Manuel Carmo Gomes. “Não nos vamos ver livres da covid por várias razões”

“O mais provável é que venhamos a recomendar a vacinação anual das pessoas de maior risco”, explica o membro da Comissão Técnica de Vacinação para a covid-19.

A covid chegou, supostamente, a Portugal depois de uns empresários portugueses terem regressado de uma feira de Milão. Não acha que o Natal e o Fim de ano foram o equivalente a uma feira de Milão à escala mundial, já que milhões de cidadãos chineses andaram pelo mundo?

Não, por três razões. Em 2020 ninguém tinha imunidade contra infeção pelo vírus. Estar exposto ao vírus conduzia a infeção e, uma vez infetado, o risco de uma pessoa vir a ter doença grave era mais alto. A título de exemplo, em Portugal, na segunda metade de 2020, cerca de 15% dos maiores de 80 anos que foram infetados faleceram por covid-19. Presentemente, os óbitos nestas idades não chegam a 2%. A razão é que estamos todos vacinados e a maioria de nós também já teve uma infeção anterior. A segunda razão é que as variantes do vírus presentemente em circulação aparentam ser menos patogénicas do que as primeiras. Finalmente, o vírus já circulava em todo o mundo em grande escala, independentemente dos chineses, e até agora nada indica que exista uma subvariante na China que já não exista fora da China. A verdade é que gradualmente iremos lidar com a covid-19 como lidamos com outras infeções, embora reconheça que a covid-19 tem menos sazonalidade, é mais transmissível, tem aspectos clínicos preocupantes e tem ainda uma circulação brutal no planeta.

A 24 de dezembro, foi noticiado que cerca de meio milhão de pessoas estavam a ser infetadas diariamente com covid-19 numa única cidade chinesa, Qingdao. O aviso surgiu através das declarações de um responsável pelos serviços de saúde desta cidade portuária no nordeste da China, num jornal local que rapidamente foi censurado, após ser lido pela France Presse. Continua a ser esta a realidade?

Começando do princípio, as razões disto tudo: a China teve muito sucesso no controlo da epidemia em 2020 e 2021 e em quase todo o ano de 2022. Nessa altura, até mostraram alguma sobranceria em relação ao Ocidente sugerindo que a política deles de “zero covid” era melhor e conseguiam controlar a doença. E foi verdade: de facto, tiveram um número muito limitado de pessoas infetadas. Mas, depois, houve o reverso da medalha: quando surgiu a Ómicron e respectivas sub-variantes altamente transmissíveis, não é a todos os títulos possível prosseguir uma política “zero covid” sustentada. Mantém-se alguns meses, mas depois o resultado é social e economicamente insustentavel. A China passou de uma situação de elevado controlo através de medidas de confinamento, de testagem massiva, pouca gente infetada etc. para esta realidade: do oito para o oitenta. Em 7 de dezembro abriu as portas à circulação do vírus de uma forma que, na minha opinião, foi muito imprudente. Deviam ter feito isso gradualmente, logo que o mundo ficou a conhecer as características da Ómicron. Não impediria que o vírus viesse a infetar toda a população chinesa, mas em vez de infetar num período de dois, três ou quatro meses, a infeção da população decorreria ao longo de muito mais tempo. Essa seria a primeira grande vantagem e, portanto, o afluxo de pessoas aos hospitais não teria o pico que se está a registar agora. O Sistema de Saúde Chinês está a enfrentar o maior desafio da sua História. Atrasar o aumento dos casos também teria a vantagem de disporem de mais tempo para vacinarem os setores da população mais vulneráveis, nomeadamente os idosos, que estão com uma cobertura vacinal baixa: têm uma cobertura de aproximadamente 65% nos idosos e nos maiores de 80 anos, em particular, é de aproximadamente 40%. Estão a tentar recuperar, mas já não vão a tempo porque ao libertarem completamente a circulação do vírus, ele é tão transmissível que causa um número assombroso de casos por dia. As férias do Ano Lunar chinês, desde sábado passado, está a levar milhões de pessoas apinhadas em comboios e autocarros dos centros urbanos para o meio rural, precisamente onde a população é menos densa mas mais idosa. As autoridades chinesas, aliás, informaram esperar uma 2.ª onda devido a esta migração.

