A Resignação do Papa

 Nesta semana, em que nos despedimos de Bento XVI, publico um artigo que escrevi há uma década, quando Sua Santidade resignou ao Trono de S. Pedro, considerando que se mantém actual e ajuda-nos a entender a sua decisão:

“Chegou ontem ao fim o pontificado de Bento XVI. Confesso que quando li as primeiras notícias respeitantes à sua resignação não quis acreditar na sua autenticação. A primeira ideia que me passou pela cabeça foi a de que seriam mais dos habituais mexericos, tão frequentes nos tempos que correm quando está em causa a Igreja Católica Apostólica Romana, e escritos, regra geral, pelos rotineiros agnósticos da nossa praça que muito gostam de opinar em matéria que desconhecem e na qual não se revêem.

Quando confrontado com a veracidade da decisão do Papa, fiquei estupefacto. Um Papa não resigna, não pode decidir, pura e simplesmente, ir-se embora! A sua eleição, na crença dos católicos, é divina, resultante independentemente da sua vontade. Não existem sequer antecedentes na história moderna da Igreja de um Papa terminar por sua vontade o seu pontificado. Gregório XII, no século XV, fê-lo apenas com a intenção de contribuir, com o seu gesto, para o fim do cisma que então dividia os católicos.

Li, então, alguns comentários elogiosos para com o suposto exemplo de Bento XVI, o qual aproximava os pontificados da prática política, em que os presidentes têm os seus mandatos limitados por via da lei. Falou-se na modernidade da Igreja e da sua aproximação à realidade actual.

Nada mais errado: um político, quando concorre a uma presidência qualquer, quere-a, acima de tudo. É por sua exclusiva vontade que se prontifica a exercer aquele cargo, em cuja eleição se empenha com todos os meios possíveis (incluindo, amiúde, os não legais…), estabelecendo alianças e compromissos indispensáveis para a concretização do seu objectivo. Direi mesmo, sem cair no exagero, vendendo a alma ao diabo na maioria dos casos.

Uma vez eleito tem que satisfazer a retribuição de favores inerentes à ascensão ao lugar que almejou, passando a representar, regra geral, não o universo de eleitores que o elegeu, mas sim os interesses dos que o ali colocaram, a eles devendo completa submissão. É por esta razão que os cargos políticos resultantes de eleição não são vitalícios, tendo-se estabelecido a imposição de limite temporal para minorar os eventuais danos que uma governação tendenciosa e parcial gera.

Com o chefe da Igreja Católica tudo é diferente, porque sendo a sua nomeação fruto do desejo de Deus, no acreditar dos que professam o cristianismo, apenas a Ele cabe decidir quando um pontificado chega ao fim, chamando, então, à sua presença aquele que O representa na terra. Foi com esta convicção, unanimemente reconhecida e por todos respeitada, que cresci no seio de uma educação assente nos valores que nos foram transmitidos por Cristo.

Por isso a resignação do Papa surpreendeu-me e, inicialmente, desiludiu-me. Tanto mais porque me habituei a admirar profundamente Bento XVI, pela sua riqueza espiritual e intelectual, a sua determinação na defesa da Fé, a sua bondade e a extraordinária inteligência que o catapultou para o nível dos maiores teólogos do cristianismo. Ratzinger é, sem dúvida, um dos grandes vultos da História contemporânea, constituindo para nós, os crentes em Deus, um privilégio imenso termos desfrutado do seu papado e dos ensinamentos que nos legou.

Mas depois do choque inicial procurei compreender a sua atitude à luz da evolução natural do mundo actual. As últimas décadas trouxeram mudanças radicais na sociedade em que vivemos, a um ritmo a que jamais se assistira, modificando mentalidades e tornando a descrença em tudo numa das principais características do ser humano deste ainda novo milénio. A Fé não escapa a esta hecatombe cultural, tornando-se gradualmente uma realidade o afastamento dos povos, principalmente do mundo ocidental, da religião até então por eles professada.

