‘A biografia proporciona-nos uma visão íntima da história’

O aclamado autor, discípulo de George Steiner e amigo de W. G. Sebald, explica que cada biografia que escreve é «uma viagem de descoberta». E defende apaixonadamente que a ciência e as artes não podem estar de costas voltadas.

Tinha 18 anos quando foi para França, sozinho, seguir as pisados do escritor Robert Louis Stevenson. «Foi um batismo de fogo», reconhece. Em nove dias andou 200 quilómetros, suportou a solidão e as tempestades, dormiu ao relento, embrulhado num saco-cama, «à la belle étoile» – debaixo das estrelas. Dessa experiência resultou o seu primeiro livro. E uma paixão pela biografia que se mantém até hoje.

Aos 77 anos, Richard Holmes é conhecido sobretudo como o autor de A Era do Deslumbramento, que acaba de ser reeditado em Portugal pela Gradiva. Um livro que nos leva ao Tahiti de finais do século XVIII, pela mão do capitão Cook e do botânico Joseph Banks, mas também ao coração de África, ao ambiente opressivo das minas do Norte de Inglaterra e aos céus de França, onde voaram os primeiros balões de ar quente. Um livro, em resumo, que nos conta a história das conquistas científicas da era romântica, da descoberta do planeta Úrano por William Herschel às experiências de Humphry Davy com gás hilariante. E dos respetivos protagonistas.

Apaixonado por viagens, poesia e história da ciência, Holmes tem também o seu quê de romântico. Para escrever o seu livro sobre balonismo, Falling Upwards (Cair para Cima), andou de balão na Austrália, na Europa e no Novo México. Outro dos seus hóbis era a vela – e um dia teve de ser resgatado por um helicóptero de salvamento no meio de uma tempestade no Mar do Norte.

Foi aluno de George Steiner em Cambridge e atualmente vive em Norwich, onde conheceu o escritor de culto W. G. Sebald. «Costumávamos encontrar-nos na escadaria da universidade», recorda. «Ele vinha a descer da aula dele, a queixar-se dos alunos, e eu a subir para a minha. Era um homem fascinante – passámos algumas belas tardes juntos».

Richard Holmes falou com o Nascer do SOL por Zoom a partir do seu escritório em Londres, na vizinhança da Biblioteca Britânica. Ali tem os seus 200 cadernos de apontamentos e uma janela com vista para a colina onde fica a casa do poeta Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), um dos seus heróis literários.

Muitos historiadores, em especial da corrente marxista, tendem a descartar o indivíduo para se focarem nas grandes correntes históricas. Por que optou por dedicar ao género biográfico? Por acreditar que as vidas individuais importam?

Quando queremos contar uma história, perguntamo-nos se é a pessoa que faz a sua própria vida ou se a vida é controlada pelo destino. O primeiro livro que escrevi chamava-se Footsteps e era sobre a minha ida para França quando tinha 18 anos e andei a percorrer os mesmos passos que o escritor Robert Louis Stevenson [autor de A Ilha do Tesouro]. Conhece o livro dele Viagens com um Burro pelas Cevenas?

Julgo que nunca foi publicado em Portugal…

A minha ideia foi andar por aquelas colinas com o livro na mão e imaginar o escritor ali um século antes, quase como se pudéssemos conversar. Foi assim que me iniciei na biografia. E pareceu-me que a porta de uma vida individual se abria para a História de uma maneira completamente original e que nos permitia agarrar os grandes movimentos sociais – mas focando-nos numa vida. Por exemplo, os diários e cartas fazem-nos viajar através do tempo e colocam-nos perante a personalidade do escritor. Sejam as cartas de viagem de Shelley ou os extraordinários Diários que Coleridge manteve durante toda a vida, que cobrem tudo – as suas amizades, as suas leituras, os seus sonhos e até o consumo de drogas [ópio]. A biografia proporciona-nos uma visão íntima da História, a qual podemos depois expandir noutras direções. Foi sempre isso que me atraiu, mais do que a História propriamente dita.

É um pouco como o contador de histórias, que pega num objeto próximo e a partir dele nos transporta para outra realidade?

