Ossos e Tudo. Um trilho de sangue e amor pelos Estados Unidos

O mais recente filme de Luca Guadagnino acompanha um jovem casal de canibais, interpretado por Taylor Russell e Timothée Chalamet, que viaja pelo interior dos EUA. Apesar de catalogado como terror, este é um dos filmes mais apaixonantes e delicados do ano. 

Depois de Bonnie e Clyde (1967), Thelma e Louise (1991) ou outros casais de criminosos assassinos, de filmes como Badlands (1973) de Terrence Malick, Um Coração Selvagem (1990) de David Lynch ou Assassinos Natos (1994) de Oliver Stone, que nos enchem a mente com fantasias cruéis, existe um novo par de pinga-amores sedento de sangue que anda a passear pelos Estados Unidos e a salpicar o ecrã gigante dos cinemas: estamos a falar de Lee e Maren, interpretados pelos jovens Timothée Chalamet e Taylor Russell, no filme Ossos e Tudo.

O mais recente filme do realizador Luca Guadagnino, que estreou no início do mês nas salas de cinema em Portugal, baseado no livro com o mesmo título da escritora norte-americana Camille DeAngelis, acompanha Maren (que ganha vida através de Taylor Russell, atriz de 28 anos que apareceu em filmes como o aclamado, mas discreto, drama de 2019, Waves), uma rapariga de 16 anos que é abandonada pelo seu pai… depois de arrancar à dentada o dedo de uma colega de escola, num daqueles momentos cinematográficos que nos deixam sem ar depois de termos sido apanhados de surpresa.

Com uma descrição destas e com a etiqueta de filme de terror, pode parecer estranho quando dissermos ao leitor que este é um dos mais bonitos romances a surgir no cinema no presente ano.

Sozinha, a jovem decide fazer-se à estrada até encontrar a sua mãe, interpretada por Chloë Sevigny, a icónica atriz que surgiu nos mais diversos filmes, desde Miúdos de Larry Clark, American Psycho ou Dogville, embarcando assim por uma viagem por diversos estados no interior dos Estados Unidos.

 Pelo caminho, conhece Lee (o jovem astro Timothée Chalamet, que já tinha trabalhado com Guadagnino em Chama-me Pelo Teu Nome, pelo qual foi nomeado para um Óscar de Melhor Ator Principal), com quem partilha um romance e uma inescapável tendência para o canibalismo. 

Juntos, numa carrinha roubada, embarcam numa longa viagem que os leva a conhecer diversas personagens, como o estranho e enigmático Sully (Mark Rylance, que venceu o Óscar de Melhor Ator Secundário, em 2016, graças à sua participação no filme A Ponte dos Espiões), Jake (Michael Stuhlbarg, que já tinha desempenhado o papel do pai de Chalamet em Chama-me Pelo Teu Nome) e o seu parceiro Brad (David Gordon Green, mais conhecido pelo seu trabalho atrás da câmara, tendo realizado comédias como Pineapple Express e os bem sucedidos novos filmes da trilogia atualizada dos filmes Halloween), enquanto aprendem a viver como canibais, mas também a viver com eles próprios, com o casal a partilhar momentos de grande intimidade durante o seu conturbado crescimento.

“[O público] devia ouvir primeiro ‘história de amor’”, explicou o realizador italiano numa entrevista à Radio Times, citada pela Far Out Magazine. “Eles deveriam interpretar primeiro esta história como uma fábula. Uma fábula sombria sobre tentar prosperar com amor. A vida é muito imprevisível, por isso, decidi que não tentaria controlar o fluxo da vida, iria render-me a ele. Este não era o filme que estava a planear fazer”, confessou.

O realizador responsável também por projetos como o remake do filme de terror de Dario Argento, Suspiria, e a série de televisão We Are Who We Are, que, em Portugal, pode ser vista na plataforma da HBO Max, explicou que esta “abordagem híbrida”, ao misturar elementos de terror com romance, surgiu da forma como interpretou o livro que ofereceu inspiração ao filme.

“A ideia para este filme surgiu-me depois de ler o guião. Não o interpretei como um filme de terror, mas sim como uma linda história de amor entre duas crianças que são desprovidas de direitos e sobrecarregadas por um tipo de natureza da qual não conseguem escapar de qualquer forma”, esclareceu. “Foi assim que decifrei o livro e o guião. Sim, eles são canibais e, sim, isso deve aparecer no filme com toda a escuridão que esses momentos violentos acarretam. Mas eu não estava realmente a pensar em termos de género”.

Numa altura em que entramos na chamada “award season” do cinema, em contagem decrescente para os Óscares, cuja cerimónia vai ter lugar no da 12 de março, Ossos e Tudo surge como um filme a ter em conta para a lista dos Melhores Filmes do Ano, estando entre os considerados “tiros no escuro”, uma vez que esta é uma longa-metragem que divide os críticos. 

“Onde alguns fiascos são claramente o resultado de indecisão criativa ou caos nos bastidores, Ossos e Tudo parece e soa ao filme que Guadagnino queria fazer”, escreve Adam Nayman do The Ringer, apontando ainda assim para o facto de que, apesar da mestria do trabalho de edição e fotografia, conseguidos, respetivamente, por Marco Costa e Arseni Khachaturan, existem filmes com temas semelhantes que conseguiram chegar mais longe e com melhor qualidade. 

“A filmagem é conseguida e até mesmo inventiva em determinadas cenas, mas, apesar de todo o esforço óbvio, consegue nos lembrar de outras tentativas melhores de temas e imagens semelhantes”, citando o thriller de 2001 de Claire Denis, Trouble Every Day, “com a sua fusão de fantasmagórica da morte e do desejo”.

Nem todos partilham esta opinião, nomeadamente Wendy Ide do Guardian, autora de uma crítica de cinco estrelas a este filme, que diz que Ossos e Tudo é o culminar da filmografia de Guadagnino.

“A ligação entre comida e apetites eróticos remete a Eu Sou o Amor; os anseios dolorosamente românticos do primeiro amor são partilhados com Chama-me Pelo Teu Nome; os impulsos sinistros do género mostram as impressões digitais sangrentas de Suspiria”, argumenta, concluindo que “no elegante equilíbrio desses elementos aparentemente incongruentes, Guadagnino superou-se”.