2022, um balanço de leituras

A vida de Proust, a odisseia de Shackleton, um humanista do século XV, a beleza da Grande Guerra e a carta pungente de Oscar Wilde: um ano e uma mão-cheia de livros.

A uma semana de entrarmos em 2023, com este ano ‘velho’ a soltar o último fôlego, é para muitos chegada a hora de fazer um balanço das leituras que 2022 nos proporcionou. Socorro-me da lista onde vou deixando registo de todos os livros que leio da primeira à última página (por escrúpulo, não inscrevo aqueles que leio de forma mais relaxada) – e começo por constatar que não são tantos quantos gostaria.

Mas, se é verdade que não são muitos, pelo menos são quase todos bons, ou mesmo muito bons. Num relance, vejo títulos como a imponente biografia de Marcel Proust de Jean-Yves Tadié; Endurance, o clássico de Alfred Lansing sobre a odisseia de Ernest Shackleton na Antártida, em 1914-15; e A Grande Mudança, de Stephen Greenblatt, sobre a vida e descobertas do humanista Poggio Bracciolini na Europa do século XV. Uma viagem a Nápoles levou-me também a ler o que pude sobre Pompeia – mas sobre esse assunto prometi a mim mesmo que não voltaria a escrever, não fossem os meus leitores achar que começo a repetir-me.

A biografia de Proust impunha-se por em novembro de 2022 se celebrar o centenário da morte do grande escritor francês. Assim, nada como ler o maior especialista na sua vida e obra. Tadié revela-se à altura do seu objeto de estudo, com uma erudição, minúcia e argúcia inexcedíveis.

Quanto ao livro de Lansing, não sei o que me levou a pegar-lhe, mas certamente não me arrependi. A sobrevivência de Shackleton e dos seus homens naquela zona inóspita do planeta é uma das maiores proezas da força de vontade humana de que há memória, e Lansing reconstituiu os acontecimentos com um rigor e um colorido fora de série. O que comiam, como se protegiam do frio (muitas vezes sem sucesso), o que sofreram, como navegaram numa casquinha de noz num dos mares mais ventosos, agitados e temidos do globo, com ondas de 25 metros, tudo isso o autor nos transmite com uma vivacidade espantosa. Por coincidência, poucos dias depois de terminar a leitura de Endurance, o navio de Shackleton foi localizado nas águas geladas do Mar de Wedell. Está praticamente intacto.

A Grande Mudança foi um daqueles casos, que acontecem com alguma frequência, de um livro do que nunca ouvimos falar, com que nos cruzamos por acidente e com o qual percebemos de imediato existir uma afinidade especial. Trata de um italiano que no século XV andou pelos mosteiros da Europa à procura de manuscritos antigos e encontrou o De Rerum Natura, a obra perdida de Lucrécio. Pelo meio, o autor explica como eram produzidos os manuscritos, como eram guardados – e como muitos acabaram destruídos. Recordo em particular os da Biblioteca de Alexandria, que o califa Omar mandou queimar para aquecerem as águas dos banhos públicos da cidade…

Além dos acima mencionados, houve um livro que sobressaiu pela subtileza e riqueza de detalhes, testemunhos e contrastes, A Beleza e a Dor da Guerra, de Peter Englund. A escala e mortandade sem precedentes da II Guerra Mundial atiraram para segundo plano a Grande Guerra de 1914-18. Ler sobre este período foi descobrir uma Europa desaparecida, num conflito em que conviveram lado a lado o cavalheirismo, a brutalidade e a desumanidade das máquinas.

Deixo para último um livro que nunca esteve nos meus planos e que constituiu por isso uma surpresa: De profundis. Trata-se da carta que Oscar Wilde escreveu da prisão de Reading em 1897 ao seu antigo amante Alfred Douglas, recriminando-o pelos seus comportamentos de um egoísmo abjeto. É um documento extraordinário de um homem que tinha tido fama, dinheiro, uma vida de luxo, etc., e se vê numa triste cela despojado de tudo – dos bens, da posição social, do prestígio, da liberdade, da família, dos amigos e até da dignidade. Ao mesmo tempo, a sua situação permite-lhe ver o essencial e encontrar o verdadeiro sentido da vida. De profundis quer dizer ‘das profundezas’ e este relato sem dúvida que toca fundo.