Pavel Telicka: “As pessoas estão mais vulneráveis à desinformação e propaganda”

Pavel Telicka avisa que ainda há vulnerabilidades na ciberdefesa europeia. Bem como suscetibilidade à propaganda russa, sobretudo entre os estados-membros mais recentes.

Pavel Telicka já passou por muitos altos cargos, mas aquele que mais o marcou foi o de negociador da entrada da República Checa na UE. E sente isso ainda mais face à invasão da Ucrânia e à crescente pressão russa na fronteira leste da Europa. «Imagine como seria se não tivéssemos a âncora da UE e NATO», aponta este diplomata e político, de 57 anos, que por agora se afastou da liça após servir como comissário europeu e vice-presidente do Parlamento Europeu da Aliança de Liberais e Democratas da Europa (ALDE). Agora, dedica boa parte do seu tempo à cibersegurança. «É difícil imaginar o que podem fazer os russos, no caos em que estão, com todos os impactos que a guerra na Ucrânia está a ter», alerta.

É sempre difícil para leigos perceber o que se está a passar no ciberespaço. Há uma ciberguerra silenciosa a ser travada pela Ucrânia ou os russos simplesmente estão muito menos ativos nesta esfera do que seria de esperar antes da invasão?

Olhemos para as atividades russas na esfera cyber para lá da Ucrânia. Posso-lhe dar o exemplo da República Checa, onde vemos um aumento dos ciberataques. Falamos de centenas de ataques. Ao longo dos últimos meses houve entre vinte e 25 incidentes de natureza substancial por mês, sobretudo do grupo de ‘hacktivistas’ Anonymous Rússia, que reivindica estes ataques no Telegram. Se essa é a escala da atividade dos russos contra os aliados da Ucrânia, só podemos imaginar como serão os ataques contra a Ucrânia. Obviamente não temos acesso a essa informação específica, seja contra as forças ucranianas seja contra a sua infraestrutura crítica, mas está a acontecer.

É interessante que mencione a preponderância dos Anonymous. Pelo que sei, recentemente houve uma cisão entre hacktivistas pró-russos e pró-ucranianos.

Também soube disso. Daí que me refira aos últimos meses do último ano – os números mostram um claro objetivo de provocar disrupção. Através destes relatórios também podemos identificar que os ataques têm várias origens, mas têm algo em comum que é o elemento russo.

Alguns analistas apontam que desde o início da guerra a Rússia tem aliciado ou coagido tanto hacktivists como cibercriminosos para ajudar no esforço de ciberguerra. No início do conflito até se notou uma diminuição nos ataques de ransomware, presumivelmente porque muitos hackers russos estavam ocupados com outros alvos. Poderia explicar-me porque é que há uma ligação tão forte entre a Rússia e o crime online?

Permita-me ir mais longe. Podemos ver que a Rússia tenta concretizar os seus propósitos através de quaisquer meios. Vemos isso até no campo de batalha, onde estão milhares de criminosos recrutados pelo exército da Wagner, que hoje em dia está finalmente registado na Rússia. E se é assim no campo de batalha, estou convencido de que direta ou indiretamente os cibercriminosos estão também envolvidos. E não é coincidência que os ataques estejam a aumentar em países como a República Checa, a Polónia, a Letónia, a Lituânia ou a Estónia. Os ataques agora visam infraestrutura crítica, serviços de saúde, etc. Mas não conseguimos discernir até que ponto estão ligados a estruturas oficiais em Moscovo.

Muitas vezes quando se fala de guerra cibernética é muito difícil visualizar o que realmente se passa. Se recorrêssemos a uma metáfora e o ciberespaço fosse um campo de batalha, veríamos um constante disparar de mísseis russos contra a NATO e defesas a abatê-los? Que estratégias seria possível identificar nesta ofensiva cibernética russa? Há algum padrão?

Creio que podemos detetar isso. Assumo que, de ataques cibernéticos relativamente espontâneos e caóticos, vimos uma mudança, como se os russos estivessem a aprender lições no campo de batalha. A partir da esfera cyber estão a focar-se em alvos que seriam mais sensíveis e ter maior impacto disruptivo. Mas também para que esses ataques possam ser vistos como um falhanço das instituições dos países visados, algo que pode ser usado por campanhas de desinformação ou entidades pró-russas aglomeradas em estados-membros da NATO mais recentes. As pessoas não devem sentir isto como se fosse um míssil, muitas vezes estamos a falar de se enviar phishing ou spam, que podem causar apenas problemas reputacionais. Claro que também há incidentes significativos com malware no setor da saúde ou dos transportes. Assim como contra instituições governamentais, os media, bancos, aeroportos… Ainda há duas semanas o aeroporto de Praga foi visado. Portanto, estamos a ficar cada vez mais próximos de algo que afete o público, até ter um sério impacto na segurança, na saúde ou na vida das pessoas.