João Paulo II compreendeu este fenómeno melhor que ninguém, procurando combater o cepticismo em Deus através do contacto directo com os fiéis. Tornou-se, assim, no Papa peregrino, percorrendo os quatro cantos da terra na expectativa da sua palavra contribuir decisivamente para o renascer da Fé. O Papa deixou de estar fechado entre muros do Vaticano, passando a estar junto do seu rebanho, sentindo-o e partilhando com ele os seus próprios sentimentos.

O Sumo Pontifício mostrou-se mais humano e até na doença entendeu por bem expô-la, ao invés de se resguardar, tornando públicas não apenas as suas virtudes mas também as suas fraquezas. No fundo quis vincar a sua natureza humana, deixando claro ser simplesmente mais um homem entre os homens, apenas detentor de uma missão que unicamente é confiada a um deles.

É esta postura de Karol Wojtyla que está na génese da popularidade que soube conquistar tanto dentro como fora da Igreja.

Bento XVI assimilou na perfeição a mensagem do seu predecessor, a de que o chefe da Igreja Católica tem que ser simultaneamente o primeiro dos peregrinos, devendo, para poder cabalmente cumprir essa incumbência, estar fisicamente apto para viajar até qualquer parte habitável do planeta.

Ao anunciar a sua resignação, Bento XVI invocou não motivos de saúde, mas sim o cansaço, consequência da sua idade avançada. Ou seja, o Papa veio confessar já não possuir forças para continuar a ser um peregrino, deixando, por essa razão, de ter condições para prosseguir o seu pontificado. Entendeu Sua Santidade que outro homem, mais novo e com maior vigor físico, deveria continuar a sua obra e empenhar-se em espalhar a palavra do evangelho pela humanidade.

Com este gesto Bento XVI provou, mais uma vez, a sua enorme grandeza. Em primeiro lugar está o bem da Igreja, visto como garante da defesa do bem comum, da valorização humana e da concórdia entre os povos, desvalorizando as honrarias inerentes ao poder espiritual de que foi investido. Abdica do exercício da autoridade para se converter num simples monge, recolhido ao interior de um mosteiro, onde continuará o seu trabalho de homem de Deus, mas exclusivamente através do uso da oração.

De imediato ao anúncio da sua decisão, se ouviram toda uma panóplia de comentários fazendo a analogia entre a opção assumida por este Papa e aquela que o seu antecessor seguiu quando, minado pela doença que o debilitava fisicamente, entendeu levar o seu pontificado até ao fim.

Uma vez mais nada mais errado, porque se parte de premissas distintas. A única doença de Bento XVI é a velhice! Conforme confirmou a Santa Sé, e razão nenhuma nos pode fazer duvidar da veracidade deste relato, nada de mal se passa com a sua saúde, pelo que, sobretudo atendendo ao prolongamento da vida que os avanços da medicina conseguem obter, o Papa poderá viver tempo demasiado para que a sua fragilidade não venha a afectar negativamente o normal funcionamento da Igreja.

João Paulo II, ao contrário, sabia que o seu fim terreno estava próximo. A doença que o atormentava, e sem dúvida o mantinha em permanente sofrimento, não lhe permitia qualquer esperança de viver mais algum tempo e por essa razão resolveu aguardar que Deus o chamasse à sua presença, aguentado estoicamente o tormento que a enfermidade lhe provocava.

O seu padecimento, acautelando-se as devidas comparações, em parte aproximou-se do martírio de Cristo, que quis sofrer pela redenção dos homens. A dor física, visível nas suas feições, humanizou o Papa beato e serviu de exemplo a milhões de doentes que, apesar de também viverem em sofrimento permanente, se vêem obrigados a continuar a trabalhar para garantir o seu sustento.

