A guerra voltou à Europa e está para durar

A invasão da Ucrânia pelas tropas russas trouxe a guerra de volta à Europa e ao Mundo no ano que finda, com todas as consequências sociais e económicas. E uma crise energética sem precedentes. E não há fim à vista.

Kiev e Moscovo vão trocando golpes no Donbass, enquanto esperam que a lama congele, por volta de fevereiro, preparando os reforços e abastecimentos de que precisam para voltar à ofensiva. A guerra está num impasse que seria inimaginável há 10 meses. As Forças Armadas russas, em tempos consideradas como as segundas melhores do planeta, apressam-se a construir trincheiras e fortificações umas atrás das outras para proteger parcos ganhos. Enquanto os generais ucranianos traçam planos para quebrar os invasores antes da chegada da primavera.

Antecipando o avanço de um novo exército que o Kremlin treina e tenta equipar para lançar contra a Ucrânia.  

Lutar durante o duro inverno  ucraniano não será fácil. Por um  lado, «as tropas ucranianas estão melhor equipadas para lidar com as condições», apontou Michael Kofman, um analista do think tank CNA especializado nas Forças Armadas russas. Ainda em outubro o Canadá anunciou que ia enviar quase meio milhão de artigos de equipamento para enfrentar o frio, sendo que o mais recente pacote de ajuda militar dos Estados Unidos inclui duzentos geradores para providenciar eletricidade às tropas. Por outro lado, «a Ucrânia provavelmente terá a tarefa mais difícil de levar a cabo operações ofensivas, enquanto os militares russos parecem preparar-se sobretudo para defender», explicou Kofman à Foreign Policy. 

Por agora, o último capítulo da guerra, os sucessivos assaltos russo a Bakhmut, parece estar a culminar, no sentido dos invasores já não terem capacidade de conseguir ganhos significativos neste ofensiva em Donetsk, tendo de fazer uma pausa operacional, avaliou o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla inglesa). Isso não quer dizer que os russos não continuem a recorrer à tática de atacar com pequenas unidades de infantaria, procurando dar uso aos recrutas apanhados na mobilização militar parcial de Putin ou aos prisioneiros alistados pela Wagner. Imagens de drone divulgadas pelas forças ucranianas ilustram o quão sangrento isso pode ser, havendo imagens de pouco mais de cinco soldados a a serem atirados num assalto desordeiro contra Novoselivske, em Lugansk, sem qualquer apoio, sendo estilhaçados ou postos em fuga pela artilharia dos ucranianos. 

Após Bakhmut ficar «coberta de sangue», após semanas atrozes em que não «não há hora em que o terrível rugido da artilharia não se oiça», como descreveu Volodymyr Zelensky no Telegram, o foco dos generais russos e ucranianos parece estar a passar para Lugansk.

«As forças russas parecem estar a preparar-se para um esforço decisivo no oblast de Lugansk, apesar de não ser claro se para operações defensivas ou ofensivas», lia-se num relatório desta semana do ISW, registando um tráfego pouco habitual de equipamento para a região.  E notando que os invasores tinham colocado no terreno artilharia termobárica.

Tratas-se de uma das armas mais aterrorizadoras à disposição do Kremlin, com uma explosão tão poderosa que consome o exigénio sufocando os defensores, sendo ideal para atingir fortificações. Já os ucranianos avançam em Lugansk, parecendo prestes a reconquistar Kreminna. 

O comando militar até fugiu da cidade, assim como a mão-de-obra vinda da Rússia, declarou o chefe da administração militar ucraniana de Lugansk, Serhiy Haidai «Os civis – médicos, equipas de reparação – todos pararam o seu trabalho e partiram para a Federação Russa e todo o trabalhado começado foi suspenso», explicou Haidai perante as câmaras da televisão ucraniana, citado pela CNN.

O administrador militar de Lugansk considerou a queda de Kreminna como podendo ser o início de um colapso da linha da frente russa. A cidade fica numa autoestrada crucial entre Svatove, um ponto crucial para a logística dos invasores, e Severodonetsk, a sul, cujo abastecimento ficaria em  risco. Abrindo portas a rápidos avanços ucranianos.

«Há duas perspetivas», frisou Haidai. «A primeira é ir para Starobilsk, que é o centro logístico da região de Lugansk. Quem quer que controle Starobilsk será capaz de de controlar a logística inteira da região de Lugansk com poder de fogo. Por outras palavras, não sobrará quase nenhuma estrada em que o inimigo possa mover pessoal ou equipamento sossegado», explicou. «A segunda direção é na direção de Rubizhne e Severodonetsk», apontou. «Isto seria no sentido de quebrar o agrupamento de tropas que agora está constantemente, a toda a hora, a avançar contra Bakhmut. Poderia ser partido em dois, tornando a defesa de Bakhmut mais fácil». 