Sim, é isso. Começa com uma pequena anedota, uma história colorida, e depois leva-nos para questões mais vastas. Quando fiz essa primeira viagem com Stevenson, fui mantendo um caderno onde anotava tudo o que estava a acontecer. Chamo a esta técnica ‘o caderno com duas faces’. Na página da direita anotamos os factos objetivos, as datas, os lugares, tudo tão cientificamente quanto possível. Na página da esquerda, pomos as nossas reações, as nossas sensações, as dificuldades que enfrentamos, até aquilo com que sonhamos, para termos um lado completamente subjetivo da biografia. E o objetivo final é obter uma combinação destas duas perspetivas. Quando dei aulas do curso de biografia que lancei na Universidade de East Anglia, dizia isso aos meus alunos: ‘Tenham sempre um bloco de notas, e guardem um lado para os factos objetivos e o outro para as vossas próprias impressões’. Isso leva-nos às diferenças entre ciência e literatura, entre o objetivo e o subjetivo. Olhando à minha volta, penso que devo ter aqui qualquer coisa como duzentos destes blocos de notas. Esse método faz de cada biografia que escrevemos uma história muito pessoal, uma viagem de descoberta.

Até onde o levou essa metodologia de seguir os passos dos seus biografados?

Quando fiz a biografia de [Percy Bisshe] Shelley [poeta, 1792-1822, marido de Mary Shelley, a autora de Frankenstein], andei por toda a Inglaterra, pela Escócia, Irlanda, França e, obviamente, Itália. E a biografia de Coleridge além de Inglaterra, levou-me a França, à Sicília, a Malta e a Itália. Costumo dizer que se Shelley não se tivesse afogado em Itália, eu também teria ido com ele para a Grécia. Seguir literalmente os passos do biografado parece-me uma parte essencial do processo de escrita. Ou seja, por um lado temos a pesquisa literária, a pesquisa na biblioteca, os manuscritos; e por outro as viagens que nós próprios fazemos. Lembro-me de, ainda muito jovem, ir a Itália e ficar em San Terenzo, de onde Shelley partiu na sua última viagem de barco. E consegui arranjar um quarto mesmo ao lado da casa onde ele ficou com a sua família. Isto foi no inverno, a vila estava completamente deserta. Tinha as cartas dele comigo, e a minha varanda dava para o mar, para o sítio onde o barco dele se afundou. Eu quase me podia debruçar para a varanda do lado e dizer: ‘Quero perguntar-lhe uma coisa’. [risos] Sei que isto parece imaginação a mais, mas quando estamos a escrever uma biografia temos de atacar o nosso tema com todos os meios ao nosso alcance. Quando regressei a Inglaterra, fui à Biblioteca Bodleiana, em Oxford, e consegui encontrar os manuscritos dos poemas que ele escreveu naquela varanda. Nas costas da folha estão os desenhos das velas que ele fez para o barco. Cruzando toda esta informação conseguimos chegar muito, muito perto do nosso sujeito. E penso que é esse o objetivo de uma biografia: trazer a pessoa de novo à vida e colocá-la perante o leitor, tanto nos pormenores como na perspetiva mais longa.

Foi nessas andanças que o barco onde ia apanhou uma tempestade?

Isso foi mais tarde, numa época em que eu gostava muito de velejar. Houve um outono em que estava a regressar de Dieppe, na Normandia, e o barco atravessou o Canal da Mancha e entrou no Mar do Norte. Estava uma noite muito má, tempestuosa, e várias coisas que correram mal. Tudo o que era elétrico deixou de funcionar, ficámos no meio da tempestade sem equipamento. O barco desviou-se vinte milhas e encalhou num banco de areia. Fomos atirados para a água. Não tínhamos rádio, mas tínhamos foguetes de sinalização. Lançámos alguns foguetes e felizmente houve um barco que estava a passar e viu. Por fim, apareceu um helicóptero de salvamento que nos tirou do mar. Eu estava com dois companheiros. Acontece que os Serviços Marítimos têm um registo de todos os navios – e viram que eu ia naquele. Quando chegámos ao aeroporto, o oficial mais graduado entrevistou-nos. ‘Você é o tipo que escreveu sobre Shelley. Não acha que está a levar as coisas longe de mais?’. [risos]

Assustador!

Sim, diria que foi uma experiência um bocadinho traumática.

Falemos então d’A Era do Deslumbramento, um livro sobre a ciência romântica. Quando falamos do Romantismo, pensamos em poesia, música, pintura. Um dos traços do Romantismo é precisamente o primado do subjetivo. Isso não é contrário ao espírito da investigação científica tal como a conhecemos?

