Igreja. A guerra do trono

A Igreja Católica portuguesa vive momentos agitados, havendo quem queira fazer uma rotura, atendendo à perda de fiéis e aos novos tempos, e quem queira uma filosofia na continuidade. O futuro cardeal-patriarca representará o caminho a seguir.

Igreja. A guerra do trono

As dúvidas dissiparam-se e agora todos sabem com o que contar. É altura de ambos os lados se unirem contra aquilo que não querem. Falamos da sucessão do cardeal-patriarca de Lisboa, ou melhor, do novo bispo da capital, que pode ser nomeado cardeal depois de ascender aos comandos da Igreja de Lisboa ou ter de esperar algum tempo até subir mais um degrau na hierarquia religiosa. Certo é que os dois lados mais visíveis da Igreja, um mais conservador ou espiritual, outro mais moderno ou aberto, irão estar em confronto.

 D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, que completa 75 anos em 2023, deu uma entrevista, em 19 de dezembro, à Ecclesia, que só foi publicada em 9 de janeiro, onde explica tudo tintim por tintim. Na primeira parte da entrevista, de 22 minutos, falou no problema da guerra, da eutanásia e da diminuição de católicos praticantes. «O censos 2021 diz que 80% das pessoas que responderam sobre a religião disseram que eram católicos, mas tenho muitas dúvidas que isso corresponda à prática dominical. Aí serão 15%? Não sei, tenho dúvidas», explicando depois os motivos que levam os tais 80% a declararem-se católicos – desde o receio da morte, a questões do além, até Fátima, onde um milhão de portugueses passa por lá durante o ano. Até chegar, na segunda parte, à questão que mais atormenta as várias fações da Igreja portuguesa: a sua sucessão. E aqui não deixou margens para dúvidas sobre o que acha ser melhor: «Acho importante e já o disse ao Papa que haja um patriarca mais jovem, que esteja mais próximo de toda esta problemática, porque quer queiramos quer não, 75 são 75 anos. A nossa cabeça foi feita noutra altura, a nossa mente. Tentamos acompanhar mas era bom que houvesse alguém que depois desse seguimento. Isto fica tudo no ar mas é preciso dar seguimento e vir alguém mais novo, mais capaz, mais dentro disto, deste mundo e até mesmo destas mesmas tecnologias de comunicação. Sou completamente ignorante digital e não há muito a fazer. Tenho apoios mas cada um é como é. Ainda penso na esferográfica. E ainda escrevo postaizinhos à mão. Haver alguém que seja mais deste tempo é a melhor maneira de dar continuação a isto. Mas o Papa sabe isso e quando ele quiser, tanto fico como vou. Antes, durante, depois, quando ele quiser». O antes, durante e depois é relativo a 16 de julho, data em que completa 75 anos. Convém aqui referir, quanto aos novos tempos e às novas tecnologias, que os conservadores dão o exemplo do antigo bispo auxiliar de Lisboa, D. António Vitalino, que aos 81 anos, na década de 90, já chegava às reuniões da diocese com um computador debaixo do braço e que, portanto, não é preciso alguém mais novo para perceber de tecnologias.

Uma Igreja envelhecida e em ebulição 

Se o Papa Francisco já sabe o que pensa D. Manuel Clemente sobre a sua sucessão, no Vaticano está o arcebispo Tolentino Mendonça, figura muito próxima do Papa, e que lidera a ala renovadora da Igreja. Olhando para as 21 dioceses portuguesas, duas estão sem bispo há já algum tempo – Bragança-Miranda e Setúbal -, e não é difícil concluir onde estão os bispos mais novos: Américo Aguiar, auxiliar de Lisboa e presidente da Fundação Jornada Mundial da Juventude, tem 49 anos, sendo o mais próximo em idade D. José Cordeiro, bispo de Braga, que tem 56, seguindo-se o responsável pelas Forças Armadas e Segurança, D. Rui Valério, com 58. À beira de completar 60 anos está o bispo do Funchal, Nuno Brás da Silva, e depois é tudo rapaziada com mais de seis dezenas de anos. E é preciso não esquecer que oito bispos têm 70 ou mais anos, prevendo-se que nos próximos tempos a Igreja fique sem estes responsáveis, que atingem o limite de idade. As dificuldades encontradas pelo núncio apostólico para encontrar os sucessores destes bispos deve-se à falta de candidatos e ao escrutínio «mais do que rigoroso» que D. Ivo Scapolo tem de fazer. Vindo do Chile, onde deixou uma péssima imagem, e sendo acusado de ter sido conivente com padres que cometeram abusos sexuais e de ter escondido a realidade ao Papa, o núncio apostólico não quererá correr riscos de enviar nomes para Roma e nesse lote estar alguém com um passado duvidoso, no que diz respeito aos costumes. Se o Papa nomear algum bispo para as dioceses e nos tempos seguintes se descobrir algum passado negro, D. Ivo Scapolo fica com os dias contados como embaixador do Vaticano. 

É o Papa que cabe escolher um dos três nomes que o seu embaixador em Portugal enviará para o Vaticano, acreditando diversas fontes eclesiásticas que os nomes não deverão estar longe dos citados, nos mais novos, embora D. Américo Aguiar seja o mais bem posicionado, até pela sua proximidade a Francisco e a Tolentino Mendonça.