Ou então, como já nos habituámos, a Ucrânia pode anunciar que vai atacar de um lado e avançar de surpresa noutro. Como se viu  no verão, quando apenas se falava de uma ofensiva contra Kherson e subitamente os militares ucraniano avançaram no sudeste de Kharkiv, uma região onde até então pouco se combatera, tomando Izyum, que fora transformada numa espécie de fortaleza a céu aberto pelos russos. O Governo de Kiev primeiro encheu esta região de agentes secretos, que abateram ou prenderam espiões russos, cegando o Kremlin. Depois foram acumulando discretamente tropas na região. Avançaram rapidamente, utilizando forças mecanizadas protegidas por uma concentração de defesas aéreas como sua ponta de lança. 

A vulnerabilidade nas linhas russas a sudeste de Kharkiv, após boa parte do contigente russo na região ser enviado para Kherson, do outro lado do país, foi detetada pelo general Oleksandr Syrsky, o comandante do exército. Fora-lhe pedido que arranjasse manobras de diversão para facilitar a ofensiva no sul, mas apercebeu-se que um ataque no sudeste de Kharkiv poderia ser muito mais que isso.

Syrsky reuniu-se numa posto de comando com os seus chefes de brigada, em agosto. Passando dias à volta de um mapa 3D da região, com quase 50 m2, para perceber que obstáculos iriam enfrentar.

«Na história da guerra houve muitos casos em que um ataque num eixo diversionário, ou seja, num eixo secundário, se transforma no eixo principal», relatou o general ao Washington Post. «As possibilidades estavam todas lá. O inimigo absolutamente não esperava que fossemos atacar no sítio exato onde demos o golpe principal». 
Dado que as autoridades militares ucranianas começam a falar publicamente de avançar no eixo Kreminna-Svatove, talvez em segredo estejam a olhar para outro lado. O mais óbvio seria na direção de Melitopol. Onde até contariam com apoio atrás das linhas inimigas, dado a cidade se ter tornado num ninho de guerrilheiros e sabotadores ucranianos. Fazem a vida dos ocupantes um inverno, obrigando-os a tirar tropas das trincheiras para policiar a região e montar postos de controlo. 

«Se fosses um comandante ucraniano a avaliar as tuas opções, um sitio verdadeiramente ambicioso para uma ofensiva ucraniana seria Melitopol», salientou Shashank Joshi, editor para Defesa do Economist. «Porque conseguiriam colocar os seus  lança-mísseis HIMARS  dentro de alcance das vias de abastecimento do território russo à Crimeia».

No verão até surgiram algumas notícias na imprensa internacional de que Zelensky estaria a insistir numa contraofensiva nessa direção, de Berdyansk ou até de Mariupol, mas que as chefias militares estavam céticas, dado saberem que isso custaria um preço elevado em vidas. No entanto, não espanta que os russos estejam a fortificar Melitopol com dentes de dragão – uma espécie de pirâmides de betão, desenhadas para travar veículos blindados – e a reforçar a sua guarnição.

Outro ponto da linha da frente potencialmente crucial no próximo ano poderá ser o cordão litoral de Kinburn, que cruza o Dnipro a jusante de Kherson. Sendo que ainda a semana passada fontes russas se gabaram de terem repelido assaltos ucranianos contra este cordão litoral, protegido por 4 km de mar e fortificado pelos russos. Já os ucraniano mantêm-se naquilo a que chamam de silêncio operacional quanto a Kinburn, sugerindo que algo se passa por aqui.
No entanto, a expetativa é que, acaso os ucranianos não consigam avanços significativos no inverno, «a ofensiva russa na primavera será chave», avisou Michael Clarke, vice-diretor do Strategic Studies Institute, à BBC. «Putin admitiu que cerca de 50 mil das tropas recém-mobilizadas já estão na frente. Os outros 250 mil estão a treinar para o próximo ano», lembrou.

Aí a Ucrânia precisará ainda mais do envio de equipamento mais avançado vindo da NATO. Havendo alguns sinais de crescente abertura de Washington a enviar material de guerra mais pesado, como caças e tanques topo de gama, dado ter finalmente cedido em enviar baterias de mísseis Patriot, considerados das mais eficazes defesas aéreas no planeta. Mas a Rússia não está parada, havendo notícia que tenta produzir domesticamente drones baratos, semelhantes aos Shahed-136 iranianos que tem usado, procurando ainda comprar a Teerão mísseis balísticos de curto e médio alcance, permitindo-lhe continuar a martelar a infraestrutura elétrica iraniana.