Isso é uma longa história, que remonta a 1959, quando o romancista inglês C. P. Snow publicou uma célebre palestra intitulada ‘As Duas Culturas’, onde dizia que os cientistas e os criadores – literatos e artistas – nunca se compreenderiam uns aos outros. Isso pareceu-me uma ideia terrível, abstrusa. Só para lhe dar um pouco de contexto, eu estudei no Churchill College, que é sobretudo de ciências, mas também tem artes. Portanto fiz a minha formação no meio de cientistas, antes de ir estudar com George Steiner. Logo na altura pareceu-me fundamental que os artistas e os cientistas tinham de se entender. Isto aconteceu naturalmente porque mal comecei a escrever sobre Shelley descobri que ele era fascinado por astronomia.

Ou seja, a literatura e a ciência não tinham de estar de costas voltadas.

A astronomia é um dos ramos científicos que mais se expandem no final do século XVIII. No meu livro escrevo sobre William Herschel [1738-1822], que descobriu um novo planeta. Shelley leu sobre isto e incluiu-o nos seus poemas. Ou seja, aqui temos um poeta romântico ao extremo que se inspira nas mais recentes descobertas da astronomia. A descoberta deste novo planeta, Úrano, por Herschel em 1781 duplica o tamanho do universo conhecido. E Shelley escreve sobre tudo isso. Poderá haver outras civilizações lá longe, naquilo a que hoje chamamos exoplanetas? Mas isto foi apenas o início. Depois escrevo sobre o poeta [Samuel Taylor] Coleridge e a sua grande amizade de juventude com Humphrey Davy [1778-1829], que se tornaria o maior químico do seu tempo.

E que fez as famosas experiências com óxido nitroso.

Sim, aquilo a que hoje chamamos gás hilariante. Ele achava que o óxido nitroso podia ser a cura para várias doenças respiratórias, nomeadamente a tuberculose. E fez essa série de experiências com voluntários, que inalavam o gás, e perguntava-lhes o que sentiam. Um dos voluntários foi Coleridge. E descobri que Davy escreveu um relato das alucinações que se tem quando se respira óxido nitroso, e tem muitas semelhanças com o famoso poema de Coleridge, ‘Kubla Khan’, que descreve um sonho. Portanto, logo desde o início fiquei com a impressão de que a ciência e a literatura brotavam da mesma raiz. A partir daí, bastava olhar à volta. E encontrei logo John Keats [1795-1851], o poeta, que estudou e praticou medicina num grande hospital de Londres. Também ele andava a ler sobre a nova química de Davy e a descoberta do novo planeta por Herschel. Um dos primeiros poemas de Keats, ‘Soneto sobre a Primeira Leitura do Homero de Chapman’, tem um verso sobre ‘um novo planeta que nada para o seu alcance’. Isto é Herschel a descobrir Úrano. Mais uma vez temos um cruzamento imediato – um jovem poeta que se inspira nas novas descobertas científicas. Isso acontece em todo o período romântico, e vai até Mary Shelley e ao seu grande romance Frankenstein, que na primeira versão é um estudo sobre um jovem cientista. Portanto pensei que, em vez de olhar separadamente para a ciência e as artes, podia aproximá-las. Byron também conheceu Herschel e conheceu Davy, quando andavam os dois a viajar por Itália, e pôde espreitar pelos telescópios de Herschel. Tal como Joseph Haydn, o músico alemão. Visitou Herschel, olhou pelo telescópio e depois compôs o seu célebre oratório A Criação. Byron também andava fascinado com tudo isto. Posso ler um poema dele que guardei para si?

Claro que sim!

É do início de Don Juan, escrito em 1819. Isto é o Don Juan a pensar:

«Pensou em si» – claro que pensou nele: é um romântico – «e em toda a terra,

No homem, maravilhas e estrelas

E como diacho podiam ter nascido:

E depois pensou em terramotos, guerras,

Quantos quilómetros teria a Lua em circunferência,» – veja: uma pergunta científica –

«Em balões de ar quente e em quantos obstáculos

ao conhecimento perfeito dos céus sem fim;

E depois pensou nos olhos de Donna Julia».

Passa pelas várias áreas de descobertas científicas e acaba a pensar nos olhos da amante. É uma combinação muito romântica, não é? O que me parecia é que, assim que olhássemos para o interesse destas figuras pela ciência, obteríamos uma visão completamente nova do que é o Romantismo.

Esse poema fala de outra área que aparece no seu livro: os primeiros voos com balões de ar quente.

