Os Bons Funcionários Públicos e os Maus ‘Funcionários’ Privados

Certamente já todos sentimos na pele que na administração pública, em geral, não se cumprem prazos mas o cidadão ou a empresa, tem inevitavelmente de cumprir, caso contrário está “lixado”. Isto tem de acabar. Isto não é de países democráticos mas sim autocráticos.

por José Bourdain

Terminei o ano denunciando situações graves na Saúde em Portugal e fi-lo com humor. Começo o ano a falar a sério é tempo de sermos francos, frontais e directos para conseguirmos resolver os nossos problemas colectivamente.

Há um mal-estar crescente e uma divisão acentuada na nossa sociedade, promovida pelos partidos de esquerda e pelos governos PS, com e sem geringonça, a qual tem de ser travada, a bem do País e dos seus cidadãos, sob pena do problema agravar-se em demasia e podermos vir a ter problemas ainda mais sérios.

A divisão a que me refiro prende-se com o discurso e prática generalizada de que tudo o que é público é bom, o que é privado é mau. Os funcionários públicos são todos bons, os trabalhadores do privado são todos péssimos e incompetentes. Como se não fossemos todos cidadãos portugueses, com os mesmos deveres e igualdade de direitos. O nosso País afasta-se a passos largos da desejada democracia. E isto nota-se sobretudo no sector da saúde.

Nas Unidades de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) chegam-nos pessoas vindas dos hospitais públicos num estado lastimável de falta de cuidados básicos e a maioria instável, do ponto de vista clínico, ou seja, ainda na fase aguda, quando supostamente a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), não foi criada para internamentos agudos. Pessoas com mais de 10 úlceras de pressão (as designadas escaras ou feridas abertas no corpo, buracos), que se vê que não tomam banho nem têm cuidados de higiene há imenso tempo, com cabelos e unhas gigantes. Além da saúde destas pessoas, está igualmente em causa a sua dignidade. Sucedem casos atrás de casos, em que os médicos dos hospitais são desagradáveis e ofensivos com os seus colegas das UCCI (e também dos lares), acusando-os muitas vezes daquilo que no fundo é pura incompetência própria ou dos seus colegas do público. Dou apenas 2 exemplos: Num caso chegou um doente a uma UCCI com várias úlceras de pressão vindo do hospital A. No dia seguinte, por agudização do seu quadro clínico, foi enviado ao serviço de urgência do hospital B. Liga um médico do hospital B a descompor a médica da UCCI, ameaçando que faria queixa no Ministério Público, por maus-tratos ao doente. Pena que não o tivesse feito pois estaria a denunciar maus-tratos feitos num hospital público. Outra situação foi um doente que agudizou, saiu de uma UCCI e foi à urgência do hospital A. Esteve lá 2 dias e foi transferido para o hospital B. O médico do hospital B, liga para a médica da UCCI a destratá-la e a dizer que o estado do doente se devia à troca de medicação, pois julgava que este tinha ido directo da UCCI para o hospital B. Quando a médica da UCCI lhe explicou a situação, o seu colega do hospital B, desligou-lhe o telefone “na cara” (pois claramente percebeu que estavam em causa colegas seus de um outro hospital público e que não tinha qualquer razão). Há imensas situações semelhantes a estas, como aquela que escrevi no artigo anterior, de uma análise à urina a um doente que não urina há 1 ano.

Nas UCCI, conseguimos todos entender a pressão, a desorganização, a falta de condições a que os profissionais estão sujeitos, pois sentimos o mesmo, fruto de um subfinanciamento (que apesar de tudo, o sector público não tem) que nos leva ao encerramento de camas (207 entre 2021 e 2022) e nos retira condições, nomeadamente de recursos humanos, os quais fogem dos cuidados continuados. Mas não é libertando em cima de nós as culpas, próprias ou de colegas, que se resolvem os problemas. Um médico de uma UCCI ou de um Lar tem a mesma carteira profissional que um seu congénere no sector público e muitos deles até têm mais experiência e conhecimentos e não podem ser tratados desta maneira. O mesmo relativamente a todos os outros profissionais de saúde.

