Bento XVI O teólogo dos sapatos vermelhos

Parecia frágil, mas viveu até aos 95 anos; era considerado frio, mas na visita a Portugal, numa fase turbulenta do seu pontificado, mostrou-se caloroso e próximo. Acusado de pactuar com a pedofilia, expulsou 384 padres por causa de abusos.

Bento XVI O teólogo dos sapatos vermelhos

Os últimos três anos tinham sido especialmente desgastantes, marcados por polémicas sucessivas, dos abusos sexuais cometidos por padres ao escândalo que ficaria conhecido como Vatileaks, quando o próprio mordomo do Papa passou à imprensa italiana documentos comprometedores que indiciavam práticas de corrupção e lutas de facções no coração da Igreja Católica. Em 2010, o próprio chefe do Banco do Vaticano, Ettore Gotti Tedeschi, fora alvo de uma investigação por suspeitas de branqueamento de capitais. Ninguém conseguia explicar a origem de 23 milhões de euros detetados numa conta, que foram de imediato congelados pelas autoridades. Para se precaver, Gotti (que curiosamente partilha o apelido com um célebre chefe da máfia de Nova Iorque) deixara duas cópias das suas memórias junto de amigos, com um aviso:«Se me matarem, o motivo da minha morte está aqui».

Bento XVI estava habituado a discutir questões de fé e a montar uma argumentação à prova de bala quando se tratava do debate teológico. Mas sentiu-se impotente para lidar com os problemas mundanos que lhe chegavam de todos os lados. Ainda assim, não ficou de braços cruzados. Acusado de ser conivente com os abusos, ele próprio reconheceu: «Omaior fardo para a Igreja não vem dos inimigos de fora, mas nasce dos pecados cometidos no seio da Igreja». Em conformidade, entre 2011 e 2012 expulsou nada menos do que 384 padres pedófilos das suas funções. Quanto aos crimes financeiros, criou uma entidade para supervisionar o Banco do Vaticano e garantir que este cumpria com as melhores práticas financeiras estipuladas pela União Europeia.Com 85 anos e quase oito de pontificado, estava esgotado. E a 10 de fevereiro de 2013 fez aquilo que muitos não achavam sequer possível: anunciou a sua resignação.

«Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste acto, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005, pelo que, a partir de 28 de Fevereiro de 2013, às 20h00 horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e deverá ser convocado, por aqueles a quem tal compete, o Conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice».

O mundo ficou em choque. Estava ainda bem presente o exemplo de João Paulo II, que no final da vida, já muito debilitado pelo Parkinson, carregara a tiara papal como quem carrega uma cruz. Desde a renúncia de Gregório XII em julho de 1415, na sequência do atribulado concílio de Constança – onde outro Papa, João XXIII, foi detido e acusado de crimes como sodomia, assédio e assassínio –, que não se via nada assim.

Menos de um mês depois dessa declaração, ao fim do segundo dia de conclave, 13 de março, saía fumo branco da modesta chaminé metálica instalada no telhado da Capela Sistina e ouviam-se os sinos da basílica de S. Pedro. Com a eleição de Francisco iniciava-se um novo capítulo no Vaticano.

Da infância a ‘Grande Inquisidor’

Joseph Aloisius Ratzinger nasceu a 16 de abril de 1927 em Marktl, uma pequena povoação à beira do rio Inn, na Baviera. Filho de um polícia e de uma cozinheira profundamente católicos, a casa onde passou a infância é hoje um museu.

Tinha apenas cinco anos quando os nazis chegaram ao poder em janeiro de 1933. Chegou a ser divulgado que ele próprio pertenceu à Juventude Hitleriana, uma informação que seria desmentida com veemência pelo Vaticano em 2009. Na realidade, a sua família estaria na oposição ao regime.

Em 1939, o ano em que estalou a II Guerra Mundial, entrou para o seminário. Viria a ser mobilizado para o exército em 1943, sendo colocado numa unidade de defesa da Força Aérea, ao que se seguiu uma experiência na Hungria a colocar armadilhas para blindados.

«Durante um curto período, o jovem Ratzinger foi detido pelos americanos no final da guerra, sendo depois libertado para voltar ao seminário», esclareceria, décadas mais tarde, um porta-voz do Vaticano.

Ordenado padre em junho de 1951, logo dois anos depois obtinha o doutoramento em Teologia na Universidade de Munique. Deu aulas em Freising, Bona, Münster e Regensburg. A convite do seu amigo Hans Küng também lecionou em Tübingen.

Como viria a demonstrar no Concílio Vaticano Segundo (1962-65), onde advogou vigorosas reformas, era então um jovem teólogo brilhante, enérgico e progressista. E logo em 1968 começou a publicar importantes trabalhos de doutrina cristã. D. José Policarpo, o cardeal patriarca de Lisboa, viria a descrevê-lo assim: «Conheço-o há muito tempo. É um tímido, de uma sensibilidade enorme, e um gigante do ponto de vista cultural. É uma das cabeças mais brilhantes do século XXI e, sem dúvida, está entre os maiores teólogos da história da Igreja», como refere José de Carvalho em Bento XVI em Portugal (ed. Farol).