Que também é algo muito romântico – há um enorme fascínio pelo ar e pela ideia de voar. Podia ter escrito algo muito técnico sobre gases, deslocamento, como os balões voam e porque é que eles achavam que conseguiam conduzi-los. E depois há as viagens fantásticas que se realizaram. A biografia faz a ponte entre tudo isso, permite uma combinação entre o científico, o técnico, e o visionário. Shelley também escreve maravilhosamente sobre este tema.

Sobre os balões?

Diz que quando os homens conseguirem sobrevoar África de balão, a escravatura desaparece completamente. É de um idealismo que roça a loucura, mas lá está. As viagens de balão geraram um entusiasmo enorme. Quando os primeiros aeronautas franceses partiram, ninguém sabia o que podia acontecer. E quando chegaram lá acima tiveram uma perspetiva da terra que ninguém tinha tido antes. E essa nova visão da terra é fruto da tecnologia.

Karen Blixen, em África Minha, quando anda de avioneta com Denis Finch Hatton, diz que viu o mundo pelos olhos de Deus…

Sim, e depois há aquele chefe kikuyu que lhe pergunta: ‘Quando esteve lá em cima, viu algum sinal de Deus?’.

O que nos leva a Gagarine – «Fui ao espaço, mas não encontrei Deus» – e a Jerôme Lalande, que escreveu: «Procurei nos céus e em lado algum encontrei um vestígio de Deus». Sei que não gosta de colocar a coisa como um confronto entre ciência e religião. Mas a verdade é que a religião se baseia muito no mistério – à medida que a ciência avança, não há tendência para a religião recuar?

Herschel interessava-se muito por essa questão. Quando foi numa visita oficial a França, mesmo durante o período revolucionário, foi recebido por Napoleão Bonaparte. É curioso, que a principal recordação que ele tinha de Napoleão era ele ter mandado servir uns gelados deliciosos. Nessa mesma ocasião, também estava presente o grande cientista e matemático Laplace, que tinha escrito o seu importante tratado Exposition du système du monde, sobre o sistema solar e os princípios newtonianos. E Napoleão pergunta a Laplace: ‘E qual é o lugar de Deus nisto tudo?’. E Laplace responde: ‘Não tenho necessidade dessa hipótese’.

Já que estamos a falar de Herschel, talvez possamos então esclarecer um mistério. Os astrónomos tinham de passar a noite acordados a observar as estrelas. Afinal, quando é que dormiam?

É uma excelente questão! [risos] Herschel concebeu e construiu os seus extraordinários telescópios reflectores, que usavam espelhos enormes de metal polido. E tinha de fazer estes espelhos na sua oficina. Mas o tipo de metal que ele usava tem de se polir enquanto está maleável, para ficar com a curvatura necessária. E ele ficava a poli-los vinte horas de seguida com a sua irmã Caroline, que lhe ia levando café e comida. Trabalhavam como uma equipa noite e dia. E depois a mesma coisa quando usavam os grandes telescópios.

Eram precisas duas pessoas?

Nestes telescópios reflectores não se espreitava pela extremidade inferior do tubo. Subia-se a um andaime, olhava-se para baixo e via-se a imagem refletida. Herschel gritava as suas medições e Caroline estava sentada lá em baixo a tomar notas à luz de uma vela. Ela própria deixou descrições do frio que passavam e como a tinta no bico da pena costumava congelar. Tudo isso era durante a noite, e bebiam café para se aquecerem e estarem despertos. Assim que começava a amanhecer, arrumavam as coisas e William ia dormir até ao meio-dia. Havia ordens para não o incomodar de manhã. Ela tinha de acordar mais cedo, claro, porque tinha de preparar o café para o pequeno-almoço dele.

Tinha uma posição subalterna, claro.

Era mulher, e, apesar de ser uma excelente astrónoma e caçadora de cometas, cabiam-lhe essas tarefas, como cuidar da casa. Essa relação entre irmão e irmã é extraordinária. William acabou por casar-se, mas continuaram a formar uma grande equipa. Eram muito apegados um ao outro e trabalhavam imenso. Há algum paralelo com o poeta William Worsworth e a sua irmã Dorothy, que era quem lhe copiava os manuscritos, e ele também se inspirou nos diários dela para muitos dos seus poemas. Não quero afastar-me muito do assunto, mas não resisto a contar uma anedota sobre Maria Mitchell, uma grande admiradora dos primeiros astrónomos britânicos. Quando fez a sua viagem pela Europa, passou por Roma e pediu autorização para usar o Observatório do Vaticano. Era uma pessoa já bastante conhecida, até porque tinha descoberto um novo cometa. E as autoridades do Vaticano responderam: ‘Sim, senhora, claro que pode usar o observatório. Mas, como é uma senhora, só durante o dia’. [risos]

Outra personagem central do seu livro é Joseph Banks. Era botânico, mas teve um papel muito importante na promoção da ciência.

