Francamente, senhor primeiro-ministro…

Não vejo pessoas com alguma dimensão sujeitarem-se a preencher um papel com cruzinhas sobre a sua vida e a de familiares.

Apertado pela sucessão de casos que abalaram o seu Governo, António Costa mandou fazer um questionário onde os futuros convidados para lugares governativos serão confrontados com três dezenas e meia de perguntas, desde os impostos à situação criminal.

Confesso que, se fosse convidado para o Governo, sentir-me-ia humilhado com tal interrogatório. 

Qualquer pessoa minimamente séria, caso tenha algum problema com o fisco ou pendência com a Justiça, e for convidada para o Governo, só poderá responder: «Agradeço o convite mas não posso aceitar, por isto ou por aquilo».

Se aceita o convite, sem colocar qualquer questão, parte-se do princípio de que não tem nenhum impedimento.

No limite, podiam dar a ler aos futuros governantes um papel onde se enumerassem as situações de incompatibilidade com o exercício do cargo; mas obrigá-los a preencher e assinar um interrogatório é uma afronta à sua seriedade.

Corre-se o risco de só ter no Governo gente menor, destituída de amor-próprio, indivíduos dispostos a sujeitarem-se ao que for preciso para serem ministros ou secretários de Estado.

O questionário vai, assim, ter um efeito pernicioso. 

Não vejo pessoas com alguma dimensão sujeitarem-se a preencher um papel com cruzinhas sobre a sua vida e a de familiares.

Mas por que é que António Costa se apressou tanto a apresentá-lo, num estilo de ‘casa roubada, trancas à porta’?

É que Costa pratica a arte de se demarcar dos problemas – e esta medida tenta induzir a seguinte ideia: a causa da crise que o Governo atravessou foi a inexistência de um questionário prévio aos governantes, onde tudo fosse esclarecido.

A culpa dos ‘casos’ não foi, pois, dele – foi da inexistência do tal questionário.

António Costa só se esqueceu de explicar por que nunca se tinha verificado em 50 anos de democracia uma situação destas ou mesmo parecida.

Sendo a primeira vez que acontece, é porque tem que ver com a forma como foi constituído este Governo e com mais nada.

O questionário é uma cortina de fumo para esconder responsabilidades próprias.

Nesta crise, António Costa inaugurou um novo modo de fazer politica que ainda não foi devidamente posto a nu.
Inaugurou na política portuguesa uma nova era.

Até aqui, os primeiros-ministros eram os responsáveis pelo que acontecia no Governo.

Lembremo-nos de como O Independente, semana após semana, fustigava Cavaco Silva por causa dos problemas que envolviam os seus ministros ou ‘ajudantes de ministro’. 

Mas Costa não só não assume a responsabilidade por nada – como se viu nos incêndios de Pedrógão ou no roubo de Tancos, em que despachou as culpas para cima de Constança Urbano de Sousa e Azeredo Lopes – como vai muito mais longe.

António Costa considera-se uma ‘vítima’ dos casos que envolvem os seus governantes.

No debate parlamentar, chegou a dizer: «Ninguém gostaria de passar pelo que eu estou a passar».

Ora, isto é absolutamente inédito: o primeiro-ministro não ser o ’responsável’ mas sim a ‘vítima’ daquilo que sucede dentro do seu próprio Governo!

É uma situação nunca vista.

José Sócrates também fazia o papel de vítima – mas vítima das maldades da oposição.

António Costa é vítima dos governantes que escolheu.

É vítima, no fundo, de ser primeiro-ministro – qual pesado fardo que tem de transportar penosamente às costas. 

Mas não foi Costa que o desejou? 

Não foi ele que, para o conquistar, não hesitou em aliar-se ao diabo para desalojar Passos Coelho, que vencera as eleições?

António Costa consegue fazer-se passar por ‘vítima’ de uma situação que desejou e concretizou, passando por cima de tudo e de todos.

Maior habilidade era difícil.

P.S. – Na última edição escrevi que, quando fui para a direção do Expresso, o meu currículo era quase inexistente: tinha apenas o curso de arquitetura, trabalhava num atelier privado e publicara artigos avulsos em vários jornais.

Pequei por modéstia. De facto, além dos projetos como arquiteto, tinha então cinco livros publicados (Do Estado Novo à Segunda República, O 25 de Abril Visto da História, Das Lutas Liberais de Oitocentos ao Advento da República, Da República à Revolta de Braga e O Palácio de Belém). Tinha também sido o autor da grande reportagem O 25 de Abril, Três Anos Depois, emitida pela RTP, e da ideia, guião e primeiros três episódios da série televisiva Os Anos do Século.

Tinha lecionado três anos no Centro de Formação da RTP, na cadeira Escrita para Televisão, e contava variadas presenças na TV como analista político. Tinha tido colunas de opinião no Diário de Lisboa, A Luta, Diário de Notícias e Expresso. E assinava desde o ano anterior, na página 3 do mesmo Expresso, a coluna Política à Portuguesa. Nesta altura acabara de fazer 35 anos.