É interessante que mencione que não se deve ver um ataque cibernético como se fosse um míssil. Analistas apontam que há uma imagem popular da guerra cibernética como se envolvesse armas de destruição maciça, em que se carrega num botão e se destroem redes, como aconteceu quando o Stuxnet foi usado contra o programa nuclear iraniano. Mas que, na prática, um ataque cibernético costuma parecer-se mais com uma operação das forças especiais, por serem específicos, ensaiados, envolverem reconhecimento e vigilância dos alvos… Todos estes ataques russos que temos visto podem servir para testar capacidades para uma ofensiva maior no futuro?

Não se pode excluir essa possibilidade. Creio que aquilo que hoje vemos acontecer a leste das nossas fronteiras da NATO é uma escalada. Muitas entidades, agências e políticos do Kremlin lutam pela sobrevivência política – aliás, não só política. A maneira como estas pessoas pensam e operam significa que podem tomar medidas que há meio ano atrás não eram iminentes. Recorrendo à metáfora anterior, vemos o uso de armamento mais pesado pelos russos. E não podemos estar seguros quanto ao nível de fragmentação dentro da Rússia. As nossas autoridades de cibersegurança têm de analisar continuamente o que se passa, a nível mensal. Os meios que eles usam, as entidades, os alvos, tudo muda. Com essa fragmentação na Rússia, com todas as batalhas dentro dos serviços de segurança russos, é difícil ter certezas. Não parece haver um comando único. Isso torna a prevenção mais difícil.

Imagino que esteja a falar das crescentes tensões entre Yevgeny Prigozhin, da Wagner, e lideranças militares tradicionais como Valery Gerasimov.

Diria que esse é um sintoma, sim. E o que podemos ver é que, quanto pior a guerra corre para um destes dois ramos, mais feliz está o outro. É um bocado estranho para nós ocidentais, é difícil de compreender esse tipo de competição dentro da luta entre a Rússia e a Ucrânia. Mas não podemos excluir que no futuro haja ataques em que os responsáveis sejam outros jogadores nessa luta interna. E creio que é importante antecipar cenários que hoje podem ser vistos como pouco relevantes ou impossíveis, porque acho que os últimos doze meses mostram que podemos ser surpreendidos. Temos de enfrentar estas vagas de ataques, mas também focar-nos na prevenção. Quando falamos de setores como a saúde, energia, transportes, trata-se de infraestruturas conectadas por software e diferentes dispositivos. Creio que a UE e a NATO hoje são sensíveis à questão da cibersegurança. Mas estamos a avançar o suficiente em termos de profundidade e alcance? Por mais boas intenções que tenhamos, estamos seguros de que a legislação que estamos a aprovar quanto à interoperabilidade entre diferentes dispositivos e sistemas não está a fazer com que alguns deles fiquem mais vulneráveis a ciberataques da natureza que mencionou na sua questão anterior? Temos de alcançar um bom equilíbrio entre o nosso mercado interno, desenhando políticas que beneficiam consumidores e negócios, mas também temos de assegurar a nossa segurança. E não estou seguro de que estejamos a fazer uma análise de impacto aprofundada. A comissão tenta fazê-lo, o Parlamento também, ainda que menos. Mas há centenas ou milhares de emendas a diferentes propostas de legislação no setor digital. Como é que conseguimos avaliar o impacto delas em termos de cibersegurança? Aí temos de ser muito mais cuidadosos e ter maior capacidade de antecipação.

Quanto a todos esses riscos, há uma questão crucial. Na sua opinião pessoal, quando é que um ciberataque se torna uma declaração de guerra cibernética, ao ponto de despoletar o artigo 5 da NATO?