Sim, uma das ideias centrais do livro é que a ciência é uma espécie de corrida de estafetas onde os protagonistas passam o testemunho uns aos outros. Joseph Banks é um milionário e botânico que vai com James Cook na primeira grande expedição à volta do mundo, em 1768. Parte com o entusiasmo e a ingenuidade próprias da juventude e aponta tudo no seu bloco de notas. Depois regressa e à medida que o tempo passa vai-se tornando cada vez mais distinto e acaba por ser eleito presidente da Royal Society. A ironia é que acaba por ficar encurralado em Londres, em parte por causa da gota, em parte porque é um grande gestor. E uma das coisas que ele faz é promover pequenos-almoços em que encoraja jovens cientistas e escritores. Um desses jovens é Mungo Park.

O explorador escocês que acaba por morrer em África.

Há uma certa inocência nas primeiras viagens de exploração, só depois é que vem a ideia de dominação imperial. Mungo Park é um grande explorador que em 1794 parte numa expedição para subir o rio Níger e tentar alcançar Tombuctu. No seu relato conta que se cruzou com uma caravana de traficantes de escravos mas recusa-se a acompanhá-los. Não quer ter nada que ver com eles. E nessa primeira viagem ele próprio é capturado por uns salteadores mouros, que o deixam sem nada. Fica completamente desesperado, à beira da morte, até que vê uma pequena planta, um pedaço de musgo a crescer. Lembra-se dessa parte?

E recupera o ânimo.

Pensa como aquela plantinha é maravilhosa. Naquele momento mágico, o cientista que há nele assume as rédeas da situação e pensa – e isso, teologicamente, é muito interessante – que faz parte desta espantosa criação. Dá-se uma mudança metafísica. E salva-se. Em 1805, Mungo Park é enviado de novo. Mas desta vez vai acompanhado por 40 soldados.

É outro tipo de expedição.

Muito mais colonialista. E é um desastre. Quase todos os soldados morrem de doenças e na consequência de vários ataques, porque não conseguem manter as boas relações com os povos indígenas. E por fim o próprio Mungo Park é atacado e morto no rio. Isto é uma verdadeira parábola. Primeiro a idade da inocência, depois a expedição colonial. E África reclama a sua vingança. É um assunto complicado, mas mais uma vez temos um exemplo de como a partir dos acontecimentos de uma vida podemos obter um panorama mais alargado, neste caso da problemática imperial.

Referiu esse momento em que Mungo Park olha para o pedaço de musgo. O Richard também sente que tem essa capacidade de ficar maravilhado?

Quando escrevo biografias fico um pouco deslumbrado com os meus protagonistas. Para mim a escrita de biografias é uma vocação, um chamamento. Acho que o biógrafo tem de ter essa capacidade de se deslumbrar. Mas também precisa de saber recuar e ser objetivo. Lá estamos nós de volta aos dois lados do caderno – o subjetivo e o objetivo têm de se equilibrar.

Uma última questão. Talvez conheça uma frase italiana: ‘Ogni pittore dipinge se’, que exprime a ideia de ‘o pintor pinta-se a si próprio’. Em que medida A Era do Deslumbramento é um retrato seu, dos seus interesses e paixões?

Acho que é verdade que o pintor reflete-se sempre a si mesmo naquilo que pinta. E o mesmo se passa com o biógrafo. Escrevi bastante sobre a questão de como as próprias biografias ficam datadas. Um exemplo: Mary Wollstonecraft, a famosa feminista britânica. A primeira biografia dela foi escrita pelo seu marido, William Godwin, em 1798, um ano depois de ela morrer. Depois dessa há uma série de biografias, até hoje, e cada uma reflete a sua própria época. Se você olhar para as biografias de Shelly, as do século XIX denotam uma reprovação bastante vitoriana do que ele representa. Já as dos anos 1920 são aquilo a que chamamos biografias da era do jazz. E as mais recentes mostram-se muito mais compreensivas em relação ao que ele defendia e à sua vida radical. Quanto mais tempo passa, mais uma biografia se assemelha a um retrato da época em que foi escrita.