. O tempo passou e, com ele, uma nuvem de dúvidas acumulou-se sobre a realidade da carreira de Ronaldo. Mas deixemos isso, por ser caminho diverso do que quero tomar neste texto que tenta ser de reflexão após um conveniente interregno. Em vez de um Ronaldo aliviado por se ter visto livro do tormento que estava a passar com o seu treinador no United, ainda por cima com um golo logo no jogo de estreia da competição, percebemos que iríamos estar perante um Ronaldo revoltado: revoltado por não estar a ser notícia como candidato a reforço de todos os gigantes do futebol do mundo, revoltado contra si próprio por o corpo não lhe permitir fazer coisas que costumava fazer com uma perna às costas, revoltado por não ser o centro do futebol da seleção da qual foi sempre o emblema e, finalmente, muito, mas muito revoltado por se ver substituído contra a sua vontade ao ponto de ter soltado uma frase inaceitável e arrasadora para com o selecionador – com o azar acrescido de lhe filmarem os lábios tão de perto que qualquer tipo de desmentido seria grotesco. Fernando Santos, que colocou sempre o seu capitão no topo da pirâmide da cadeia alimentar da equipa de Portugal, que o defendeu com unhas e dentes em fases de menor fulgor, que – aí culpa sua, evidentemente! – o libertou de todas as responsabilidades nos fracassos que começaram a surgir depois da vitória na Liga das Nações de 2019, terá não apenas ficado magoado ou furioso com o que teve de ver universalmente exposto, como percebeu que perderia o respeito dos restantes jogadores, do staff e dos próprios adeptos, se não tomasse uma posição de inquestionável autoridade. Tomou. 
 
Hora de revolução. 
Quando atirou com Ronaldo para o banco de suplentes frente à Suíça, Fernando Santos definiu a decisão eufemisticamente como uma opção técnica, mas todos percebemos que a relação entre ele e Cristiano Ronaldo não voltaria a ser pacífica, até porque o próprio Ronaldo não retirou nada do que foi ‘lido’ a dizer perante as câmaras de televisão como também não apresentou o indispensável pedido público de desculpas ao seu selecionador. A mentirosa vitória sobre uma Suíça – que seja lá pela Febre dos Camelos de que se queixou o seu treinador e, ainda esta semana, Didier Deschamps, técnico da França, na véspera da final, seja lá pelo que foi – se deixou triturar por Portugal sem um gesto de rebeldia pode ter reforçado a posição do engenheiro, que não precisou de Ronaldo para ver a equipa marcar seis golos, mas voltou a fornecer para o exterior a ideia de que esta seleção era melhor do que na realidade é.

Marrocos devolveu-nos duramente à Terra. E o problema tinha de ser resolvido. Não sei se o presidente da Federação se convenceu que com a interrupção da atividade da equipa de Portugal a questão se diluiria até março, apostando numa conveniente paz podre até lá, mas cada vez mais me convenço de que Fernando Santos não esteve pelos ajustes e de que não quis continuar a aceitar viver num pântano do qual percebeu não existir outra saída que não a da sua própria saída. E, se fizermos o raciocínio perante a impossível manutenção da seleção nacional tal como está para atacar a fase de apuramento que bate aí à porta, não sobram motivos para aceitar que é preciso uma revolução – com ou sem Ronaldo!? – uma revolução que obrigará a pensar mais longe do que 2024 e o Europeu da Alemanha, e terá de alargar horizontes até ao próximo Mundial, pelo menos. Até porque a fantástica geração de artistas que aí está, considerada por muita gente que devia ter juízo como a mais brilhante da história do futebol português (a que propósito?), já não é nenhuma geração de meninos, com a sua grande maioria a atingir a próxima fase final do campeonato do Mundo (se lá chegarmos) aos 30 anos ou mesmo mais do que isso, salvo duas ou três honrosas exceções. 

É hora de deixar o Qatar e um Mundial que não foi apenas excelente como teve uma final maravilhosa, das mais emocionantes de sempre. Não deixou saudades o nosso Portugal dos Pequenitos. Não deixou saudades a Ronaldo, não deixou saudades à maioria dos seus companheiros, talvez quanto muito a Gonçalo Ramos, o rapaz dos golos mágicos do Estádio Icónico de Lusail que tinha lugar para 90 mil pessoas e passará, em breve, a ser um centro comercial e habitacional construído dentro da sua concha em forma de quilha de Dhow, os barcos do Golfo Pérsico.

Para o treinador que levou a seleção nacional ao título de campeã da Europa, já lá vão seis anos, os tempos mais recentes foram amargos. Talvez já fosse senhor do seu destino na hora da partida. Agora pensará que não lhe cabe a si quebrar o silêncio. Quem tomar o seu lugar vai ter problemas duros para resolver. Problemas que já não fazem mais parte das contas do engenheiro.