Considerando estas diferenças, aceita-se perfeitamente que os dois anteriores Sumos Pontífices tenham optado por caminhos distintos. No entanto, e sem deixar de compreender a necessidade e a legitimidade da decisão de Bento XVI, receio que no futuro dois possíveis cenários possam condicionar negativamente esta resignação. O primeiro tem a ver com o legado deste Papa, porque, eventualmente, ficará principalmente conhecido para a História como o primeiro Chefe da Igreja Católica que em 600 anos interrompeu, ainda em vida, se bem que voluntariamente, o seu papado.

Correremos o risco de que toda a sua riquíssima obra em prol do cristianismo e, consequentemente, da humanidade, tanto durante o período do seu pontificado como a desenvolvida ao longo de toda uma vida de dedicação a Cristo, venha a ser desvalorizada.

O segundo, de consequências bem mais gravosas, se ocorrer, poderá verificar-se se um Papa, sem a estrutura moral e a férrea determinação deste, não resista a eventuais pressões, sobretudo às vindas do exterior da Igreja, e ceda injustificadamente a estas.

Trata-se, na verdade, de um possível cenário que não pode ser descartado. No campo político é frequente assistir-se à pressão mediática exercida sobre os titulares de funções de governação para que se demitam, sem cumprirem integralmente o mandato para que foram eleitos.

Até agora o papado tem estado imune a esse fenómeno o qual, quando não consegue concretizar o seu objectivo, pelo menos desgasta física e psicologicamente o visado, e por uma simples razão: é que um Papa não se demite, porque é detentor de um cargo vitalício a que somente a morte pode pôr fim.

Abriu-se agora um precedente que no futuro, e Deus disso nos livre, poder-se-á transformar numa autêntica Caixa de Pandora. Mas o Papa, com a sua superior e reconhecida inteligência, certamente que ponderou estes riscos e mesmo assim preferiu a solução da resignação, naturalmente por a entender como a que melhor serve o bem da Igreja.

Para terminar, devo confessar que um outro receio me tem atormentado bastante mais. E se a resignação do Papa tiver como base não a impossibilidade de prosseguir a sua acção pastoral como peregrino, mas sim por se ver confrontado com a ausência de força física suficiente para enfrentar conflitos de interesses instalados dentro do Vaticano?

Esta minha desconfiança não se baseia em insistentes opiniões vinculadas pela comunicação social, que até um pretenso lóbi gay veio invocar, mas sim em declarações do próprio Papa. No seu discurso de resignação, Bento XVI denunciou abertamente divisões no seio da Igreja e já antes, curiosamente na viagem que o trouxe ao nosso País, disse-nos que os maiores inimigos da Igreja estão dentro dela.

A Igreja é feita de homens comuns, com as virtudes e os defeitos que caracterizam a raça humana, não estando, em virtude disso, imune a que dentro de si orbitem gente sem escrúpulos e pouco devotas a Deus. Essas pessoas, que quero acreditar serem uma minoria significativa, têm provocado pesadas mossas na imagem da Igreja, as quais têm sido sabiamente aproveitados pelos inimigos desta.

O Papa tem vindo a alertar para os males causados por estas ovelhas que se afastaram do rebanho, tendo, contrariamente ao difamatoriamente denunciado pelos usuais comentadores de serviço, vindo a agir com mão pesada para com aqueles que prevaricam. Ao longo dos oito anos do seu pontificado Bento XVI demitiu mais de oitenta bispos, facto que atesta a sua determinação em procurar erradicar os pecados da Igreja.

Rogo a Deus para que os tentáculos destes clérigos pouco cristãos não se tenham espalhado dentro da Santa Sé, ao ponto do Santo Padre se considerar impotente para os vergar através da autoridade papal, cedendo essa missão a outro que se revele mais capaz e consagrando-se exclusivamente à oração para obter a purificação da Igreja.

Se assim for, que Deus ouça as suas preces!

 

1 de Março de 2013”

 Pedro Ochôa