Uma longa história de ameaças à democracia

De Washington a Brasília, passando pelo Sri Lanka, Iraque, El Salvador, Nova Zelândia e até Madrid, centros do poder do Estado foram alvos de ataques. A revolta cingalesa até foi usada como nome de código pelos bolsonaristas, em Bagdade o assalto ao poder rendeu concessões aos revoltosos e em Wellington até houve fogo posto por…

O ataque à Praça dos Três Poderes, em Brasília, dominou as manchetes, até por trazer à memória o assalto ao Capitólio americano. Mas os atentados contra centros do poder do Estado, símbolos da democracia, têm sido relativamente comuns, do Sri Lanka, ao Iraque, passando por El Salvador e a Nova Zelândia, mais recentemente, ou até mesmo em Espanha, aqui ao nosso lado, se olharmos para o final do século passado.

Aliás, a revolta no Sri Lanka até foi usada pelos amotinados brasileiro como palavra de código para a preparação ao assalto à Praça dos Três Poderes, avançou o Estadão. E citando dados da Google, analisados pela consultoria Bites, que mostram que pouco antes do ataque houve um pico nas buscas relativas ao Sri Lanka no Brasil, sobretudo em Distrito Federal, Roraima, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Goiás, tudo estados onde Jair Bolsonaro venceu. Ainda que os gatilhos para a revolta no Sri Lanka e no Brasil fossem marcadamente diferentes. Se os bolsonaristas eram movidos sobretudo por teorias da conspiração ou apelos a um golpe militar, entre os revoltosos cingaleses as grandes bandeiras eram a raiva contra escassez de alimentos, o aumentos do custo dos transportes ou recorrentes apagões, que chegavam a durar dias. 

Enquanto em Brasília ninguém que assistisse tinha grandes motivos para acreditar que o Governo de Inácio Lula da Silva ia de facto cair, em Colombo por momentos pareceu que a multidão poderia sair vitoriosa, quando tomaram as sedes do Executivo. Imagens da população a festejar na mansão presidencial de Gotabaya Rajapaksa deram a volta ao mundo, mostrando gente a gritar de alegria na piscina e a lavar-se, enquanto crianças nadavam com boias. Alguns tiraram selfies em poltronas luxuosas, outros faziam exercício no ginásio privado do Presidente, que prometera abandonar o cargo e fugira do país. Mas rapidamente o status quo se realinhou, tendo os deputados cingaleses escolhido Ranil Wickremesinghe para primeiro-ministro e recusado eleições antecipadas. Muitos cingaleses «vêm-no como parte da elite política e um aliado do Governo Rajapaksa, que levou a nação insular a uma crise económica sem precedentes», descreveu o Washington Post. 

Este ano também assistimos a uma ocupação à porta do Parlamento da Nova Zelândia, por uma multidão de manifestantes contra a vacinação, em março. Durante mais de vinte dias os trabalhos do órgão legislativo neozelandês ficaram paralisados, com cerca de dois mil manifestantes acampados. Terminando com confrontos violentos com a polícia, tendo revoltosos ateado fogos, avançou o Guardian.

«A polícia esperava que houvesse hostilidade, resistência e violência», declarou Jacinta Arden, falando aos deputados. «Ainda que tenham planeado a contar com isso, é uma coisa completamente diferente assistir a isso», salientou a primeira-ministra neozelandesa.

Um caso mais sangrento foi quando milhares de revoltosos tomaram de assalto o Parlamento iraquiano, que fica dentro da chamada Zona Verde, uma área altamente fortificada criada pelos americanos durante a sua ocupação. Tratavam-se de fiéis apoiantes de Muqtada al-Sadr, um clérigo xiita, dos mais influentes do Iraque, cujo partido fora o mais votado mas não conseguira formar Governo. Al-Sadr não estava nada satisfeito com a crescente influência de partidos xiitas pró-Irão. E, em junho, os seus homens enfrentaram disparos de granadas lacrimogéneas e atordoantes, mas mesmo assim conseguiram barreiras da Zona Verde, num assalto que fez mais de uma centena de feridos. Antes que Al-Sadr ordenasse aos amotinados que recuassem, após conseguir concessões.  

Claro que os mais perigosos ataques à democracia não vêm necessariamente de multidões furiosas, mas das Forças Armadas. Como foi o caso em El Salvador, quando o próprio Presidente ordenou a militares que fossem ao Parlamento, em fevereiro de 2020, intimidando os deputados. Entraram como que preparados para uma batalha, de capacete, colete à prova de bala e armas automáticas. Ficando parados, a olhar, enquanto Nayib Bukele exigia que os deputados aprovassem um empréstimo de 109 milhões de dólares para comprar equipamento militar. 

Até o Congresso dos Deputados dos nossos vizinhos espanhóis já foi alvo de um ataque, em 1981, quando guardas civis entraram de rompante, sob o comando do tenente-coronel Antonio Tejero, no chamado 23-.F. O golpe de Estado foi abortado, presumivelmente por falta de apoio, nunca se percebendo exatamente quais os seus objetivos. «Toda a gente quieta», gritou Tejero, de tricórnio na cabeça, enquanto entrava no Parlamento, presumivelmente tentando instalar um Governo militar. O vice-primeiro-ministro Manuel Gutiérrez Mellado corajosamente tentou pôr na ordens os militares, sendo empurrado para o lado enquanto estes disparavam uma salva de metralha para o ar. Mesmo aí houve deputados a recusar ceder, em defesa da democracia espanhola. Talvez tenha sido isso que quebrou o golpe., Com os militares a ceder e o então Rei Juan Carlos a declarar-se contra os golpistas perante as câmaras de televisão.