Essa é uma pergunta difícil, claro. Diria que outros artigos teriam de ser tidos em conta e teríamos de ter consultas e discussões muito sólidas entre estados-membros. Na minha opinião, o ciberataque teria de ir para lá daquilo que vemos hoje. Teria de ser de uma natureza tal que deixasse os nossos setores vulneráveis, causasse perdas económicas, perturbasse serviços afetando as pessoas. No momento que isso levasse a um equivalente ao uso de armas convencionais com impacto social, na segurança e vida dos cidadãos. Aí a minha opinião pessoal é que deveria haver consultas para decidir se isso se consideraria algo abrangido pelo artigo 5. Hoje é difícil imaginar o que podem fazer os russos, no caos em que estão, com todos os impactos que a guerra na Ucrânia está a ter. Se estás a ser desbaratado, a lutar por sobrevivência política, podes causar uma escalada e temos de estar preparados para isso. Mas seja qual for o Estado-membro a ser atingido, seja a República Checa ou Portugal, aí teríamos de ter as nossas estruturas a lidar com isso imediatamente, a avaliar como responder.

Pois, é esse um dos impactos da guerra cibernética, que de certa forma esborrata a linha entre a guerra e a paz. Mas, pelo que sei, alguns analistas apontam que o regime de Putin tem evitado usar todas as suas capacidades cibernéticas contra o Ocidente por saber que a capacidade cibernética da NATO como um todo rapidamente se sobreporia à da Rússia caso fosse utilizada de uma forma ofensiva.

Acho que não devemos ser induzidos em erro por alguma da ingenuidade que mostrámos antes da guerra na Ucrânia. Não foi o caso dos checos, mas alguns parceiros estavam assumidamente um pouco a sonhar, com a esperança de que as coisas se resolvessem de algum modo, que a guerra fosse limitada em tempo e alcance, que as implicações fossem limitadas e Putin parasse em algum ponto. Alguns líderes políticos do Ocidente foram ingénuos. Poderíamos ter reagido mais cedo, de forma mais forte em apoio da Ucrânia. Tivemos imensas sanções, mas isso foi um sinal de força ou de que algumas sanções foram demasiado lentas e insuficientes? O mesmo se aplicaria àquilo de que estamos a falar. Claro que vejo a distinção entre armas convencionais, nucleares e cibernéticas. Mas as armas cibernéticas também podem ter um impacto devastador. Isso é uma realidade.

Quanto a essa distinção que referiu, desde o início da guerra que a Europa tem providenciado um apoio muito direto à Ucrânia no campo de batalha, seja através de howitzers, mísseis…. Daquilo que sabe, qual tem sido o apoio concreto em termos cibernéticos dado pela UE aos soldados ucranianos?

Honestamente, é muito difícil para mim responder a isso. Muito do que está a acontecer é secreto e tem de se manter assim por motivos de segurança, não só para segurança dos ucranianos mas também dos nossos sistemas. Não posso dizer muito mais. Mas deixe-me dizer-lhe que, em termos do armamento que está a ser fornecido à Ucrânia, a esperança é que seja entregue ainda mais no futuro. E falamos de armas cada vez mais sofisticadas, isso por si só significa que têm uma dimensão digital forte, que cria dificuldades em operá-las e é por isso que os ucranianos têm de ser treinados durante mais tempo para as utilizar. Esta é uma guerra muito diferente das que vimos no passado, com uma capacidade de atingir alvos com enorme precisão, recorrendo a tecnologia como satélites. Parte disso certamente implica apoio em termos de uma maior cyber resiliência. E eu espero que os ucranianos estejam gradualmente a ser equipados no sentido de contra-atacar. Sei um pouco mais do que já disse, mas não quero levantar muita especulação. A Ucrânia deve receber aquilo de que precisa e tem de o receber mais rápido. Já passaram os tempos em que podíamos enviar apenas tanques T-72 modernizados ou velhos helicópteros russos reequipados. Esse momento acabou, não queremos ver dezenas de milhares de vidas desperdiçadas. Ao mesmo tempo que temos de ter em conta a nossa própria segurança, conscientes de que um passo errado pode ser perigoso, mas temos de ir até ao máximo que pode ser fornecido.

Como em todos os conflitos, há sempre um certo nevoeiro da guerra e só nos apercebemos do que realmente se passou meses depois até por motivos de segurança, como explicou. Antes da invasão havia a perspetiva de que a Ucrânia seria rapidamente esmagada não só em termos convencionais, mas também no ciberespaço. Que os seus sistemas seriam destruídos logo nos primeiros momentos, que teriam de combater no escuro, sem comunicações. Sabemos que isso de certa forma aconteceu durante a primeira semana, mas a Ucrânia rapidamente recuperou. Que papel é que a UE teve nos meses antes da invasão em preparar as cibercapacidades da Ucrânia?

