A Educação em Portugal: um ideal perdido

A ideologia oca dos últimos 25 anos resultou no seguinte: empobrecidos por um aparelho tentacular de estupidificação mediática que impõe a superficialidade e a ignorância como apanágio do que é cool, as turmas são hoje aglomerados de adolescentes e jovens adultos (crianças também) para quem o professor é uma figura ridícula e a ridicularizar.

Por António Carlos Cortez, professor, poeta, ensaísta

Escreveu Paulo Freire (1921-1997), em A Pedagogia da Indignação (Unesp, S.P, 2000) que cabe aos professores educar para uma permanente interrogação da condição humana. Esse questionamento não é possível, como o mesmo pedagogo ensina, quando o sistema global de educação se baseia num projeto de competição desenfreada, de corrida fratricida pelas energias já esgotadas do planeta, e do Outro.

Vivemos hoje uma educação falha de propósito digno desse nome porque é a ganância, o sentimento da posse, o lucro e a especulação do dinheiro que tudo move. Os avanços tecnológicos, na verdade, apenas comprovam, nas aulas que vemos do 1.º ciclo ao Secundário, dos cursos em escolas superiores, às Universidades, o óbvio: apesar dos ecrãs, apesar da consolidação de competências digitais adquiridas por muitos – alunos, professores, encarregados de educação e outros agentes educativos – há um real empobrecimento generalizado da qualidade das aulas ministradas por uma classe docente esgotada, desencantada e humilhada ao longo de décadas. 

Nenhuma aula se faz sem a relação biunívoca no processo ensino-aprendizagem. O professor faz as turmas e o interesse pelas matérias deve decorrer duma lecionação que, erudita, instigante e livre, suscite nos estudantes a erudição, a agitação dos afetos e da inteligência. Sem isso a escola é o deserto. Para professores e alunos. Uma fábrica de cretinice, hipocrisia e de esvaziamento total da capacidade de imaginar – esta a faculdade mais necessária para crianças e jovens, mas que a escola, rolo compressor de objetivos absurdos e que visam apenas fazer dos alunos novos escravos para o mundo do trabalho, se vê obrigada a tolher, a cercear. Uma escola sem imaginação, sem memória e sem cultura, é isso que temos quase 50 anos depois do 25 de Abril. Como explicar isto? As greves atuais dos professores, a que se devem? 

O esmagamento burocrático de que nós, professores, temos sido alvo, bem como os baixos salários que caracterizam, em toda a linha, o agradecimento dos sucessivos governos a uma classe profissional responsável pela formação das vossas crianças e jovens, essa é uma primeira explicação. 

Um Governo que não liberte os docentes desta ditadura é um governo de técnicos da pior espécie. Mas há mais razões: o congelamento, há mais de dez anos, de uma carreira que, segundo dados do PORDATA, regista apenas 3% de jovens licenciados interessados em seguir a via de ensino, quando, em 1996, havia cerca de 14% de jovens a seguir a formação vocacional. Ora, a deficiente formação de professores – que redunda em profissionais sem leituras feitas e paupérrimo universo referencial que permita aos alunos terem cultura letrada e não a instrumental e simples competência digital, ou técnica, bem como exemplos de cidadania –, tudo isto, a somar aos projetos de doutrinação emanados a cada novo ministro detentor desta pasta, não permite que haja o tão propalado rigor e excelência de que tantos gostam de ser os arautos. Uma escola de ar rarefeito, onde se vive um ambiente que faz lembrar o admirável mundo novo de Huxley, é isso que os governantes querem? Deixaremos, nós professores, que isso aconteça? 

Nós, professores, sentimo-nos vigiados na nossa ação pedagógica, pois que vivemos, sem escapatória alguma, entre o diretor pidesco, a rede burocrática e os pais fanatizados pelo endeusamento dos filhos. Há exceções, mas o quadro geral é este. Somos nós, professores, quem tem de fazer o pino na lua para sobreviver, com míseros patacos, ao processo kafkiano de educar em Portugal, enquanto sucessivos ministros botam discurso sobre uma escola que desconhecem, sobre um sistema que, lógico e funcional até aos anos 90, foi desmantelado em nome de provinciana inovações, quer ao nível do regime de colocações, quer ao nível dos programas. Quem ganhou com isso? Não os professores. Não os estudantes. Não o país. 

