Pelé: Crónica de um tempo em que nos tratávamos por tu

Durante muitos anos cruzei-me com Edson Arantes do Nascimento (por extenso Pelé, como dizia Nelson Rodrigues) e muitas foram as histórias que fui guardando daquele que foi – nem sequer vou discutir! – o melhor jogador de futebol de todos os tempos que já foram e hão de vir.

Em Junho de 1970 eu tinha seis anos de idade e vivia em Santa Cruz, na Madeira, o lugar que será sempre para mim o ponto mais alto da ternura. Em Junho de 1970, Edson Arantes do Nascimento (por extenso Pelé, como escrevia Nelson Rodrigues) tinha mais 23 anos do que eu e atingiu o ponto mais alto da arte de ser impossível. Santo da Serra: era para lá que o meu pai conduzia o Morris 850 verde escuro. Eu ia com ele. E ele falava-me de Pelé como se recitasse um poema. De certa forma foi aí que conheci Pelé. E fiquei a conhecê-lo para sempre.

A televisão na Madeira de 1970 praticamente não existia, ARTP chegava à ilha em tremeliques. Impunha-se a Televisão das Canárias. Quem queria ver os jogos do Campeonato do Mundo do México punha-se a caminho do Santo da Serra e, num café cujo nome me esqueci, havia Pelé e Tostão, e Jairzinho e Rivelino, e Clodoaldo e Gerson: a perfeição que nem Deus, se é que existe, conseguiu contrariar. Porque, como escreveu um dia Luís Fernando Veríssimo, as tabelinhas entre Pelé e Tostão são a melhor prova de existência de um ser divino.

Eu não tinha ainda idade para perceber que, naquele ecrã arredondado que, volta e meia, começava a brotar risquinhas horizontais de cima para baixo, estava a suceder algo de único e irrepetível. Sei que não havia mais garotos da minha idade e que, de quando em vez, trocava o jogo para enfileirar carrinhos da Corgy Toys e conduzi-los nos caminhos de uma memória que, mais cedo ou mais tarde, se irá perder. De tempos a tempos, os homens em redor da mesa com uns copos de cerveja e ns prato de burriés em cima, soltavam exclamações capazes de me bulirem com o sistema nervoso e abrir muito os olhos para ver aqueles homens de camisolas amarelas que eram apenas a branco e preto e decorar os seus nomes. Clodoaldo e Gerson, no meio;Rivelino e Jairzinho, nas pontas; Tostão e Pelé, na frente. Pelé, sobretudo Pelé. Via-o saltar, feroz como uma pantera, devastando defesas com golpes de cabeça. E os remates fulminantes de Rivelino. E a velocidade de Jairzinho à mistura com o talento inteligente de Tostão. Vi e não vi tudo isso. Vi com os olhos de criança e fiquei com o ambiente preso cá dentro de adulto, isto é, uma mistura inseparável de verdade e de imaginação. Pois. Nessa altura eu praticamente não sabia nada sobre a vida, quanto mais sobre o futuro. Não sabia que iria crescer e ficar mais alto do que Pelé, por exemplo. Logo aquele Pelé que era um gigante, um Mercúrio negro de asas nos pés que levantava voo para os braços ternos da eternidade.

Até o que não fez

É sempre difícil tratar um brasileiro por tu. Ele responde com outro tu mas não tarda muito e volta ao você. Numa altura qualquer da minha vida profissional, depois de me ter cruzado com Pelé por diversas vezes, ora em eventos comerciais e de publicidade que lhe valiam uns milhões, ora para lhe fazer entrevistas, tratei-o por tu. Detesto tratar gente por você. Sou mais como os espanhóis. E ele respondia ao tu com tu até deixar de ser tu e ser outra vez você. Ouvi da sua voz em si-bemol, tantas vezes tão baixa e grossa que praticamente não a ouvia, histórias da sua vida, da sua carreira, do futebol e do mundo do futebol. Para mim eram lições. Não se pode estar a escutar histórias contadas pelo melhor jogador do mundo de todos os tempos (nem vou discutir esta opinião e, já agora, estou-me nas tintas para todas as outras em contrário!) e não estar ali, a babar pelos cantos da boca com a necessidade de ouvir mais e aprender com elas.