E continuam a ocultar os números verdadeiros.

Acho é que não conseguem dar conta do recado. Estão tão ocupados com aquilo que se está a passar que não conseguem processar as estatísticas em tempo real. Projectava-se que os chineses iriam ter qualquer coisa como de 600 a 800 milhões de infeções em aproximadamente três meses. 800 milhões de infeções representam 55% da população chinesa, que é de 1450 milhões, mas também 10% da população mundial. Li recentemente na imprensa que um documento do CDC chinês apontava para 248 milhões de infeções só em dezembro, baseado em sondagens efectuadas nos grandes centros urbanos. É impressionante, mesmo atendendo à elevada densidade desses centros mas, se se confirma, as projeções serão superadas. O desconfinamento repentino foi um erro, principalmente para a população chinesa, mas não só. Quando ocorre um grande número de infeções, aumenta a probabilidade de surgirem mutações que nunca vimos. E talvez pior do que isso: haverá um elevado número de pessoas que estão infetadas durante muito tempo. São pessoas que, devido ao seu estado imunitário, não conseguem libertar-se do vírus durante o período de tempo habitual.

Se tal acontecer, quais são os cenários possíveis? “Pode haver uma recombinação da Delta com estas linhagens da Ómicron? Por exemplo, se um doente imunodeprimido mantiver a infeção durante muito tempo e for simultaneamente infetado pela Delta e a Ómicron… O vírus vai buscar informação genética às duas variantes e pode arranjar uma recombinante que gere preocupação”, disse, no final de novembro, em declarações ao Nascer do SOL.

Uma pessoa, no seu estado imunitário normal, vê-se livre da doença em cerca de duas semanas, mas há pessoas imunocomprometidas que não conseguem. Estas pessoas vão surgir em grandes quantidades e não será possível dar-lhes a assistência necessária. Estas pessoas têm maior risco de coinfeções: são infetadas com uma linhagem do vírus e, pouco depois, podem ser infetadas com outra. E quando a pessoa é co-infetada, há a possibilidade de o vírus recombinar: os coronavírus fazem isto. Vão buscar um bocado da informação genética de uma linhagem, outro bocado de outra e combinam numa variante que nunca vimos antes. Isto já aconteceu e, na China, nestas condições, é provável que volte a acontecer. Temos de estar muito atentos. Não quer dizer que as recombinações sejam mais perigosas ou patogénicas, mas pode acontecer. É claro que, em princípio, estaríamos mais tranquilos se a China disponibilizasse mais informação sobre as variantes do vírus que estão lá a circular.

“A OMS reiterou o apelo para a partilha regular de dados específicos e em tempo real sobre a situação epidemiológica, incluindo mais dados sobre a sequenciação genética e sobre o impacto da doença, incluindo hospitalizações, internamentos em unidades de cuidados intensivos e mortes”, indicou, em comunicado, Tedros Ghebreyesus. Será que este apelo surtirá efeito ou será apenas mais um pedido feito em vão?

A China começou a fazer isso nas últimas duas semanas e de 25 de dezembro a 5 de janeiro disponibilizou informação sobre 832 sequências do vírus que estão lá a circular, principalmente provenientes de casos hospitalizados. O que pudemos constatar não é preocupante. A maior parte das variantes já estão na Europa ou noutros locais do mundo e, neste momento, algumas até estão em declínio. Já tiveram prevalências mais altas. Outras são muito prevalentes aqui e igualmente prevalentes lá. Ainda não vimos nestas amostras, nada que indique alguma variante nunca vista e que esteja a aumentar o seu domínio. Enquanto as coisas estiverem assim, não há motivos para alarme. Todos os casos importados da China, nos próximos dias, provavelmente serão casos que já estão na Europa e para os quais existe barreira imunitária

Vários países estão a impor restrições à entrada de passageiros provenientes da China. Portugal anunciou que todos os passageiros dos voos oriundos da China deverão apresentar um teste negativo no embarque e serão testados aleatoriamente à chegada. Será este o posicionamento correto?