Mesmo aqueles que estavam mais conscientes do que podia acontecer achavam que uma invasão não ia acontecer. Havia decisores muito bem informados que esperavam que não acontecesse. Acho que houve uma diferença entre aqueles com mais experiência com a antiga União Soviética e aqueles com mais distância da Rússia, até geograficamente. Não é uma crítica, é uma realidade. Comparemos a República Checa e Portugal. Os checos teriam muito menos conhecimento de algo que se passasse a sul de Portugal, da mesma maneira que os portugueses são muito menos conhecedores sobre as nossas fronteiras a leste. E nós todos formamos a União Europeia. Portanto, muitos dos decisores não esperavam uma invasão real e isso levou a uma eficiência insuficiente em termos de fornecer apoio à Ucrânia. Isso é a resposta longa, a resposta curta é que o apoio foi insuficiente, pelo que sei. Houve divisões dentro da UE sobre como interpretar o que se estava a passar. Só podemos ficar agradecidos pela incrível moral dos ucranianos e pelo brutal subestimar das suas capacidades pelos russos. Isso deu tempo à Ucrânia e a nós também. Quanto às operações militares, creio que ainda podemos fazer muito mais, há muito que podemos apreender com os ucranianos. Em termos cyber estamos mais avançados, podemos oferecer muito apoio de uma forma metódica para mitigação, análise de indicadores comprometedores, para perceber o que se está a passar. Até porque nós temos de resolver as nossas vulnerabilidades. E isso pode ser providenciado, não digo copiado e colado, através de diálogo e cooperação, exceto no que toca às armas mais avançadas.

Perguntei-lhe isto porque hoje sabemos que antes da invasão os EUA e o Reino Unido já estavam a providenciar capacidades cyber à Ucrânia. Mas nunca ouvi falar de uma missão europeia nesse sentido. O que está a dizer é que isso não aconteceu antes da guerra?

Sei que houve algumas atividades ad hoc, mas seriam do mesmo tipo que teríamos com estados-membros, a um baixo nível. Nada que pudesse ser comparado com a inteligência e acompanhamento que os EUA estavam a providenciar. Podemos admitir que os EUA estavam claramente na liderança. Mas, no que toca à UE, temos de assumir que isso reflete como a cibersegurança em solo europeu só agora se está a estabelecer enquanto política comum. Em termos de legislação, da ENISA [Agência Europeia para a Segurança das Redes e da Informação] e dos poderes que tem, da abertura aos negócios ou ao setor privado, o nível de consciência não é alto. Até quando se olha para os estados-membros, não vou especificar, mas lembro-me que quando fui rapporteur sombra [eurodeputado responsável por uma proposta de legislação] em assuntos cyber, há uns anos, podia ver-se uma diferença enorme em termos de preparação entre as diferentes autoridades nacionais. Quem quisesse entrar no mercado interno com uma ferramenta de hacking, era fácil perceber através de que autoridades o podia fazer. E isso ainda acontece hoje. Temos de assumir que a UE tem muito a fazer, temos de avançar mais rápido. E não estávamos preparados para defender a Ucrânia também pela ingenuidade de alguns. Mesmo na nossa segurança comum estamos apenas a avançar gradualmente.

Ou seja, o que está a dizer é que cooperação da UE no que toca a ciberdefesa está muito longe do que se vê em áreas como a economia. E que não está muito bem articulada ou preparada.

Mas está a melhorar e não quero dar a impressão de que estou a culpar a UE. Quando falamos de cibersegurança, estamos a falar de segurança nacional. E qual é a diferença na preparação dos diferentes serviços nacionais para partilhar e interagir numa base europeia? De certa forma é compreensível. Partilharias algo que seria importante para a tua própria segurança pessoal, da tua família, se soubesses que esse parceiro era vulnerável, que não está em condições para manter seguro o que partilhas? É complexo. Não podemos culpar a UE, é um processo, estamos a aprender. E a agressão da Rússia lamentavelmente está a ajudar. Lembro-me que, em tempos, em estados europeus, podíamos encontrar situações em que uma agência teria dificuldades em partilhar informação até com outras do mesmo país. Mas hoje a UE está bem equipada em termos de preparação, análise e experiência. A comissão está a fazer muitos esforços. Mas há muitos assuntos a cobrir. Não é só uma questão do nosso hardware ou software estar preparado, de ter metodologias modernas, avaliações… Também é uma questão do que fazemos com isso, com a legislação, pensar no impacto que tem. Se vai reforçar ou prejudicar o mercado interno em termos de cibersegurança, se vai permitir que os nossos telemóveis e dispositivos sejam usados por um hacker ou até expor-nos a ameaças maiores.