Tudo quanto é pé-rapado já escreveu sobre Pelé. Tudo quanto é meia-tijela já falou sobre o que Pelé fez e não fez. Porque Pelé não se resumiu aos golos que marcou, foi também enorme naqueles golos que não marcou, e só no México, em 1970, foram três. Um quase de antes da linha de meio-campo, contra a Checoslováquia, com a bola a sobrevoar o guarda-redes Victor, um desesperado Victor, e a cair em seguida, de repente, apenas um pouco por cima da barra. Pode lá haver não-golo mais golo do que esse?! Pois, por acaso até pode. Frente aoUruguai, Pelé vai isolado para uma bola, só o keeper uruguaio pode chegar a ela mais depressa que Pelé. Então, Sérgio Rodrigues começou a escrever como se estivéssemos na velha sala do cinema Paris com os olhos presos à tela onde passa um filme chamado Dois Homens e Um Destino: «Nosso instinto diz que o Pelé vai chegar antes do Mazurka, não diz? Mas vai ser por pouco. O quíper uruguaio faz o que pode, entra no semicírculo um milésimo de segundo antes do Pelé, mas não a tempo de interceptar a bola. Esta fica entre os dois e nós voltamos a sentir, como o Mazurka também sente, que está mais para o negão que vem no embalo. O que o bom goleiro da Celeste faz é se ajoelhar e, mesmo já estando fora da área, que remédio, abrir os braços. Só pode rezar para que o brasileiro não faça o que um jogador da envergadura dele provavelmente vai preferir fazer, isto é, cortar o goleiro para a esquerda, coisa fácil na passada em que vem, movimento que levaria a das duas, uma: ou o goleiro agarrar faltosamente as pernas do Pelé ou o Pelé concluir de canhota para o gol aberto ou quase, defendido só pelo zagueiro que, não demora, vai entrar no quadro esbaforido feito quem está prestes a perder o último trem e acabar às cambalhotas pelo chão. A bola é passada pelo Tostão e, aí é que está, Pelé já é Pelé. Está farto de saber que é um mito, um semideus, o que tem a perder tentando ser um deus completo? Aí ele não faz o certo, faz o sublime. Troca o caminho batido do gol, o gol certo que tinha feito tantas vezes, pelo incerto que, como veremos, jamais faria. Na sua recusa em tocar na bola feito um Bartleby súbito, diz, Pelé refinou o futebol à sua essência mais rarefeita. O futebol virou ideia pura e de repente homens, bola, ninguém mais se comportava como seria de esperar que se comportasse neste mundo vão. Apanhado de surpresa como todos nós, o pobre Mazurka vê a bola passar à sua esquerda e ir cortar feito faca o filé direito da grande área, enquanto Pelé é um flash auriceleste que chispa para o lado oposto». Sim, sim, já sabemos todos como a coisa acabou, e se não sabem vão ver, agora todas as imagens estão guardadas em toda a parte. Pelé rodeou Mazurkiewicz e chutou para a baliza vazia rodando sobre si próprio numa espiral inevitável por via da velocidade que impusera a si mesmo, para aí de 300 mil quilómetros por hora que é a velocidade da luz, e se não foi essa foi ligeiramente, muito ligeiramente menor. «Difícil não é marcar 1000 golos como Pelé. Difícil é marcar um golo como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que diabolicamente, não se deixa fazer», escreveu, por sua vez, Drummond de Andrade. Pois é, Carlos, pois é. Difícil é falhar um golo como Pelé mesmo que só uma besta de 128 patas possa ter a ideia de classificar uma obra de arte, daquelas que devia estar dependurada nas paredes do Louvre, junto aos quadros de David, de falhanço.