As justificações apresentadas pelos vários países escudam-se pouco em explicações científicas e mais em argumentos de falta de transparência. Dizem coisas como “Não sabemos aquilo que se está lá a passar e, por isso, vamos controlar os passageiros para conhecer as variantes que trazem”. Nenhum país pode ter a ilusão de evitar que haja entrada na Europa ou noutro continente de variantes que nunca cá estiveram. A experiência que temos e os estudos publicados mostram que, se forem muito transmissíveis, quanto muito conseguimos atrasar durante 3 ou 4 semanas a chegada e invasão pelas mesmas. É como querer parar o vento com as mãos. A única utilidade que eu vejo no controlo nos aeroportos é realmente tomar amostras das pessoas positivas e efetuar sequenciação, para saber de que subvariantes se tratam. Não é apenas dizer se estão positivas ou negativas. É necessário um sistema de colheita de amostras nos aeroportos e, depois, levar as amostras para o nosso laboratório de referência que é o Instituto Dr. Ricardo Jorge. Mas atenção, enquanto as amostras que os chineses disponibilizam nas plataformas internacionais são de doentes hospitalizados, as subvariantes que vêm nos aviões são de pessoas assintomáticas ou com sintomas leves. Também por aí o controlo é limitado: vemos com maior probabilidade quais são as variantes que causam doença mais leve, digamos assim. Há por isso muitas limitações.

Neste momento, sabemos qual é a variante que está a representar uma ameaça em termos do aumento do número de casos: está a aumentar nos EUA e já chegou à Europa. Chama-se XBB.1.5: é uma descendente da XBB e foi detetada no estado de Nova Iorque, cresceu no Nordeste dos EUA, domina-o, está a expandir-se para Ocidente e, em 6 de janeiro o CDC indicou que já representa 28% dos casos nos EUA. Cresceu de 18% para 28% em uma semana. No Natal, representava 2% no Reino Unido. É a variante que poderá ser maioritária na Europa dentro de algumas semanas. Não há qualquer evidência de que seja clinicamente mais perigosa para pessoas vacinadas e que já foram infetadas, como a maioria dos portugueses. Mas também sabemos que tem características biologicamente um pouco diferentes das outras variantes. Além de fugir aos nossos anticorpos, tem uma grande afinidade pelo recetor que lhe permite entrar nas células humanas, a molécula ACE2. Não quer dizer que cause doença mais grave, mas estamos com os holofotes apontados para os EUA porque é tudo ainda muito recente. Para já observa-se aumento das hospitalizações no Nordeste, mas não parece desproporcionado relativamente ao aumento de casos causado pela XBB.1.5. Esta variante representa um perigo maior para os chineses do que para nós, porque eles não têm a barreira imunitária dos europeus. Se a Europa não tomou medidas de controlo dos voos provenientes dos EUA, quando ainda se sabe tão pouco a XBB.1.5, é porque se reconhece a baixa eficácia desse tipo de controlos. Não defendo isso, é inútil, mas se quisermos ser coerentes… para os chineses a abertura à livre circulação é um desastre, é um problema humanitário, as estimativas apontam para, pelo menos, meio milhão de óbitos na China em três meses, mas provavelmente será mais. Deve ser o maior problema de saúde pública que já enfrentaram. Como as subvariantes mais prevalentes que vemos lá esbarram na nossa parede imunitária e não são razão para alarme, tudo o que temos a fazer é acompanhar a situação. Se surgir alguma variante especialmente perigosa na China, nomeadamente muito transmissível e mais patogénica, aí sim justifica-se ponderar medidas, mas não é só na China que podem surgir.

“Há imensa circulação do vírus em todo o planeta. O foco, para nós, portugueses, é acompanhar a evolução do vírus e ver se surge algo preocupante no mundo”, acrescentou, à época, em entrevista ao Nascer do SOL. Deverá continuar a ser este o nosso foco?