Tocando noutro assunto intimamente ligado à esfera cyber. Neste momento quão impactantes estão a ser as operações de propaganda e desinformação russa na UE? Até no caso específico da República Checa, que tem uma significativa porção de políticos pró-russos e onde parte da população é terreno fértil para essa propaganda.

Esse é um problema muito sério. Temos de estar conscientes de que a política nos estados-membros atravessa mais crises nestes últimos anos do que teve no passado. A nossa política tem um foco nacional cada vez maior, é mais egoísta e populista. Há menos capacidade para uma visão forte ou assumir responsabilidade pelas decisões. E alguns problemas sociais também não estão a ser resolvidos. O facto é que parte do público está a ser deixado para trás. Vejo isso na República Checa. No que toca a alguns grupos sociais mais ligados ao passado comunista ou que têm fragilidades sociais e educacionais, os políticos pensam simplesmente: ‘De qualquer maneira não vamos conseguir o apoio deles’. Por isso deixam-nos para os populistas, que têm sido capazes de atrair a atenção destas pessoas. Não falamos de dois ou três por cento dos eleitores, é muito mais significativo numa série de estados-membros. São pessoas mais fáceis de manipular, seja pelos partidos que apoiam ou pelas relações com a Rússia. Ficam mais vulneráveis a desinformação e propaganda, que tem sido aumentada pelos russos. Na República Checa isto acontece, o facto é que o Presidente cessante notoriamente tem estado sob a influência da China e da Rússia. Zeman tem ido a conferências nas ilhas gregas financiadas por Vladimir Yakunin, o antigo chefe das ferrovias russas, um aliado próximo de Putin. Zeman agora mudou de posição, mas estava claramente a subestimar a influência russa, se não a ser parte dela. A nossa sorte na República Checa é que temos serviços de inteligência muito sólidos, sobretudo o BIS [Serviço de Segurança de Informação] e que as Forças Armadas checas foram parte de praticamente todas as operações militares da NATO desde 1989. Vemos uma penetração muito positiva nas forças em termos de consciencialização e sistemas cyber. Agora enfrentamos as eleições presidenciais e um dos candidatos é o antigo chefe do comité militar da NATO, Petr Pavel, que diz que este é um sufrágio entre dois mundos. Um mundo que está consciente dos riscos e ameaças, mas que consegue providenciar soluções, que consegue depender de aliados sem receber apenas, dando também. O outro mundo é mais vulnerável, egoísta, populista. E tenho a certeza de que nestas eleições veremos as forças pró-russas em minoria. Países como a República Checa e a Polónia – temos divergências com os polacos em questões de princípios e de valores, mas a nível de quanto podemos confiar neles enquanto aliados não – estão integrados com o cerne do Ocidente, mas tenho mais dúvidas quanto a outros países a leste.

Imagino que esteja a falar da Hungria.

Sim, da Hungria e também teria alguns pontos de interrogação acerca da situação nos Balcãs. Quanto à Eslováquia também, mas veremos o que acontece nas eleições antecipadas de 30 de setembro. Caso as forças lideradas pelo antigo primeiro-ministro Robert Fico vençam estamos perante um problema muito sério, na minha opinião.

Concretamente, como é que as temidas operações russas de desinformação e propaganda funcionam normalmente? Como é o seu modus operandi mais comum?

Pode ser tão simples como um grupo de pessoas nas redes sociais, a conseguir impactar pessoas que têm menos acesso a educação ou gerações mais velhas. Mas falamos também de políticos, seja alguém como Zeman ou outros que diluem a realidade da guerra na Ucrânia.

Mas por exemplo, quando os russos usam bot farms [sistemas de utilizadores falsos online] vemos que estão sobretudo a fazer propaganda russa explicitamente ou a apoiar politicamente forças mais favoráveis a Moscovo?