A administração pública em geral, e em particular no sector da saúde, trata-nos de “cima para baixo”, como se fossemos seus servos ou mesmo escravos e tivéssemos de fazer tudo como querem; grande parte das vezes sem respeito, com ameaças de represálias, colocando os doentes e familiares contra nós, etc. Certamente já todos sentimos na pele que na administração pública, em geral, não se cumprem prazos mas o cidadão ou a empresa, tem inevitavelmente de cumprir, caso contrário está “lixado”. Isto tem de acabar. Isto não é de países democráticos mas sim autocráticos.

Outra situação gravíssima é a pressão exercida sobre doentes e familiares, para que os doentes vão para casa quando têm todos os critérios clínicos para ingressar numa UCCI. Não admira que, com esta prática, as estatísticas oficiais (relatório da ERS de Outubro/2022) mostrem que a lista de espera para ingressar em cuidados continuados tenha aumentado apenas 1,16%. O mesmo relatório diz que a lista de espera em 2022 diminuiu 23,21% face a 2019. Mas depois, menos de um mês após este relatório, surge um outro (Novembro/2022) da Convenção Nacional de Saúde (CNS) que nos diz que a lista de espera afinal subiu 88% (diferença de mais de 100%) face a 2019. Há aqui qualquer coisa de muito errado nestes números e pela nossa experiência e análise, a realidade estará no relatório da CNS. No entanto, o mais grave é sonegar direitos aos cidadãos que lhes estão consagrados na Constituição, impedindo-os de aceder à RNCCI, e pior, sonegar-lhes os cuidados de saúde que precisam.

Doentes e familiares sentem-se desesperados e sentem-se a mais neste País, cuja governação e uma parte do sector público, apenas precisa deles para trabalhar e pagar impostos. Mas no dia em que precisam daquilo para o qual contribuíram, são despachados para aguentar e morrer em casa, muitas das vezes sem medicação e com um sofrimento horrível.

Este tipo de coisas têm de acabar e o Ministério Público, a Comissão de Saúde da AR e outros órgãos têm de actuar. A ANCC já fez chegar estas denúncias aos sítios próprios mas ninguém actua, infelizmente, nem mesmo o Senhor Presidente da República, que simplesmente não quer saber, nem se digna a receber-nos (e já tentámos por diversas vezes desde Julho de 2017). Igualmente, os tutelares da Pasta da Saúde não nos recebem e os representantes do sector social, com excepção da Confecoop, igualmente não denunciam estas coisas. A comunicação social não se interessa pelas denúncias que fazemos, não lhes dá a atenção devida, qualquer jogo de futebol é mais importante debater durante horas, do que discutir os problemas do nosso País.

Há que discutir e resolver estas e outras situações igualmente graves. E isso faz-se também com o pouco dinheiro dos nossos impostos, o qual deveria ser aplicado correctamente. A título de exemplo, as PPP na saúde, que reconhecidamente funcionam bem, poupam dinheiro ao Estado e prestam um melhor serviço ao cidadão, por comparação com a gestão pública; acabam-se com elas por preconceito ideológico. As PPP rodoviárias que nos levam cerca de mil e quinhentos milhões de euros por ano continuam firmes e com aumentos em Janeiro de 2023 de mais de 7%, por contraste com os Cuidados Continuados cuja portaria publicada em Novembro de 2022, vem dizer que não terão qualquer aumento em 2023, com base na elevada inflação de 2022 (e que infelizmente se manterá em 2023).

Muito fazemos nós, com pouco, nas UCCI. Mas há um limite e está a chegar ao fim. Haverá mais Unidades de Cuidados Continuados a fechar. E sem elas o SNS colapsa.

Caros(as) compatriotas, desTAPem os olhos.

José Bourdain (mau “funcionário” privado e Presidente da ANCC)