Sem dúvida, estamos a acompanhar diariamente a informação que a China veicula, bem como as plataformas internacionais que disponibilizam informação e as redes sociais onde estão cientistas de todo o mundo. Contudo, isto é uma preocupação para os especialistas e não para a sociedade.

Como estão os números em Portugal?

Estamos, em média, com 320 casos por dia nos últimos sete dias. São uma grosseira subestimação em relação ao verdadeiro número de novos casos. Estão subestimados porque desde o dia 1 de outubro, com o fim do Estado de Alerta, a linha 24 deixou de funcionar para testagem COVID. Agora só conhecemos os casos testados em contexto hospitalar ou os das pessoas que, por qualquer razão, decidem testar-se junto a um profissional de saúde. Hoje em dia, as pessoas que fazem os seus autotestes em casa não reportam às autoridades quando estão infetadas. O número de infetados tem estado a diminuir devagarinho, mas, presentemente, para termos números mais realistas temos de multiplicar estes 320 por aproximadamente sete: isto significa que, mais realisticamente, estamos com 2200-2400 casos por dia. No que diz respeito aos hospitais, o número de pessoas hospitalizadas tem estado com tendência decrescente. Ao longo de novembro, estivemos sempre na zona das 500 camas ocupadas em enfermaria. Neste momento, temos pouco mais de 300. Nos cuidados intensivos, as coisas têm-se mantido mais estáveis: estamos com cerca de 40 pessoas lá. Em relação aos óbitos, há também uma tendência decrescente, há uma média de sete por dia. Isto representa um decréscimo, pois no início de dezembro tínhamos 10-11 por dia. A situação parece controlada relativamente à doença grave, à doença que leva aos hospitais.

E a cobertura vacinal?

O reforço de Outono-Inverno está ainda um bocadinho aquém daquilo que seria desejável: para pessoas com mais de 70 anos, estamos entre 75 e 80% de cobertura vacinal. Em pessoas de 60 a 69 anos, 63%. A cobertura pela vacinação primária (2 doses) essa foi muito elevada – cerca de 95%. Uma das coisas que já constatámos é que a vacina bivalente usada no atual reforço de Inverno protege também contra estas subvariantes novas que andam a circular. Estamos dominados pela subvariante BQ.1, que tem muitas descendentes, digamos assim. Um estudo português muito recente, publicado no Lancet Infectious Diseases, resultado de colaboração entre Faculdade de Ciências e Instituto de Medicina Molecular, ambos da Universidade de Lisboa, e Direção Geral da Saúde, mostra que as pessoas que já tiveram uma infeção e que foram vacinadas, têm uma imunidade robusta e mais duradoura do que a proteção conferida apenas pela vacinação ou apenas pela infeção. Portanto, a situação parece-me relativamente tranquila para Portugal, onde a maioria das pessoas já foi infetada e a cobertura vacinal é alta, mas isto tem de ser acompanhado todos os dias e mantém-se a necessidade de que as pessoas atualizem a vacinação, conforme recomendado, em especial os mais idosos ou as pessoas com doenças de risco.

Falava-se de que havia “caos nas urgências” devido a crises alérgicas, outras doenças respiratórias, etc. Isto realmente aconteceu? E como está agora?

Não acompanho as urgências de infeções respiratórias não-covid, mas quer o Instituto Ricardo Jorge quer a Direção-Geral da Saúde publicam relatórios semanais de monitorização das doenças respiratórias. O último que eu tenho vai até 1 de Janeiro e não me parece que haja um aumento, a palavra mais adequada será de estabilidade. A proporção de episódios de urgência por infeção respiratória apresenta ligeira tendência decrescente nas últimas semanas, o mesmo se passando com a urgência por síndrome gripal. Contudo, o número absoluto de episódios nas urgências é muito elevado e, nesta altura, ter um aumento de casos de covid não seria nada bom. Caos parece-me uma palavra exagerada, mas os hospitais estão sobrecarregados como é característico de todos os invernos. Recordo-me bem que, antes da pandemia, já tínhamos um afluxo tremendo de gente às urgências em dezembro e janeiro. As pessoas não têm a assistência de que necessitam nos cuidados de saúde primários e, por isso, recorrem às urgências com situações que não são de urgência. É claro que ter mais casos de covid seria como chover em terra molhada: qualquer chuva aumentaria logo o caudal das águas. Se a XBB.1.5 ou outra subvariante viesse a causar uma “onda grande”… – aliás, não é provável que voltemos a ter mais ondas muito grandes – haveria um aumento do número de casos e, por isso, mesmo que a percentagem de pessoas que fosse para os hospitais fosse pequena, aumentaria a pressão. Não seria conveniente durante o inverno.

