Transfake. Uma luta pela “representação” e “visibilidade”

A polémica invasão do palco São Luiz por um trans acendeu o debate sobre o que é representar. O i falou com a atriz que substituiu André Patrício no papel de Lola, na peça Tudo Sobre a Minha Mãe. Maria João Vaz explicou o que tem feito para viverquando não tem trabalhos na representação.

Numa das cenas mais importantes do filme Tudo Sobre a Minha Mãe (1999) de Pedro Almodóvar, a atriz espanhola, Antonia San Juan, que interpreta Agrado, uma mulher transexual, afirma no seu icónico monólogo que “custa muito ser autêntica”.

“Não se pode ser mesquinho com estas coisas porque alguém é mais autêntico quanto mais se parece com o que sonhou ser”, conclui.

A “autenticidade” tem sido um dos principais assuntos de debate no seio da comunidade portuguesa depois de um protesto no Teatro São Luiz, enquanto decorria uma peça baseada no filme do cineasta espanhol, onde a atriz trans brasileira, Keyla Brasil, subiu até ao palco seminua enquanto dos balcões do teatro outros ativistas mostravam um enorme pano onde estava escrito “transfake”, termo utilizado para descrever quando uma personagem trans é interpretada por um ator ou atriz cisgenéro (alguém que se identifica com o género que foi atribuído à nascença).

A atriz exigia “desce do palco! Tenha respeito por este lugar”, dirigindo-se a André Patrício, ator cisgénero que interpretava Lola, uma mulher transgénero, expondo como considerava a situação injusta.

“Boa noite, Chamo-me Keyla Brasil. Sou atriz, sou prostituta”, disse, mesmo depois do Teatro ter baixado o pano do palco. “O que está a acontecer agora é um assassinato e um apagamento das identidades travesti. Se contrataram quatro mulheres e três homens, porque é que não contrataram duas pessoas trans para fazer a personagem? Sabem porque é que eu trabalho como prostituta como [as personagens] Agrado e Lola? Porque não temos espaço para estarmos aqui neste palco. Neste lugar sagrado”. De seguida disse que “chupa pau” porque não tem emprego no teatro. Alguns atores profissionais responderam nas redes sociais que também, muitas vezes, não têm emprego e que não é por isso que se prostituem.

Este protesto, rapidamente, teve efeitos. André Patrício acabou por abandonar a personagem Lola (continua na peça onde interpreta outras três personagens) e a atriz trans, Maria João Vaz, passou a integrar o cast desta peça.

Em entrevista ao i, esta comparou o ato que aconteceu em cima de palco como uma revolução, recordando como Maria Antonieta e o seu esposo, Luís XVI, terminaram na guilhotina durante a Revolução Francesa, as cinco vítimas mortais do 25 de Abril ou os esforços dos aliados europeus contra a Alemanha Nazi. No entanto, esclarece que, apesar de apoiar o objetivo deste protesto, não concorda com a forma como este foi feito.

“Eu não subscrevo quaisquer atos de violência, sejam eles quais forem. Eu defendo a liberdade de expressão e a liberdade intrínseca das pessoas”, diz. “Se, por exemplo, fosse para a Segunda Guerra Mundial, a lutar contra os nazis, eu nunca pegaria numa arma, eu provavelmente iria recitar poemas ou cantar músicas para os soldados para os animar. Ou seja, eu subscrevo a causa, mas não concordo com o ato de pegar em armas”, declarou, reforçando a ideia que é uma pacifista.

“Não aprovo o método, não é da minha natureza aprovar atos que forçam coisas. Prefiro, por exemplo, estar a responder à sua entrevista ou ir a uma televisão falar sobre o que aconteceu, participar neste espetáculo de teatro ou qualquer outro e dar visibilidade e representatividade da comunidade”, esclareceu.

“Há muitas pessoas trans que vivem na sociedade sem divulgarem que são trans. É uma maneira de se protegerem, porque pode criar problemas de aceitação no emprego, pode gerar marginalização, discriminação, agressividade, ódio, violência”, enumerou, acrescentando que o que aconteceu no São Luiz é um mero exemplo de um limiar a uma comunidade que já sofreu tanto.

Uma questão de “representatividade e visibilidade” Depois de ter sido afastado da peça, o ator André Patrício, que o i tentou contactar sem sucesso, revelou ter-se sentido “violentado” e “castrado”.

“Quero dizer-vos que não saí da peça, como várias pessoas escrevem ou pensam. Porque faço mais 3 personagens. (A situação teria sido bem diferente se eu tivesse ficado desempregado)”, escreveu na sua conta pessoal de Instagram. “Concordo que uma minoria, agredida e maltratada, assassinada até, deve ser ajudada e apoiada pela sociedade. Sou totalmente a favor da igualdade de oportunidades, de direitos e da inclusão. Seja no trabalho em geral, não só nas artes, seja na sociedade”, acrescentando que “não é a favor da violência nem da invasão de palco”.