A educação das nossas crianças e jovens deveria ser suprapartidária. Currículos adequados – e sem facilidades quanto ao que pedimos aos estudantes – à competitividade global, com lecionação exigente de conteúdos de literatura, artes, história, filosofia, história das ideias, e, como tal, professores bem remunerados, eis o que faria desta uma profissão aliciante intelectual e materialmente. Um governo que não entende a urgência de mudar neste sentido, cujos ministros não percebem que isso é vital para que este país forme gerações críticas, sensíveis, atentas ao mundo é um país a caminho da falência do seu futuro. 

Que vemos hoje? Que não existe qualquer plano para Portugal vir a ter quadros superiores com qualidade. Cidadãos que gostem de viver nesta democracia. A não ser a peregrina ideia de municipalizar o ensino, que o mesmo é dizer: libertar o ME de funções que são suas e de mais ninguém, hoje tudo, ou quase tudo, quanto emana dos gabinetes onde se decidem as nossas vidas cheira a doutrinação. Que decisões foram tomadas para rever o acriticismo com que os professores são avaliados? Que justiça há nesse processo de avaliação docente, tão falso quanto promotor de invejas, intrigas e perseguições entre colegas? Para quando a contagem integral do tempo de serviço? Somos menos, valemos menos que enfermeiros, juízes e médicos? 

Que discurso existe, da parte do ME, relativamente ao poder e respeito que se deve dar à classe docente para que os casos de violência sobre professores se não democratizem ao ponto da mais absoluta anarquia nas escolas? Para quando um ministro que não endeuse as criancinhas e adolescentes e os pais, infantilizando e mentindo, ao mesmo tempo que diaboliza quem forma e educa – os professores? Por tudo isto a nossa revolta e a nossa vontade de agir justificam-se. 

Em todo o caso, para além dos factos elencados nos parágrafos anteriores, há outros problemas absolutamente centrais na educação em Portugal, os quais, responsavelmente, deveriam ser aberta e claramente debatidos. O Ministério da Educação, mais do que nenhum outro agente, deveria chamar os docentes à sua sede e, autenticamente, saber de viva voz o desencanto que grassa por essas escolas.

Referirei alguns outros factos que, com os anteriores, estão interligados. Pode ser que o ME nos ouça. Um facto indesmentível é este: ao quotidiano burocrático («burocrático», como escreveu Herberto Helder) de que estamos reféns, impedindo-nos de lecionar a sério, com tempo e com saber, e com salários dignos, soma-se a indigência (é a palavra e não há outra) da maioria dos alunos. Como explicar que quase 50 anos depois do 25 de Abril os nossos jovens, na sua maioria, não saibam estar e ser na escola? Quem conheça o dia-a-dia das escolas tem de ser honesto: lecionar hoje é, desde logo, saber que a maioria dos estudantes chega ao Secundário e à Universidade sem saberem ler e escrever bem. Nada sabem de história, de cultura portuguesa e europeia, nada de geografia e de línguas estrangeiras, num quase total analfabetismo. É mentira? Nós, professores, não nos queixamos desta realidade? Pois isso deriva também do nosso esgotamento, da ausência de formação de professores, uma classe que deve pensar sobre a dimensão intelectual do seu trabalho. Como explicar isto? 

A ideologia oca dos últimos 25 anos resultou no seguinte: empobrecidos por um aparelho tentacular de estupidificação mediática que impõe a superficialidade e a ignorância como apanágio do que é cool, as turmas são hoje aglomerados de adolescentes e jovens adultos (crianças também) para quem o professor é uma figura ridícula e a ridicularizar.