Falou há pouco de “ondas muito grandes”…

Em 2020 e 2021 fomos sempre alternando de uma variante do vírus para outra. Cada vez que uma chegava, substituía completamente a variante anterior e originava uma grande onda epidémica. Quando chega a Ómicron, o panorama muda: primeiro, tivemos uma grande onda, uma coisa monstruosa, em janeiro de 2022 chegámos a ultrapassar 50 mil casos por dia, mas depois assistimos à evolução gradual da Ómicron, em particular a partir de abril de 2022, as subvariantes BA.2 e BA.5 da Omicron originaram centenas de descendentes em todo o mundo, sempre Ómicron, para as quais o nosso sistema imunitário já tinha alguma proteção. E nunca mais tivemos uma situação em que uma só variante dominava tudo completamente. O que temos tido é uma renovação gradual de subvariantes por outras, sempre com muitas presentes em simultâneo. E nenhuma delas deu mais origem a uma grande onda seguida por um grande vale. Acho, eu e outros colegas, que será improvável voltarmos a ter grandes picos e grandes vales: passaremos a estar numa espécie de planalto onde andamos aos altos e baixos, à medida que sucessivas subvariantes vão aparecendo e desaparecendo. Em 2020, a Alfa surgiu no Sudeste de Inglaterra não se sabe bem como, depois a Delta foi detetada na Índia e invadiu-nos em 2021, entretanto a Beta surge na África do Sul e a Gama em Manaus (no Brasil)… Todas elas sem continuidade que estabelecesse uma ligação entre si, deram origem a ondas tremendas, mas agora a Ómicron não: evolui gradualmente. E isto é o habitual nos outros coronavírus respiratórios humanos, que causam as constipações de inverno: não têm grandes mudanças, evoluem gradualmente e não causam grandes ondas, mas todos os invernos reaparecem com uma roupagem um pouco diferente e causam re-infeções. E a Ómicron já parece portar-se desta forma. Evidentemente, não é impossível que tenhamos uma surpresa: que surja uma variante nunca vista, com características completamente diferentes e que nos põe a todos doentes e alguns no hospital. É por isso que estamos preocupados com a China, uma vez que o risco de isso acontecer aumenta quando há muitos casos.

Há aqui outro pormenor: ao contrário da China, a população da Europa está já muito imunizada e, portanto, do ponto de vista evolutivo, para o vírus, aquilo que lhe dá vantagem na Europa é fugir aos anticorpos. Não é o mesmo que ser muito transmissível, são coisas diferentes. Se eu estiver infetado e for infetar a pessoa do lado, e ela tiver alguns anticorpos, o vírus terá mais vantagem se conseguir fugir a esses anticorpos e pouca vantagem se conseguir infetar mas não conseguir fugir aos anticorpos. Não é bem esta a situação na China. Na China há muito pouca gente protegida porque a grande maioria da população fez a 2.ª dose há mais de 6 meses, alguns há 1 ano, e muito pouca gente tinha sido infetada antes. Neste momento, aquilo que dá vantagem ao vírus lá é ser muito eficaz a transmitir-se de uma pessoa para outra. O vírus consegue isso se causar uma grande carga viral no nariz, na boca, etc. das pessoas que estão infetadas ou se encurtar o período de incubação, porque mais depressa as pessoas infetadas emitem grande quantidade de vírus para o ar assim que tossem, espirram, etc. Isso é diferente de fugir aos anticorpos. E a evolução que o vírus está a ter na China, provavelmente, é para ser mais transmissível, porque quase ninguém tem anticorpos. A evolução, por enquanto, será para o vírus ser mais transmissível. Aqui isso não funciona porque toda a gente tem alguma proteção. Por isso, nestas primeiras semanas, uma variante que aumente muito depressa na China, deve-se caracterizar por ser muito transmissível mas não por escapar aos anticorpos dos europeus. Daqui a algum tempo, talvez quatro ou cinco meses, a situação epidemiológica da China passará a ser equiparável à dos outros países.

