Brasil. Limpar a democracia após o caos

Lula teve que pedir proteção a forças sob suspeita, enquanto Bolsonaro tenta distanciar-se do assalto a Brasília.

O Brasil ainda tenta digerir o assalto bolsonarista ao Palácio do Planalto, a semana passada. As autoridades querem perceber como foi possível ocorrer um tal apagão na segurança da capital, apurando responsabilidades, enquanto opositores do ex-presidente realçam na imprensa quanto sempre souberam que este era perigoso para a democracia, num tom de: ‘Bem vos avisei’. Já entre quem apoiou Jair Bolsonaro, esse campo divide-se entre os que se distanciam do atentado ou tentam relativizá-lo – como o próprio, que condenou as «depredações e invasões de prédios públicos», comparando-as com incidentes envolvendo a esquerda – e aqueles que mergulharam ainda mais em teorias da conspiração, como os que acusam agitadores esquerdistas de serem responsáveis pelo vandalismo em Brasília. Outros planeiam mais assaltos contra edifícios públicos ou bloqueios, temem as autoridades.

Após mais de 1500 detenções, o Governo de Inácio Lula da Silva reagiu procurando demonstrar que era possível um certo regresso à normalidade, insistindo em reunir-se no Palácio do Planalto, um dos alvos do ataque, logo no dia seguinte. Contudo, o Executivo deparou-se com uma cena tudo menos normal, com paredes de vidro do palácio estilhaçadas, a galeria com retratos dos antigos presidentes destruídas e funcionários da limpeza a tentar lidar com o caos da invasão.

«As pessoas diziam que pareciam um bando de pessoas com ódio, fora de si, pareciam um bando de ‘zombies’. Corriam pelos corredores, quebrando tudo, urinando e defecando nos corredores, dentro dos salões. Foi um ato de destruição», contou Paulo Pimenta, o secretário de Estado da Comunicação, em conferência de imprensa. Prometendo que os dejetos seriam recolhidos para obter provas contra os amotinados.

Já Bolsonaro comparou o que se sucedeu com protestos «praticados pela esquerda em 2013 e 2017». Presumivelmente, referia-se a protestos contra o Governo de Dilma Rousseff e contra o sucessor desta, Michel Temer, que analistas garantem não ter nenhum paralelo com a gravidade do sucedido a 8 de janeiro.

No primeiro caso, um protesto que pedia mais investimento na saúde, educação e transportes públicos, além de contestar os gastos com o Campeonato do Mundo, manifestantes romperam o cordão policial em torno do Congresso Nacional. Mas limitaram-se a entoar cânticos, saindo pacificamente. Já no segundo caso, uns três mil manifestantes, sobretudo sindicalistas ligados à Polícia Civil, que protestavam contra a reforma da segurança social, arrombaram a porta da Câmara dos Deputados, tendo um mês depois manifestantes tentado atear fogo e depredado sete ministérios.

Nesse último incidente, a reação da Polícia Militar não teve qualquer comparação com o 8 de janeiro. Os manifestantes que cometeram atos de vandalismo exigindo a saída de Temer, acusado de corrupção pelo testemunho do empresário Joesley Batista, enfrentaram um contingente policial 15 vezes maior que o enviado para conter os distúrbios recentes, no final da tarde, avançou uma investigação do Estadão.

Antes disso, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) – que está sob desconfiança do Governo de Lula – até decidira dispensar parte do Batalhão da Guarda Presidencial. Os agentes que sobraram ficaram quase desprovidos de equipamento para controle de multidões, como escudos, gás lacrimogéneo ou balas de borracha. Já nos protestos de 2017 a Polícia Militar usou – e abusou, queixaram-se críticos na altura – disso, havendo vídeos de agentes a disparar armas de fogo contra a multidão, deixando quase 50 feridos, recordou a BBC Brasil. Incluindo um manifestante baleado e um estudante cuja mão foi decepada por um rojão, um espécie de cartucho de shotgun com balas de borracha dentro. 