Filhos do hip-hop, da brutalização da vida contemporânea, sem linguagem e tendo como única formação aquilo que os mídia lhes oferecem, que lhes importa, de facto, a escola? Qual o valor de se tirar um curso superior neste país quando se sabe, de antemão, que quer se estude ou não todos irão para a Universidade e farão um curso (diz-se) ‘superior’?

Que ideia de mérito estamos a passar aos mais jovens?

Mais: A televisão violenta e imoral promove gente sem qualquer valor na sociedade portuguesa. Como escreveu Karl Jaspers, à TV cabia a honrosa missão de, chegando às massas, civilizar, informar com imparcialidade, recusar-se a ser veículo de alienação. Excetuando um caso, os canais televisivos contribuíram para a brutalização do país, alienando, empobrecendo os portugueses. A prova está numa recente e humilhante presença, em tempo de pandemia, de docentes da tele-escola num dos programas do canal do Estado; programa dos mais estúpidos que temos tido. Sem modelos a seguir, sem referências no mundo que os rodeia, aos jovens resta-lhes mergulhar no mundo virtual das diabólicas redes sociais, o verdadeiro educador atual. Não pensarmos e agirmos sobre esta dimensão educativa é também desmerecer da nossa luta justa e urgente. 

Com efeito, que Portugal é este de que a escola é o melhor espelho? É o país dos heróis da bola, dos comentadores da camisa aberta, dos ditos ‘senadores’ que ninguém entende por que razão são fazedores de opinião, sempre inquinados pela ideologia oca dos partidos que representam. país que, dos Gouchas e Cristinas, às estrelinhas do music-hall lusíada, deveria perguntar: como resistir à degradação geral? Quem está a ganhar com isto? Nós, professores, agentes máximos da formação do país, temos de levar estas perguntas também para a praça pública e promover um debate profundo! Quando, enfim, o mercado editorial promove também uma literatura de grau zero, quando as Humanidades e as Artes são o parente pobre da ideologia técnica, que educação estamos a facultar de facto? Pensar a educação significa pensar a cultura no seu todo, e, no seu todo, sem pejo, reconhecer que educar só é possível com professores, pais e governantes críticos da alienação, a outra face dos regimes totalitários. 
 
Se Paulo Freire disse, e bem, que todo o professor digno desse nome deve ser um agente da indignação nascida do questionamento da condição humana, acrescento palavras de Mário Dionísio, insertas em O Quê? Professor?! (Casa da Achada, Lx, 2015): «Além do bem-estar material (do seu projecto) o socialismo implica uma autêntica participação dos trabalhadores nas decisões gerais e sectoriais, na condução política do país afinal: não só cumprindo ordens, portanto, […] mas nelas pessoalmente intervindo. O que é diferente de apenas seguirem ou recusarem o que lhes é proposto para ser escolhido […]» (p.189). Tal só é possível com «aquele mínimo de preparação cultural (não tenhamos medo da palavra por demagogia do momento) que permite o reconhecimento aprofundado das matérias em debate e sobretudo o espírito crítico que faz parte dele e da sua coerente utilização. O ser explorado determina uma justa atitude de protesto e o mais que explicável desejo de intervir […]» (idem, p.190). 

No artigo que cito, de Mário Dionísio, fala-se, a dado momento, da herança do fascismo: um ministro do tempo de Salazar e Caetano também criou o slogan ‘batalha da educação’, a que era preciso vencer. Como vencer, se chegámos ao ponto de termos abastardado qualquer ideal de educação porque vivemos no abastardamento facilitante, autorizado por uma mentalidade burocratizada?

Como vencer se se gerou, depois do 25 de Abril, o ciclo vicioso e viciado das limitações reivindicativas da classe docente porque, sem um propósito realista de salários justos para uma classe que fosse culta, e autoexigente, tudo redunda em nada. Porque à indignação deve acrescentar-se um ideal de cultura, leia-se o escreve Mário Dionísio na página 193 do livro que citei. Seria bom trocarmos umas ideias sobre o assunto. Agir, lutar, mas pensando a educação no seu todo e por isso mesmo reivindicando salários europeus neste país à esquina da Europa.