Um país com um Governo ou um Governo com um país?

Talvez um dia Vieira da Silva e Cunha venham a experimentar o que Iglesias agora aprendeu: é bem diferente competir, quando há concorrência e seleção por mérito, do que ser cooptado por um dos detentores do poder no pai.

Por Nuno Paiva Brandão, gestor

Em 2038, quando tomar posse solenemente como ministro da República portuguesa, poucos se recordarão que Tiago Cunha começou a sua auspiciosa carreira na administração pública em 3 de outubro de 2022. Aos 21 anos e sem qualquer experiência profissional, Tiago Cunha foi nessa data nomeado adjunto da ministra de Estado e da presidência do Conselho de Ministros, Mariana Vieira da Silva.

É consensual entre as empresas de recursos humanos que, num processo de seleção e recrutamento, o primeiro passo é selecionar apenas os melhores currículos. Sem ter o mestrado e sem experiência profissional, quais eram então as qualidades distintivas de Cunha que a perspicácia da ministra terá detetado? Aparentemente, uma ‘atividade intensa na JS e no PS’, com ‘participação em congressos ligados às estruturas partidárias e a participação nas listas do PS nas últimas eleições autárquicas’, terão sido os atributos que impulsionaram Tiago Cunha para uma carreira de topo na administração pública. Certamente, as primeiras linhas do currículo do futuro ministro de um governo que, como outros antes, possui o país. Em 2005, a atual ministra Vieira da Silva, também ela então sem qualquer experiência profissional relevante, foi nomeada adjunta da ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, no primeiro governo Sócrates. Os seus quatro anos nessa função, permitiram-lhe vir a ser adjunta do secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, no segundo Governo Sócrates.

Como se observa, a lógica sucessiva da seleção endogâmica dá os seus frutos.

Assim, o que se manifesta no país é uma dualidade nos critérios de seleção e recrutamento: no setor privado, supostamente, são escolhidos os melhores, através de um processo independente; nas funções de suporte aos governantes, predomina a ‘afinidade’.

Não é o país que tem um governo, é o Governo que tem um país.

Mas para aferir as diferenças entre ser cooptado e ser recrutado por concurso, mesmo para uma instituição pública, temos um esclarecedor e recente exemplo em Espanha.

Pablo Iglésias, cofundador do partido Podemos, da família política do Bloco de Esquerda, foi eurodeputado no parlamento europeu e, posteriormente, vice-presidente e ministro no Governo de Pedro Sánchez. Iglésias, abandonou a política, após um expressivo revés eleitoral em Madrid. Se a competência fosse um critério significativo para exercer as mais altas funções no governo, certamente que Iglésias, ex-n.º  2 do Governo da quarta economia dos países da União Europeia, rapidamente seria recrutado para funções de grande relevância no mercado de trabalho. Foi isso que aconteceu? Não, em dois concursos públicos de acesso à docência em Universidades públicas, Iglésias foi preterido, em favor de outras candidaturas de pessoas sem exposição pública. Certamente por serem mais competentes que o ex-vice-presidente do Governo de Espanha. Apenas agora, na sua terceira candidatura, Iglésias foi recrutado para professor associado na Universidade Complutense de Madrid.

Talvez um dia Vieira da Silva e Cunha venham a experimentar o que Iglesias agora aprendeu: é bem diferente competir, quando há concorrência e seleção por mérito, do que ser cooptado por um dos detentores do poder no país.

Neste Portugal dual, contrastam as carreiras assentes no controlo burocrático do Estado e os méritos de empreendedores jovens que correm riscos para dinamizar a economia e transformar a sociedade. Em 2021, a Feedzai atingiu o estatuto de  ‘quarto unicórnio com ADN português’, depois da Farfetch, OutSystems e Talkdesk já o terem alcançado. Estes jovens empreendedores, que se destacaram no hipercompetitivo setor tecnológico, corporizam a ambição e a vontade transformadora que um Estado esclerótico, não deseja nem tem capacidade para realizar.

As amplas transformações económicas e sociais de que o país carece, só poderão ser alcançadas pelos mais competentes, numa lógica concorrencial que supere as congruências endogâmicas.

O ponto de viragem ocorrerá quando existir um país com governo, em vez de um governo com um país.