Vemos ambos. Ainda há uns dias vimos centenas de pessoas a protestar que são claramente lideradas por forças relacionadas com a Rússia. Diria que enfrentámos com sucesso os supostos diplomatas russos cá, expulsando muitos deles após o ataque ao depósito de munições de Vrbetice, em 2014, que foi levado a cabo pela GRU [Departamento Central de Inteligência russo], por isso atingimos fortemente a rede diplomática de espionagem. Mas claramente ainda há pessoas e entidades que penetraram a República Checa, manipulando gente nas ruas e nas redes sociais. Mas também trabalham com políticos. Não tenho provas, mas estou seguro que há meios financeiros a ser postos à sua disposição. E alguns partidos mais pequenos que se expõem a propaganda russa, com pouco poder no Parlamento, mas alguma influência sobre a opinião pública. E se olhar para o antigo primeiro-ministro Andrej Babiš, o outro candidato presidencial, ainda há uns dias quando foi questionado num debate sobre se aceitaria enviar soldados checos para a Polónia caso fosse atacada, limitou-se a dizer que não, que queria paz. Fê-lo por motivos puramente populistas, porque está a perder nas sondagens, e no dia seguinte veio dizer que não iria pôr em causa o artigo 5º da NATO. Mas fê-lo, publicamente. Não quer dizer que seja pró-russo, é um empresário, os negócios dele são aqui no Ocidente, torna-se uma ameaça à segurança do Estado devido a estas declarações. Enquanto populista, torna-se vulnerável a estas forças que tenta instrumentalizar. Torna-se parte da propaganda influenciada pela Rússia, porque alguma propaganda pode ser muito dura, mas boa parte é suave, tentando apenas implantar na mente um momento de hesitação.

Falou de uma série de eleições que podem ser cruciais para a coesão europeia. Há suspeitas de que redes russas tenham influenciado as eleições presidenciais americanas de 2016. Tem receio de que algo do género possa a acontecer dentro da União Europeia?

Estou preocupado, estive envolvido em algumas discussões sobre isso no Parlamento Europeu. Hoje estamos mais preparados, mais imunes, mas isso não significa que seja tudo um paraíso e que sejamos complacentes.

Mas que género de medidas concretas podem evitar algo do género?

Está nas mãos dos estados-membros manter os seus sistemas eleitorais seguros da forma mais séria possível. Claro que isso também passa pelo nível europeu. Mas podemos olhar para o próprio Parlamento Europeu, para o caso dos eurodeputados investigados no chamado Qatargate. Veja quão fácil foi ganhar o apoio dos eurodeputados, devido à fraqueza dos indivíduos, mas também do sistema do Parlamento Europeu. Se o Qatar conseguiu essa influência, imagine se fosse com indivíduos encarregues de eleições ou parte das instituições.

Quanto a isso ia-lhe perguntar, até pela ligação próxima entre Portugal e o Brasil, que notei que muitos alegados espiões russos apanhados na Europa eram brasileiros ou tinham identidades falsas brasileiras. Temos estado a falar da Europa, mas uma imensa porção do mundo não tem uma posição tão definida quanto ao conflito na Ucrânia. Teme que a Rússia também tente influenciar de alguma forma eleições nas chamadas economias emergentes, que têm um papel importante para que não fique totalmente isolada?

Falou do Brasil mas podíamos falar da Argentina, de muita gente que está a sair da Rússia para a América Latina, para estabelecer atividades económicas e não só. É um assunto sério, porque pode estar em causa a segurança interna destes países, mas também porque estas pessoas podem a partir daí estabelecer atividades nos países membros da NATO. Não sou um perito no Brasil, mas a escolha nestas eleições foi entre dois candidatos em que nenhum deles me deixaria satisfeito desse ponto de vista.

Para terminar, foi o principal negociador checo para a entrada na União Europeia, na altura em que houve uma enorme vaga de países da Europa central e de leste a fazê-lo. Acha que se a República Checa não se tivesse tornado membro da UE, se não tivesse entrado na NATO, ainda estaria em risco de estar na órbita russa como esteve a Ucrânia durante tantos anos?

Esse risco existiria. Vemos esses riscos hoje até, mesmo enquanto membro da UE e da NATO, apesar de sermos um dos países da Europa Central que está mais integrado com o Ocidente. Inclusive historicamente, se olhar para o mapa Praga está mais para Ocidente do que Viena. Ainda assim vemos estas forças a atuar e depósitos de munições serem rebentados por agentes russos, ou as declarações tolas de Zeman enquanto Presidente. Imagine como seria se não tivéssemos a âncora da UE e NATO. O passo mais importante foi em 1990, quando fomos o primeiro Estado na Europa Central e de Leste a expulsar os soviéticos da Checoslováquia. Claro que o processo de integração na UE foi vital, de um ponto de vista da segurança mas também económico.