Sérgio Rodrigues disse quePelé desafiou Deus e perdeu. Opinião dele! Eu acho que ganhou e de goleada – afinal quem é Deus? Há algum aí que me leia e consiga responder, assim num instante, quem é esse Deus, senhor do céu e da terra, que nos fez a todos à sua imagem e semelhança? Logo vi, logo vi. Não escuto uma única voz. Mas, se por outro lado, perguntar por aí, de porta em porta, quem é Pelé, todos me dirão que foi o rapazinho capaz de tratar Da Vinci e Dante por colega, para usar a expressão de Nelson Rodrigues, esse Homero de Pelé, o prosador que maiores versos foi capaz de escrever em redor do seu talento.

Estou noSanto da Serra. 667 metros de altitude que é aí que se apanham as ondas que, decifradas pelo aparelho velho, nos trazem Pelé em toda a sua glória para a passadeira rolante que se estende na frente dos nossos olhos. A primeira vez que estive com Pelé, ao vivo e a cores – o Mundial de 1970 foi absolutamente a branco e preto nesse lugarzinho do arquipélago da Madeira para onde o meu pai foi enviado para cumprir o seu desígnio de magistrado sem igual – disse-lhe, cara a cara: «Edson. Se me tivessem garantido que você era mais baixo do que eu, não acreditava. Sempre o achei um gigante!». Era ainda nos primórdios dos vocês antes dos tu. Ele sorriu: «Nem imagina o que tive de trabalhar com um médico fantástico chamado Hilton Gosling e com um fisioterapeuta chamado Mário Américo para deixar de ser um enfezado de 60 quilos e poder correr e saltar mais do que todo aquele mundão de defesas que vinham direitos a mim como um pelotão de fuzilamento. Foi o Mário, meu querido Mário, que me garantiu, mal chegou ao Santos:“Escuta crioulo, vou fazer com que fiques perfeito!” Exagero dele, vá». Exagero como, se Pelé atingiu a perfeição. E tal como estou aqui para vos dizer, do fundo do coração, que não amigos meus, se vos disserem quePelé morreu não acreditem, Pelé é imortal como todos os deuses, também digo que ele foi a pedra filosofal da perfeição no jogo que entendeu como ninguém em todas as suas facetas. Não foi por acaso que outro dos maiores do futebol de todos os tempos, Bobby Charlton, que também tive privilégio de conhecer e manter com ele longas conversas, desabafou:«Por vezes sinto que o jogo foi inventado de propósito para este jogador mágico!».

Uma das vezes que me cruzei com Pelé foi em Wembley, no velho Wembley, num particular entre a Inglaterra e o Brasil. Vi uma sombra de tristeza no seu olhar: «Sabes?», perguntou-me. «Talvez o maior desgosto da minha vida tenha sido nunca ter jogado neste estádio único». Sim, Wembley foi abaixo, construíram outro no mesmo lugar, mas continua incompleto: Pelé nunca jogou lá!

Corre por aí o boato que Pelé morreu e foi enterrado ali perto de Vila Belmiro, casa do Santos, o clube que se tornou universal por sua casa. Leiam Nelson Rodrigues: «Ele chovia, ventava, trovejava. Sem passos eram límpidos, exactos, macios. O que eram certas jogadas de Pelé se não simples e deslavados milagres?». E continua, como uma avalancha: «É o maior jogador que apareceu, assim no céu como na terra. É um jogador humano e divino, mas mais divino do que humano. Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. É um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme da Brigitte Bardot, seria barrado. Mas, reparem: é um génio indubitável! Pelé podia virar-se para Michelangelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los com íntima efusão:«Como vai, colega?». Mais do que escrever sobre Pelé, ler sobre Pelé, e sobrevoar lembranças de Pelé, fica o impossível dos impossíveis: parar de escrever sobre Pelé. Acreditem. Eu não consigo. O ponto final aí em baixo é tão mentiroso como a notícia da sua morte.