O homem forte da Jornada Mundial da Juventude tem muitas vantagens, mas algumas desvantagens que estão a contribuir para uma clivagem dentro da Igreja. A ala reformista, que o apoia, diz que é um «fazedor nato» e elogia a sua capacidade de organização. «Domina as novas tecnologias e está em sintonia com o discurso do Papa de abertura à sociedade, onde ninguém deve ser excluído. E falamos de gays, de casais divorciados, além de uma grande comunhão com as outras religiões», diz fonte próxima do Patriarcado. Além disso, comenta-se, está de acordo, na generalidade, com o famoso Relatório de Portugal – uma espécie de Estado da Nação da Igreja Católica realizado em todas as dioceses – que admite o casamento de padres, a ordenação de mulheres, além de não fechar as portas a ninguém.

Do lado dos conservadores, as críticas incidem sobre a sua «falta de espiritualidade, pois é um grande fazedor, dá-se com o poder político, futebolístico e empresarial, nomeadamente na comunicação social – a que se acrescenta o facto de ser o responsável máximo da Rádio Renascença -, mas tem pouco tempo para rezar». Os ‘adversários’ de Américo Aguiar dizem ainda que a sua nomeação para bispo de Lisboa o pode transformar no «novo cardeal Cerejeira, embora não seja plausível que consiga manter-se como patriarca durante 42 anos».

«Até é possível que se dê uma aliança entre os conservadores e os reformistas, pois Américo Aguiar, além de muito novo, tem um défice de espiritualidade. É um grande empreendedor, mas não está próximo da vida real das paróquias. É mais um embaixador do que um sacerdote», acrescenta outra fonte do patriarcado.

Já do lado dos reformistas, os elogios também são muitos. «É do melhor que há em Portugal, pois faz acontecer. Quer abrir a Igreja ao mundo, percebe o tempo que vivemos e que não podemos estar de costas voltadas para os tempos atuais. Ao seguir as diretivas do Papa é natural que chateie os mais conservadores, que gostavam que tudo ficasse na mesma, indiferentes ao facto de cada vez mais fiéis desaparecerem, devido ao divórcio entre o que se apregoa e a realidade».

O que está em causa 

A nomeação do futuro cardeal-patriarca representará o caminho que a Igreja seguirá, pois se a nomeação for determinada pelo Papa Francisco – que se prepara para abdicar depois da Jornada Mundial da juventude – isso significará uma abertura total. Mas se o sucessor de Francisco for um homem mais conservador, então tudo poderá ser alterado. Recorde-se que a Igreja portuguesa, através da Conferência Episcopal – a pedido do Papa e à semelhança do que foi solicitado às outras conferências episcopais europeias – decidiu ouvir os sacerdotes e demais agentes eclesiásticos, além dos fiéis de todas as dioceses. No final, foram feitas sínteses relativas a cada diocese e enviadas para a Conferência Episcopal Português (CEP), que fez uma síntese das sínteses. E aqui é que as leituras não ficaram na paz do Senhor. Enquanto uns deram mais ênfase ao que foi dito na linha da continuidade, outros optaram por privilegiar o que foi falado sobre a necessidade de rotura.

A polémica foi – e é – tanta que a própria CEP sentiu necessidade de fazer um comunicado oficial: «Os conteúdos do Relatório não foram inventados pela Comissão, mas encontram-se nos documentos das instâncias referidas. É importante ouvi-los, discerni-los, completá-los ou reformulá-los, mas não descartá-los […]. Não é um tratado sobre a Igreja no seu todo nem um juízo sobre a Igreja em Portugal. Trata-se de um resumo de quanto surgiu nas etapas diocesanas para continuar o caminho de reflexão e transformação que temos por diante».

Bispos contra bispos

Voltemos então aos nomes que representam as duas visões no seio da Igreja. D. Américo Aguiar, já se percebeu, é o nome preferido dos renovadores e daqueles que querem uma rotura com o estado da Igreja atual, tendo, supostamente, o apoio de Tolentino Mendonça e do próprio Papa. Já aqueles que defendem uma continuidade sem rotura – e lá vem a tal história dos divorciados, da comunidade gay, da possibilidade de haver sacerdotes casados e de as mulheres terem mais poder – defendem várias alternativas, que até podem passar pela nomeação de D. António Rocha Couto, bispo de Lamego, para cardeal-patriarca de Lisboa. Missionário da Boa Vontade, tem a vantagem de ser um moderado. Problema? Tem 71 anos. Dizem os ditos conservadores que a diocese de Lisboa precisa de alguém que procure a «unidade, que aposte em falar com Deus, que faça o acompanhamento das pessoas no sofrimento, e que, no fundo, tem tempo para falar com os padres e não com o poder político». Para bom entendedor, meia palavra basta.

Os outros nomes que colhem apoio junto daqueles que defendem a continuidade são os bispos das Forças Armadas e do Funchal, além do de Braga, D. José Cordeiro. O primeiro, D. Rui Valério, é considerado um homem com mundo, que tem andado em diversas missões de paz e tem «dimensão espiritual», embora muitos o vejam como futuro bispo de Setúbal. Já o do Funchal, D. Nuno Brás Martins, também é relativamente novo, tem 60 anos, e muitos acham que é dos mais moderados e que pode fazer a ponte entre as diversas fações. Na mesma linha está D. José Cordeiro, embora este esteja numa diocese muito importante, pelo que não deve ser ‘desviado’ para Lisboa. 

 E, claro, há sempre um nome que está no radar da Igreja, apesar dos conflitos em que se viu envolvido nos últimos tempos: D. José Ornelas, que, aos 69 anos, é considerado o banqueiro da Igreja Católica, uma vez que grande parte das doações provêm do santuário de Fátima. Como já se percebeu, a Igreja Católica vive momentos conturbados, à semelhança da política portuguesa. Tem a palavra o Espírito Santo.