Continuam a existir os ditos “negacionistas” que associam muitas doenças às vacinas. Por exemplo, o cancro. Como é que se luta contra estas ideias enraizadas?

Em primeiro lugar, em relação a pessoas que adoecem ou morrem estando vacinadas, basta chamar a atenção para uma coisa: a partir do momento em que toda a gente está vacinada, toda a gente que adoece ou morre está vacinada. Não se pode portanto raciocinar com base no facto de haver pessoas vacinadas que adoecem ou morrem num país onde a vacinação é muito elevada. As pessoas têm de ser lembradas de que em Portugal morreram quase 17 mil pessoas por COVID até ao fim de março de 2021, quando muito pouca gente tinha o esquema vacinal primário. Dezassete mil em apenas 1 ano de pandemia é muito.

A partir do momento em que introduzimos a vacinação, o risco de morrer decresceu radicalmente. Tínhamos taxas de letalidade elevadíssimas em 2020, nomeadamente nos mais idosos, e as mesmas reduziram em cerca de 8 vezes quando começámos a vacinar os maiores de 80 anos. Nesta faixa etária, 15% das pessoas infetadas morriam, enquanto neste momento a letalidade é inferior a 2%. No grupo de idade dos 70 a 79 anos, antes da vacinação morreram em média 6% dos infetados, depois da vacinação passámos para um nível médio de 1,6% (com a Ómicron é de 0,6%). Nos mais novos o risco é ainda mais baixo. Penso que só utilizando os números é que podemos ajudar estas pessoas a perceberem a importância que a vacinação teve para que estejamos numa situação relativamente confortável. Basta que nos comparemos com a China para entender isto. De resto, há sempre pessoas que têm uma certa tendência para teorias da conspiração, mas não sou muito bom a lidar com isso. Na maioria dos casos, têm falta de informação factual. Hoje em dia, com as redes sociais, agrupam-se em nichos, comunidades que se fecham sobre si mesmas, multiplicando internamente o mesmo tipo de desinformação, meias verdades, descontextualização dos factos, etc. É um problema de desinformação reciclada, combinada com falta de literacia em saúde. Houve teorias conspiracionistas inacreditáveis: por exemplo, que o Bill Gates tinha posto microchips nas vacinas, para qualquer fim que nunca percebi. O facto de as vacinas serem fabricadas pelas grandes farmacêuticas não ajuda, mas face a uma pandemia das dimensões da COVID tem de se recorrer a grandes fabricantes: não há outra maneira. Desde sempre, houve uma grande desconfiança e eu também a tenho. No entanto, é evidente que quando necessitamos de um medicamento… temos mesmo de ver se há um que os ensaios demonstraram ser eficaz, seja como preventivo ou seja para curar. E temos de ver o que as grandes farmacêuticas fizeram. Agora, como são grandes empresas… as pessoas associam a disponibilização do medicamento à avidez pelo lucro, à falta de escrúpulos, etc. Talvez ache estranho se lhe disser que é entre quem trabalha em vacinologia que vai encontrar os maiores céticos, mas não é negacionismo relativamente ao potencial benefício da vacina, é apenas necessidade de ser convencido que traz benefícios e é seguro. Provavelmente são estas as pessoas que melhor conhecem as razões pelas quais no passado a vacinação não correu bem, em geral são razões do foro da microbiologia ou da imunologia. Eu desconfio de todas as propostas que chegam de novas vacinas e de propostas de alterações ao esquema vacinal. Os ensaios que suportam a proposta têm de ser escrutinados com imparcialidade. Não parto do princípio de que estão a pensar somente no lucro, porque pode trazer um benefício que excede largamente os custos envolvidos e os efeitos adversos. Reconheço que esse trabalho não é simples, requer conhecimentos de várias disciplinas e por isso deve ser feito em conjunto com diferentes especialistas reunidos em comissões de vacinação.

