O melhor livro escrito em alemão

Eckermann organizou as obras de Goethe em 40 volumes, mas ficou conhecido sobretudo graças a um pequeno livro que mereceu rasgados elogios de Nietzsche.

Decididamente, alguém tinha deixado o volume da aparelhagem da loja demasiado alto. Mesmo duas ou três secções mais adiante, a muitos passos dali, a música não só continuava a fazer-se ouvir como se tornava cada vez mais intrusiva, mais desagradável. Não sei dizer se era heavy metal, trash metal ou outra coisa qualquer. Sei apenas que era música da pesada e que, a páginas tantas, ao som cavo da bateria e à distorção das guitarras juntaram-se uma espécie de urros. Apetecia-me raspar-me rapidamente dali para fora – só que tinha ficado preso a um livro. E, por isso, a música incomodava ainda mais: é que eu tinha acabado de recuar uns 200 anos e entrado num mundo mais tranquilo e silencioso. O mundo de Goethe.

Quem me abriu a porta dessa dimensão foi Johann Peter Eckermann. Nascido em 1792 num meio muito humilde, combateu nas guerras napoleónicas em 1813-14. Retirado dessas lides, já na casa dos vinte anos voltou aos estudos, tendo passado pelo curso de Direito, que não terminou. Fez de dar aulas a alunos particulares o seu ganha-pão, acabando por tornar-se conselheiro de um grão-duque e bibliotecário da respetiva grã-duquesa.

P róximo de Goethe desde que se haviam conhecido em 1823, foi a ele que coube organizar as obras completas do poeta e polímata de Weimar. Nada menos do que 40 volumes! Porém, Eckermann tornar-se-ia célebre sobretudo graças a um livrinho de pouco mais de 200 páginas, o tal que comecei a folhear ao som da música da pesada. Chama-se Conversações com Goethe e foi publicado em Portugal pela Vega, com tradução de Luís Silveira.

A história começa no dia de Natal, quando recebi um livro – outro – que de tal modo foi de encontro ao meu gosto que já o tinha. Houve pois que ativar o talão de troca, o que fiz alguns dias depois. Foi por mero acaso que reparei neste Conversações com Goethe, cuja existência desconhecia. A primeira impressão, colhida numa página aberta ao acaso, foi excelente. Já estava convencido a levá-lo quando me deparei com as auspiciosas palavras do tradutor no final do prefácio: «O trabalho longo e custoso de preparar a edição portuguesa desta antologia das conversações de Goethe com Eckermann fi-lo […] de bom grado para dar a conhecer ao público português as páginas que Nietzsche considerava como as do melhor livro escrito em alemão».

E ckermann descreve o primeiro encontro com o mestre, a 10 de junho de 1823. O tom é factual e reverente q.b. «O interior da casa deixou-me impressão muito agradável, sem todavia ser brilhante; tudo era de linhas muito nobres e simples; as reproduções de estátuas clássicas que se viam nas escadas indicavam bem a especial inclinação de Goethe pela arte da escultura e pela antiguidade grega. […]

Depois de ter observado um pouco, subi com o criado, que era muito falador, até ao primeiro andar. Ele então abriu a porta dum compartimento em cuja ombreira se lia SALVE, como bom prenúncio de amável recepção. O criado guiou-me através deste compartimento e abriu-me outro, um pouco mais espaçoso, onde me pediu para esperar, e foi anunciar-me ao dono da casa. O ar aqui era muito fresco, um tapete cobria o chão, e um canapé vermelho e cadeiras de igual cor mobilavam garridamente o quarto; logo ao lado estava um piano, e suspensos nas paredes viam-se desenhos e quadros de diferentes qualidades e tamanhos.

Por uma porta aberta descortinava-se um outro compartimento, também enriquecido de quadros, através do qual o criado tinha passado para me ir anunciar». Goethe ainda não apareceu em cena e já ficámos cativados. Não é preciso procurar mais: está encontrado o primeiro livro que vou ler este ano.