“Senti-me violentado e castrado na minha arte, no meu trabalho. Também nós, trabalhadores da cultura (Cis ou Trans), somos uma minoria. Não temos as devidas e equalitarias condições de trabalho na nossa área. E lutamos para sobreviver”, admitiu.

Após ter sido anunciada esta substituição, diversas pessoas atiraram-se às redes sociais para mostrar o seu desagrado com a situação e o sucesso do protesto, com pessoas como o antigo coordenador do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, a fazer diversas publicações sobre este assunto, questionando se “o teatro é representação (por pessoas que representam papéis artísticos) ou é apresentação (por pessoas que se apresentam a si próprias)?”.

“Pergunto: do ponto de vista da representação artística, uma mulher pode representar um papel de homem? Um homem pode representar um papel de mulher? Uma mulher trans pode representar um banqueiro branco de Wall Street? Uma negra pode representar um branco? Um branco pode representar uma negra? Pode, na minha opinião, é unicamente uma escolha artística em que o teatro é livre e não pode ser submetido a qualquer tipo de inquisição censória”, escreveu, usando como referência a peça de teatro Ricardo III de Shakespeare, interpretada pelo Teatro Público de Nova Iorque no verão passado, onde esta figura era representada pela atriz negra, Danai Gurina.

Abordando estas críticas, Maria João Vaz fez questão de apontar que considera todas estas comparações e argumentos como falaciosos.

“Shakespeare escreveu uma peça, o Otelo, sobre um mouro que durante anos foi interpretado por homens brancos, até pelo Laurence Olivier, que inclusive escureciam a cara. Faz sentido recorrer a esta prática quando podemos ter uma pessoa afrodescendente a fazê-lo?”, questionou. “Essas pessoas são preteridas, muitas vezes não têm tantas oportunidades de trabalho, mesmo quando estão diretamente ligadas à personagem”.

Para a atriz, que esclarece que nem faz questão de interpretar apenas personagens trans, acrescenta inclusive que esta foi a primeira vez que fez este tipo de papel desde que se assumiu como uma mulher trans, esta é uma questão de “representatividade” e “visibilidade”

Esta conta-nos que, apesar de ter tido alguns trabalhos depois de ter feito o seu “coming out”, no final de 2020, que considera ter sido devido ao facto de ser uma “novidade” em Portugal, durante algum tempo esta enfrentou um “deserto” de oportunidades que a obrigaram a embarcar em diversos trabalhos precários.

Depois de ser rejeitada em produções teatrais, de televisão e cinema, tentou trabalhar como empregada de mesa e lojas de roupa, também sem sucesso, chegou a ocupar o cargo de vigilante nos Museus de Arte Antiga e Arte Contemporânea.

No entanto, um local de trabalho que recorda com carinho e enche de elogios é o Burger King, afirmando que o “grupo Ibersol como o mais inclusivo de Portugal”.

Depois de alguns meses, esta abandonou o restaurante de fast food para trabalhar no Teatro Praga, onde, em breve, irá repor espetáculos no Porto com esta companhia, contudo, quando esta oportunidade terminou, estava outra vez de mãos atadas.

Vendeu diversas esculturas, Maria João Vaz revela-nos que também é escultora, a preços mais baixos que o habitual porque precisava do dinheiro para “sobreviver”, e, depois de voltar a receber diversas negas na área de representação, chegou à conclusão que teria de regressar ao Burger King.

“Tinha sido bem recebida e as pessoas que trabalharam comigo nestes anos, como os gerentes, disseram que eu tinha um lugar para regressar”, recordou, descrevendo que, neste espaço, pode utilizar as qualidades para realizar um bom trabalho.

“É interessante que no Burger King não há qualquer discriminação de género ou de idade, ao contrário de outros anúncios onde nos desafiam a fazer parte de uma equipa ‘jovem e dinâmica’. Comigo recebem outras coisas que chegam com a vivência e experiência da vida, como uma empatia diferente a receber clientes”, descrevendo que este sentimento era retribuído e que, em muitos casos, diversos clientes expunham a sua vida e desabafavam consigo.

No entanto, a atriz confessou que, mesmo considerando que este é um “emprego com muita dignidade”, é muito cansativo e desgastante.

“É um emprego precário, com salário mínimo em que as pessoas trabalham muitas horas, é intelectualmente nulo e é muito desgastante em termos físicos e psicológicos, porque, em pouco tempo, temos de fazer comida para muitas pessoas com pouca ajuda”, descreveu.

Por enquanto, com esta oportunidade para mostrar os seus talentos na peça baseada no filme de Almodóvar, Maria João Vaz não terá de regressar às cozinhas do restaurante de fast food, mas e em relação aos restantes atores da comunidade trans? Esta deixa um alerta reforçado para a parca representação e um apelo para a contratação destas pessoas.

“Estes atores devem ser utilizados, as pessoas trans que são preteridas não é porque são más na sua arte, é porque são trans e existe um desconforto, há uma desconfiança em relação ao que o público vai achar e com receio de que podem perder audiências”, acusa.

“Que sejamos nós a interpretar as nossas vivências”, afirma.