Como se processará a vacinação no futuro?

Suponho que se refere à COVID. Na minha opinião, o mais provável é que venhamos a recomendar a vacinação, o reforço vacinal melhor dito, anual das pessoas de maior risco. Isto inclui os idosos, mas também as pessoas com problemas de imunossupressão devido a doenças crónicas, medicação, etc. Mas isto também depende diretamente da evolução do vírus: é prematuro responder já.

Conhece casos de pessoas que tenham tido efeitos adversos com a última dose da vacina?

Pessoalmente, não conheço nenhum caso preocupante. Com todos os familiares e amigos com os quais falei, só sei que tiveram aqueles efeitos da dor no ombro, uma pessoa esteve febril durante 24 horas e pouco mais. Penso que nenhumas vacinas estiveram tão debaixo de vigilância como as vacinas para a COVID. A Agência Europeia do Medicamento (EMA) procura sinais de alerta entre milhões de comunicados de reações adversas que já recebeu dos países membros e que, já agora, são públicos. O Infarmed publica um relatório com a contabilização dos efeitos adversos em Portugal, também é público, no qual se pode ver que as reações são raras, da ordem de 1,5 casos por mil vacinas dadas, dos quais apenas 20% foram considerados graves.

Há algo que queira acrescentar?

Sim, duas coisas. Tem havido alguma confusão com o termo endemia. Se já estamos em endemia ou não. Os epidemiologistas têm uma definição clássica, dos livros, que não é bem aquela que é utilizada pela comunicação social. Em epidemiologia, dizemos que uma doença é endémica quando está instalada na população de forma sustentada: em qualquer altura pode haver casos e vai continuar a haver casos no futuro. Mas há quem use o termo endemia referindo-se à capacidade que temos para prever o que se irá passar: se eu for capaz de fazer previsões em relação a quantos casos de covid-19 é que teremos, significa que a doença se tornou endémica. Bom… se formos para a definição mais clássica, então a doença é endémica desde que aqui chegou. Não nos vamos ver livres da covid por várias razões: o vírus tem uma transmissibilidade alta, as vacinas atuais não impedem totalmente a transmissão e o vírus já formou reservatórios em animais domésticos e em animais selvagens: veados, lontras, e vários roedores. No que diz respeito ao termo endemia, tal como é usado pelos media, não estamos em situação endémica. Neste momento, ainda não conseguimos prever como vai ser a incidência da covid no verão. Se me perguntarem sobre a gripe, eu sei dizer que a partir de março praticamente desaparece. Mas não consigo dizer isto para a covid: e isto que aconteceu na China é uma prova de que a covid ainda não é endémica no sentido de ser previsível. Talvez daqui a um par de anos seja, não sei.

Outra coisa que gostaria de acrescentar é que estamos preocupados com a covid de longa duração: isto é, com as pessoas que, mesmo depois de recuperarem da fase aguda da doença, sentem-se fatigadas, têm dificuldade de raciocinar, no sono, patologia cardíaca, sequelas neurológicas, propensão para formação de micro-trômbolos e, recentemente, um conjunto de artigos tem descrito alterações no sistema imunológico causadas pelo vírus que parecem ser duradouras. As estimativas da percentagem de pessoas com alguma destas sequelas variam muito, mas há valores entre 5 e 30%, dependendo das idades, sexo, e da severidade da doença inicial. Atendendo à quantidade de gente que foi infetada, estas percentagens correspondem a muitas pessoas e isto tem impacto quer nos sistemas de saúde quer no absentismo. Ainda não passou tempo suficiente para sabermos quanto tempo durarão estas sequelas, mas já há várias teorias para as explicar, infelizmente há muito menos protocolos para as tratar. A mensagem principal a tirar é que continua a ser uma péssima ideia ser infetado, é como jogar na roleta russa. Continua a ser boa ideia mantermos um comportamento de proteção individual e daqueles que nos rodeiam: discreto, sem alarmismo, mas atento.