‘Lobos’ do mar à procura dos ventos da fortuna

Durante seis meses, destemidos velejadores vão realizar a mais difícil prova de circum-navegação à vela. Nunca o caminho marítimo entre Espanha e Itália foi tão longo. Obviamente, há portugueses na Ocean Race.

‘Lobos’ do mar à procura dos ventos da fortuna

Por João Sena

Com um ano de atraso devido à pandemia, a Ocean Race está de regresso. A edição de 2023 começa domingo, em Alicante (Espanha), e termina dia 1 de julho, em Génova (Itália), tem sete etapas e 32 mil milhas náuticas (60 mil quilómetros), que atravessam quatro oceanos, quatro continentes e passam por nove cidades. 

Os velejadores vão circundar a gélida Antártida, disfrutar do sol do Brasil e realizar uma viagem transatlântica entre os EUA e a Dinamarca.

Disputada de quatro em quatro anos desde 1973, esta regata é o desporto no estado mais puro e um dos maiores desafios para homens e mulheres. 

O conceito é simples: uma corrida contra o tempo que coloca os melhores velejadores do mundo contra as águas mais difíceis, mas é também uma aventura de vida.

Onze tripulações participam na regata à volta do mundo e, pela primeira vez, uma equipa portuguesa, a Mirpuri Racing Team, participa na categoria VO65 Sprint Cup. 

«É uma grande honra liderar a primeira equipa totalmente portuguesa na Ocean Race. Para mim, é um sonho tornado realidade depois de tantos anos de trabalho. A Fundação Mirpuri tem feito muito pela vela em Portugal e esta é uma oportunidade para os velejadores portugueses mostrarem a sua qualidade frente aos melhores do mundo», disse o skipper António Fontes.

Um mês sem parar 

O percurso é uma autêntica maratona em mar aberto, que ganha maior dimensão com o cancelamento da paragem em Shenzhen, na China, devido à covid 19. Na terceira etapa, os velejadores vão fazer uma travessia recorde de 12.750 milhas náuticas (24 mil quilómetros), com a duração de um mês, entre a Cidade do Cabo (África do Sul) e Itajaí (Brasil), através dos turbulentos mares do Pacífico Sul e com passagem pelo Cabo da Boa Esperança e Cabo Horn, conhecido como o ‘fim do mundo’.

Vai ser um momento alto para as tripulações, mas também uma luta pela sobreviência em águas que metem muito respeito, nomeadamente nos mares do sul, onde é frequente haver ventos fortes, superiores a 30 nós, e ondas gigantes de oito metros.

A prova é disputada pelos veleiros das categorias IMOCA 60 (18,3 metros) e VO65 (20 metros). Os primeiros estão na vanguarda pelo design e tecnologia e a tripulação é de cinco elementos. São barcos extremamente bem preparados e bastante rápidos, quando navegam sobre os foils elevam-se da água e atingem velocidades a rondar os 100 km/h!

«Vai ser uma competição rica em ação. É a primeira oportunidade para ver as performances destes barcos com tripulação», disse o inglês Phil Lawrence, diretor da prova e antigo velejador olímpico, referindo-se ao facto de os IMOCA 60 serem concebidos para regatas com um único tripulante. 

É muito possível que seja estabelecido um novo recorde absoluto de distância em 24 horas, que é atualmente de 618 milhas (1144 quilómetros). As embarcações da categoria VO65 são todas iguais, estiveram presentes nas duas últimas duas edições da prova, e têm sete tripulantes cada. «Os IMOCA são muito diferentes dos VO65, de certa forma exigem menos esforço fisíco porque não estás a levar constantente com as ondas. Por outro lado, quando o barco navega apoiado nos foils é perigoso sair da posição pois o barco salto em todas as direções, caindo violentamente sobre as ondas, é uma loucura e não podes fazer nada», disse a velejadora britânica  Annie Lush, que já disputou duas edições da prova.

O percurso mais longo será feito apenas pelos super veleiros IMOCA 60, concebidos especialmente para grandes travessias no oceâno, os veleiros da classe VO65 vão fazer apenas a primeira etapa Alicante-Mindelo e as duas últimas regatas: Aarhus-Haia e Haia-Genóva. Todos os barcos que participam nesta volta ao mundo levam equipamento para recolher dados para investigação sobre o estado dos oceânos.

Prova de resistência

Esta competição exige grande preparação fisíca e psicológica para enfrentar as adversidades, e no momento de abordar a Ocean Race há imensas dúvidas e algumas inquietações. A escolha dos elementos de cada tripulação é muito importante, sendo a experiência, resistência e agilidade, caráter humano e determinação fatores fundamentais. 

O dia e a noite de cada velejador a bordo dividem-se em blocos de quatro horas, entre períodos de trabalho e de descanso. Ao contrário de outros desportos, nas regatas oceânicas os atletas nunca abandonam o local de competição, nem sequer para dormir ou ir à casa de banho. A cada quatro horas, um novo turno sobe ao convés para assumir o controlo da embarcação,  vigiar as mudanças inesperadas de vento (e acontece muitas vezes) e ver o que fazem as outras equipas. Para cada manobra importante, como dar a volta ou mudar de vela todos os tripulantes são chamados. Para manobras menos importantes participam apenas os elementos que estão no convés, mas todos têm de ter 100% de certeza do que estão a fazer. Há quem esteja encarregue de controlar os dados meteorológicos sobre o vento, mas também a pressão atmosférica, a nebulosidade e precipitação, há também informação sobre as ondas (altura, direção e período da ondulação) e a corrente oceânica. Existe também a possibilidade de descarregar imagens de satélite que permitem seguir com grande precisão alguns fenómenos meteorológicos, como a progressão de uma frente fria. Analisando todos estes dados é possível definir uma estratégia para os dias seguintes e traçar planos alternativos. Cada equipa recebe ao longo do dia informação da posição dos outros concorrentes.

As coisas básicas da vida diária são um problema. Dormir, por exemplo, é muito difícil. Os barulhos ensurdecedores que o barco faz e os constantes sinais de alerta não dão descanso. Cada velejador tem um beliche, mas muitos preferem dormir no chão com uns bons colchões, sobretudo quando o barco ‘voa’ por ação dos foils. A alimentação é um desafio porque para confecionar as refeições é preciso ferver a água, e no mar alto despejar água quente para uma bolsa é extremamente difícil. A comida é normalmente liofilizada e o simples ato de tirar a comida dos pratos e colocá-la na boca é difícil devido aos movimentos do barco, por essa razão não há garfos a bordo. Outra tarefa nada fácil é a higiene num barco destes. A simples ida a uma espécie de casa de banho tem algum risco, pois nesse espaço não cintos de proteção. 

Participar na Ocean Race é uma experiência de vida. Quem fica em terra tem possibilidade de seguir a regata através dos sites TheOceanRace.com e Eurosport.com. O canal televisivo Eurosport vai acompanhar a Ocean Race e, naturalmente, as redes sociais vão estar em cima da prova.