Sobreviverá Ursula von der Leyen ao ‘SMSgate’?

Von der Leyen está na segunda metade do seu mandato e já teve dois momentos que marcam a sua presidência: a epidemia da covid-19 e a invasão Rússia à Ucrânia.

por Henrique Santos
Politólogo

Desde o início do seu mandato, em 2019, que a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tem mantido um ‘flirt’ com o Parlamento Europeu. Segura do apoio da sua família política original, a democrata-cristã do Partido Popular Europeu (com o maior grupo parlamentar no Hemiciclo de Estrasburgo), inúmeras as vezes se apoiou antes numa maioria de esquerda composta, essencialmente, por socialistas, liberais e verdes. Raramente se preocupou com os conservadores ou os comunistas, e desprezou a extrema-direita. Afinal a mesma maioria com que tem governado a Comissão, e que tantas vezes exasperou o Conselho Europeu que a indigitou.

Em cada ciclo político, há sempre momentos na história que marcam as várias Presidências. Von der Leyen está na segunda metade do seu mandato e já teve dois que se destacam: a epidemia da covid-19 e a invasão Rússia à Ucrânia. No mais recente tem demonstrado um voluntarismo e um empenhamento que vai muito além das suas competências institucionais, aplaudido pela vasta maioria do Parlamento Europeu, mas muitas vezes criticado pelo Conselho Europeu por invadir áreas de competência intergovernamental. Mas é sobre o combate à covid, melhor sobre consequências desse combate, que vamos refletir um pouco.

Recordamos que, no início da epidemia, e fruto do fantástico trabalho de investigação científica da indústria farmacêutica, todos os países, incluindo obviamente os Estados-Membros da União Europeia, lançaram-se numa feroz batalha para assegurar, o mais cedo possível, o maior lote de vacinas disponíveis. Uma competição que seria seguramente desleal, com os países mais ricos a poderem oferecer preços mais elevados para conseguir os seus objetivos. Então, e bem, a Presidente da Comissão propôs centralizar a aquisição das vacinas necessárias para a União Europeia numa operação conjunta, e fazer a sua distribuição de uma forma equitativa, em função da demografia de cada país.

Uma medida aplaudida pelo Conselho, pelo Parlamento e, acima de tudo, pela opinião pública europeia. Uma ação expedita que terá ajudado a salvar milhões de vidas e, espera-se, tenha poupado avultadas verbas aos contribuintes europeus. Foram vários os contratos firmados e por vezes foi necessária pressão pública para que os prazos e quantidades acordadas fossem respeitados. Até aqui, tudo bem.

A Comissão Europeia celebrou contratos com a AstraZeneca, a Johnson & Johnson, a Moderna, a Novavax e a Pfizer/BioNTech. A maior encomenda foi, de longe, a feita à Pfizer: um total de mil e oitocentos milhões de vacinas (novecentos milhões com uma opção doutros novecentos milhões), num valor que se estima em 35 mil milhões de euros.

Em Abril de 2021, o New York Times publica que, depois de problemas com entregas da AstraZeneca, a Presidente da Comissão decidiu chamar a si a condução do processo, e que durante um mês negociou pessoalmente por SMS com o CEO da Pfizer, Albert Bourla. O sucesso foi evidente mas a amplitude do negócio e a forma invulgar como fora conseguido suscitaram o interesse da comunicação social que pediu, naturalmente, a transcrição dos históricos SMS’s que tinham salvo os cidadãos europeus. E, se divulgados, o assunto teria, seguramente, terminado aí!

Mas não! Apesar da legislação comunitária impor a transparência como um dos pilares da democracia e do estado de direito, primeiro os SMS foram considerados «particulares» e, depois, teriam sido apagados! Nos meses que se seguiram, a Imprensa de vários quadrantes, a Provedora de Justiça Europeia (a irlandesa Emily O’Reilly, que usou uma linguagem crítica duríssima com a Comissão), o Parlamento Europeu insistiram e a resposta foi sempre negativa. Veja-se a sobranceria da resposta da vice-presidente da Comissão Europeia responsável pela Transparência, a checa Vera Jourová: «os SMS são documentos com uma vida curta, efémera, que não são arquivados e, consequentemente, não estão na posse da Instituição por não se encontrarem na sua esfera de responsabilidade». É assim: exigem aos Estados-Membros, e bem, que cumpram a transparência, mas não a aplicam a si próprios! Acham-se acima das regras que eles próprios instituíram.

O coro de críticas acentua-se e, finalmente, o Parlamento Europeu recebe oficialmente cópia do contrato. Mas, surpresa, o que é remetido é um conjunto de folhas que se percebe ser o referido contrato, mas totalmente rasurado e sem que se possa saber o valor unitário de compra de cada vacina, se houve pagamentos adiantados antes da sua receção, se houve doações ou vantagens fiscais à farmacêutica, se estavam previstas compensações indemnizatórias se houvesse não cumprimento das entregas, etc.! Foi a gota de água! É criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a aquisição, pela Comissão, das vacinas anti-covid.

Quando o assunto se torna mais crítico, o porta-voz comunitário afirma que: «A Comissão tem por hábito cumprir os contratos, e estes preveem cláusulas de confidencialidade para defender a concorrência e outros interesses comerciais ». O Parlamento invoca o ser colegislador em questões orçamentais. Sobe o alarido, e o EPPO, o gabinete do procurador público europeu (órgão independente da União Europeia encarregue da investigação e luta contra a fraude, corrupção e lavagem de dinheiro) abre uma investigação sobre o processo de compra das vacinas. Há um debate em plenário a que falta Ursula von der Leyen, onde é acusada de querer fugir ao esclarecimento por esconder qualquer coisa! Para mais já tivera um incidente com SMS apagados no seu posto anterior, quando era ministra da Defesa da Alemanha…

E, depois, explode o Qatargate, e aperta-se o crivo sobre a transparência. A credibilidade do Parlamento Europeu está pelas ruas da amargura, e os Deputados questionam se as dúvidas e falta de confiança nas Instituições se deve restringir unicamente a eles. Para tornar ainda mais opaca a questão, o CEO da Pfizer, por duas vezes, não comparece na Comissão Parlamentar: da primeira vez envia uma Diretora, da segunda pura e simplesmente manda dizer que a Pfizer não tem nada a acrescentar.

É aí que a Comissão Parlamentar decide, por unanimidade, solicitar a presença da Presidente da Comissão para responder porque se intrometeu no processo, apagou as mensagens trocadas com Albert Bourla, e outras questões relacionadas com as encomendas das vacinas. A Presidente do Parlamento Europeu, a maltesa Roberta Metsola, da mesma família política de von der Leyen, tem ainda que validar e encaminhar o requerimento de comparência. Dificilmente, em qualquer circunstância, o poderá recusar, muito menos no momento atual.

Nestas circunstâncias, sobreviverá politicamente Ursula von der Leyen a este ‘SMSgate’ se não vier com explicações cabais e sem subterfúgios?