O exemplo nos antípodas

Põe-se tudo no mesmo saco ou atira-se mais lama para a ventoinha para salpicar o maior número de pessoas e instituições possível para que no lodaçal instalado se torne quase obrigatório retirar a conclusão de que, à falta de soluções, de uma estratégia e de um projeto de futuro para o país, a única alternativa…

No escaparate, o Público anuncia que «Há entre 660 e 680 mil portugueses a viver em pobreza energética severa», o Diário de Notícias escolhe para manchete «TAP paga 8 milhões para travar greve e promete bónus por acordo de empresa», o Correio da Manhã é do dia anterior e dá conta que «Novas denúncias envolvem dois ministros», o Jornal de Notícias destaca «Hospital indemniza pais devido a parto que causou deficiência permanente em bebé», o Jornal de Negócios adianta que «Mais de 80% das insolvências já são de particulares», o i chama a atenção para o altar-palco adjudicado por ajuste direto à Mota-Engil por 4,2 milhões de euros para a missa que o Papa Francisco, franciscano, vem celebrar a Lisboa na Jornada Mundial da Juventude.

Ao lado, a Caras, revista social que chegou a ter a pretensão de ser a Hola! à portuguesa, faz capa com a companheira de Cristiano Ronaldo, Georgina Rodríguez, de véu cuidadosamente posto sobre a cabeça.

Na tv, a SIC-Notícias aponta mais de uma mão cheia de governantes que não passariam no crivo do questionário que António Costa inventou para deitar para debaixo do tapete os ‘casos e casinhos’ que se sucedem à velocidade da luz, na CMTV há mais uma acalorada discussão sobre a arbitragem de um jogo qualquer e a CNN-Portugal termina a semana dando gás a uma sondagem que faz embandeirar em arco os sociais-democratas crentes de que com Luís Montenegro é que é, mas cujos dados mais significativos são a queda vertiginosa da popularidade do Governo socialista e a subida em flecha do Chega de André Ventura.

Assim vai o país na bolha mediática que serve de desculpa para relativizar ‘casos, casinhos e casões’.

Põe-se tudo no mesmo saco ou atira-se mais lama para a ventoinha para salpicar o maior número de pessoas e instituições possível para que no lodaçal instalado se torne quase obrigatório retirar a conclusão de que, à falta de soluções, de uma estratégia e de um projeto de futuro para o país, a única alternativa é pôr umas boas pedras no caminho para que a caravana continue a passar, se possível até sem os cães a ladrar.

É o país que temos. Desprovido. Desqualificado. Corrompido. Pantanoso.

Por mais do que uma vez elogiei nesta página a líder trabalhista e primeira-ministra neozelandesa, Jacinda Ardern, pelas suas qualidades de liderança, de comunicação, de afirmação como mulher e política com rumo, autoridade, estratégia, juventude e esperança – bem patente no sorriso rasgado que irradiava mesmo em momentos críticos (como quando anunciou as restrições para travar a pandemia da covid-19) ou de tensão (como naquele célebre tremor de terra que a apanhou a falar em direto para a televisão).

E que volta agora a ser notícia por ter decidido abandonar a chefia do Governo e do partido, anunciando que não se recandidatará nas próximas eleições gerais ao cargo que teve o «privilégio» de exercer nos últimos anos ao serviço do povo e do país – assim o qualificou a própria.

Jacinda Ardern tem 42 anos e foi com emoção – e com (infelizmente invulgar) sentido de responsabilidade – que tornou público o seu adeus à política, afastando qualquer ‘escândalo escondido’ ou outra motivação para a sua decisão que não tenha sido a consciência de ter chegado a hora de abandonar as funções que lhe estão confiadas pelo simples mas determinante facto de ter deixado de se sentir ser a pessoa certa para liderar o partido e o país.

Negou também que as sondagens (penalizadoras) tenham estado na origem da decisão, até porque, como líder que é, nunca se deixou condicionar por elas.

Já a ingratidão que evidenciam, com toda a certeza, não lhe foi indiferente – nada é mais desmotivador que a ingratidão.

Ao longo dos últimos anos, a primeira-ministra neozelandesa foi-se afirmando como símbolo do progressismo e do feminismo na aldeia global em que vivemos. Uma referência, aliás, tanto no Oriente como no Ocidente.

No momento do anúncio da saída, a líder trabalhista foi questionada pelos jornalistas sobre os seus planos mais imediatos e para o futuro. E não se escusou a responder sem complexos nem hesitações: levar a filha à escola e casar com o seu companheiro.

Não é interessante?

A Nova Zelândia fica mesmo nos antípodas de Portugal e da Europa.

E não é só geograficamente.

Ingratidão há em todo o lado, mas o mundo está mesmo virado ao contrário ou de pernas para o ar.

E nós, para mal dos nossos pecados, estamos no lado do avesso ou com a cabeça enterrada na areia.