Mas esse progressismo estava prestes a diluir-se. Aparentemente, o que viu na Universidade de Tübingen (ecos da revolta dos estudantes franceses de maio de 68) provocou nele uma profunda impressão. Anthony McCarten, em O Papa – Bento XVI, Francisco e a decisão que chocou o mundo (ed. Objectiva), refere a «mudança que levaria o liberal ‘Ratzinger I’ a transformar-se no conservador ‘Ratzinger II’».

Ninguém ficou tão surpreendido com essa viragem como o seu velho amigo Hans Küng : «Continuamos sem saber de que forma um teólogo tão talentoso, simpático e aberto como Joseph Ratzinger sofreu uma transfiguração desta natureza, como é que o teólogo progressista de Tübingen se transformou no Grande Inquisidor Romano», acusaria. Ratzinger e Küng haveriam de tornar-se inimigos figadais.

Reforma negada

A ascensão foi muito rápida. Em 1977 Paulo VI confiou ao brilhante teólogo o arcebispado de Munique e Freising. Três meses depois, Ratzinger recebia a púrpura cardinalícia. E, no final de 1981, era nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, posição a partir da qual devia irradiar e fazer cumprir a ortodoxia. Com visões muito próximas da Igreja e do seu papel na sociedade, oão Paulo II, o Papa polaco que contribuiu para a queda do comunismo, e Ratzinger tornaram-se unha com carne. Se João Paulo II condenou o uso do preservativo, Ratzinger, numa carta aos bispos datada de 1986, referiu-se à homossexualidade como um «distúrbio moral». Ferozmente anti-marxista, ficou conhecido também pela sua oposição à teologia da libertação (um movimento originário da América latina que preconiza a libertação dos oprimidos).

«Em 1991, após dez árduos anos a assegurar a execução da doutrina, Ratzinger sofreu um AVC, que acabou por lhe afectar a vista esquerda. Agora com 64 anos, o cardeal que tivera sempre alguns problemas de saúde, pediu a João Paulo II que o dispensasse do cargo de prefeito e lhe permitisse regressar à Alemanha, para se dedicar novamente à escrita, mas o seu pedido foi indeferido», escreve McCarten no livro citado. «Volvido um ano, em 1992, Ratzinger desmaiou nos seus aposentos, abriu a cabeça ao bater num aquecedor e teve de ser novamente hospitalizado, para lhe suturarem o golpe».

Não só não era libertado como as responsabilidades se acumulavam, o que culminaria com a eleição ‘natural’ – mas ao mesmo tempo surpreendente – do delfim de João Paulo II como Papa em 2005. Por causa das suas posições – e do seu apelido, naturalmente – chegaram a chamar-lhe ‘o Rottweiler de Deus’. Nas suas primeiras aparições, fizeram furor os sapatos vermelhos, tipo mocassim. Mesmo não sendo da marca Prada, como se chegou a dizer, tornaram-se sinónimo de requinte máximo e foram considerados ‘acessório do ano’ pela Esquire em 2007. Note-se que os sapatos vermelhos não eram uma novidade no Vaticano:há séculos que os Papas os usavam.

De Pontifex às últimas palavras

Pontifex significa ‘construtor de pontes’, e Bento tentou estabelecer pontes com outras religiões, nomeadamente com o Judaísmo e o Islão. Também esse diálogo foi marcado por controvérsias e mal-entendidos; ainda assim, ficou para a posteridade o momento em 2006 em que orou em silêncio na Mesquita Azul de Istambul, ao lado de altos clérigos muçulmanos, durante a visita à Turquia.

Se tinha imagem de homem frio e distante, acentuada pelos seus pergaminhos intelectuais, ela desfez-se por completo durante a visita a Portugal, em maio de 2010, um ano após a canonização D. Nuno Álvares Pereira. Cerca de 500 mil fiéis terão acorrido a Fátima para assistir à missa na praça do Santuário. José de Carvalho menciona no seu livro que José Sócrates, então primeiro-ministro, para acentuar a sua laicidade, tratou o Papa por Sua Eminência em vez de por Sua Santidade. O que não impediu Bento de confidenciar aos seus próximos: «Deus tem uma preferência por Portugal».

Apesar do seu desejo, vinte anos antes, de regressar à Alemanha, após a abdicação o Papa emérito continuou a viver no Vaticano. Oseu dia começava às 7h45 com a ida à missa, e envolvia «oração, leituras, estudo e troca de correspondência», como revelava o seu secretário pessoal, Georg Gänswein. Gostava de tocar piano – Mozart era o seu favorito – e nos aniversários recebia a visita do irmão, também padre como ele, e de amigos bávaros, com quem bebia uma caneca de cerveja. Aos 90 anos andava com a ajuda de um andarilho.

Dada a sua idade avançada, o pedido de Francisco aos crentes para que rezassem pelo Papa emérito não foi motivo de surpresa: «Está muito doente». A 30 de dezembro, os médicos anunciaram que a morte de Ratzinger se aproximava – era uma questão de horas. Chegou no último dia do ano. Segundo o relato de um enfermeiro, as suas últimas palavras foram:«Senhor, amo-te». Em italiano.