Já nas redes sociais, voltaram a ressurgir imagens de 2006, da invasão da Câmara dos Deputados por militantes do Movimento de Libertação dos Sem-Terra, com os posts a indicá-lo como contraponto ao 8 de Janeiro. Contudo, dificilmente se poderia classificar o sucedido como algo com apoio significativo à esquerda. O motim, decorrido quando Lula da Silva era Presidente, e exigindo recursos para uma reforma agrária, foi levado a cabo por uma dissidência minoritária do Movimento dos Sem Terra (MST), escreveu à época a Folha de S. Paulo. Pelo menos 549 manifestantes foram detidos de imediato e onze até foram alvos de acusação de tentativa de homicídio.

«Há no episódio mais recente um nível de organização muito mais centralizado», apontou Francisco Fonseca, professor na Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),à BBC Brasil. Notando que os atacantes bolsonaristas contavam «com financiamento abundante e até participação de autoridades e ex-membros do governo», garantiu o cientista político, vendo como indício disso o apagão policial em Brasília.

Mesmo as acusações judiciais enfrentadas pelos bolsonaristas poderão ser mais duras que as dos envolvidos em anteriores ataques à capital brasileira, acrescentou Celeste Santos, presidente do Instituto Pró-Vítima, ao canal britânico. É que a intenção dos envolvidos ou o objetivo dos atos tem impacto na punição. E os próprios criminosos admitiram ter como propósito derrubar a democracia com um golpe militar. Daí que o Supremo Tribunal Federal veja o atentado contra a Praça dos Três Poderes como terrorista, não como meros abusos durante uma manifestação política, com reivindicações normais em democracia, independentemente de que parte do espetro político venham.
Estado ‘contaminado’

O Governo de Lula tem detetado mais ameaças de ataques, ficando na dura situação de ter que pedir proteção a um aparato de segurança de que desconfia. Após tomar nas suas mãos a segurança em Brasília com uma intervenção federal, por suspeita que as autoridades locais tenham sido coniventes com o 8 de Janeiro. Ministros têm reunido com comandantes das Forças Armadas, que ponderam convocar para proteger a capital, avançou o Estadão. 

Isto apesar da lealdade do Exército ser questionada, por não ter vigiado mais de perto os acampamentos bolsonaristas montados literalmente à porta do seu quartel-general, mesmo sendo estes descritos como «incubadoras de terroristas» por Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública. E quando os bolsonaristas começaram a sua marcha de cerca de uma hora até à Praça dos Três Poderes, a pé, «o Exército, que acompanha movimentações muito menos importantes, não fez nenhum alerta», salientou a Folha de S. Paulo. 

Até os serviços secretos estão sob escrutínio. O Governo de Lula foi aconselhado a tirar a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) da estrutura do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), avançou o Estadão, dado a agência estar «contaminada». Fala-se da existência de uma «Abin paralela», que ainda serve os interesses do ex-presidente.

Entretanto, Bolsonaro continua na Florida, onde deu entrada no hospital por dores abdominais, sequelas da facada que sofreu durante a campanha presidencial que o elegeu. Mas aumentam os apelos a que seja extraditado dos Estados Unidos, para ser responsabilizado pelo 8 de Janeiro.

Enquanto se apuram responsabilidades nas mais altas esferas, vão sendo apanhados bolsonaristas acusados de estragar quadros e obras de arte, quebrar vidros e devastar gabinetes na Praça dos Três Poderes.

Entre os detidos está até um sobrinho de Bolsonaro, Leo Índio, que até publicou uma foto sua durante o assalto, com os olhos inchados devido ao gás lacrimogéneo, avançou o Globo. Foram também detidos youtubers muito influentes entre a direita radical, como Karol Eller, que até fez livestreams do ataque, bem como vários dirigentes do partido do ex-presidente, o Partido Liberal (PL).